Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade de expressão e direitos humanos

A negativa do governo venezuelano de renovar a concessão da RCTV produziu reações dramáticas em todo o Ocidente. Há, de fato, vários pontos críticos nessa medida.

A mais grave é a falta de mobilização e de uma campanha de esclarecimento que mostrasse aos populares (para os quais o detalhado Livro Branco pode não ser de fácil leitura) o verdadeiro poder da mídia. Uma prova irrefutável e conhecida desse poder é o caso da RTLM, uma pequena emissora de rádio fundada pela viúva do presidente Habaryimana, cujas mensagens ajudaram a deflagrar os fatos de 1994 em Ruanda.

O governo da Venezuela poderia ter exibido, em escolas e locais públicos, pelo menos três longas metragens dublados, dois eles de veracidade inquestionável (Shake Hand with the Devil, Sometimes in April e, a menos verídica, Hotel Rwanda). Outra medida negativa do governo Chávez foi o processo por exibição sexual, o que revela um enfoque puritano mais próximo do fundamentalismo religioso de Bush que de um (talvez) futuro processo socialista.

Uso perverso da lei

Entretanto, impressiona que algumas ONGs de direitos humanos (uma delas bastante prestigiosa), tenham levantado acusações, predizendo um futuro totalitário cuja possibilidade não foi demonstrada.

Façamos um raciocínio por redução ao absurdo. Suponhamos que recusar, numa data fixada legalmente, a renovação de uma licença vencida, seja um crime contra a liberdade de expressão e, portanto, contra os Direitos Humanos. Assim sendo, há duas possibilidades: ou a própria lei é ou foi aplicada perversamente. Se a lei foi iníqua, como ela existe na Venezuela e em outros países desde há várias décadas, os militantes de DH temos cometido uma gravíssima omissão ao não denunciar seu caráter anti-humano quando foram sancionadas. Podemos dizer que estamos reparando nosso erro tardiamente, mas isso não explica porque não agimos contra outras dúzias de leis semelhantes em outros países.

Cabe, então, pensar que a lei não é ruim, mas que foi usada perversamente. Ora, por quê?

Reflexões sobre direitos

1. Diz-se que reprime a liberdade de expressão. Essa liberdade é um direito das pessoas, seja que ajam isoladamente, ou em grupos, partidos etc. Mas, alguém contou quantas pessoas tinham sua liberdade de expressão veiculada pela RVTC?

As grandes redes comerciais da América Latina refletem a liberdade de opinião de, digamos, 400, 500, no máximo 1.000 jornalistas. E onde fica a liberdade de expressão do resto da sociedade? Os meios alternativos, como este OI, que recebem opiniões de todos seus leitores, são escassos e se encontram apenas na internet. Num jornal impresso, a probabilidade de que uma carta de leitor seja publicada, para um cidadão desconhecido, é menor de 1%.

2. Liberdade de expressão significa ‘direito à desinformação’? Isto é uma pergunta. Sabemos que a censura não é uma solução, mas pode chamar-se censura a recusa de uma sociedade, representada por um governo eleito (por, pelo menos, uma porcentagem igual à do governo brasileiro), ceder um espaço público para transmitir mensagens de ódio? Em países muito respeitados pela mídia internacional, como Israel, não estão proibidas as transmissões anti-semitas?

3. Se a RCTV é apenas um indício de um pogrom contra a mídia, por que não foram fechadas outras TVs, mesmo que sejam de menor alcance? E por que esta medida demorou tanto tempo? Depois do 11 de setembro, o governo norte-americano não duvidou nem umas horas para aplicar o ‘Plano Patriota’, modelo de repressão física e intelectual.

4. A UE afirma que foi ferido o pluralismo. Que pluralismo? As pessoas que, por algum método, têm conseguido acompanhar as transmissões da RCTV, poderiam mencionar um programa – um que fosse – que alguma vez tenha convidado a alguém que não fosse desesperadamente inimigo do governo?

5. Finalmente, os DH são direitos naturais, expressos de maneira explícita nas Declarações, protocolos, acordos e nas plataformas das ONGs. No caso do direito de opinião, todos os militantes de DH temos já escrito dúzias de protestos contra governos que incomodam jornalistas, impedem a manifestação de cidadãos desconhecidos, punem ou ameaçam a pessoas particulares etc. Não é preciso muita reflexão para perceber que esse direito, natural e inviolável, é diferente do direito de uma grande empresa de possuir um império da comunicação. Se este direito for básico, ele deveria ser dado a todos, como acontece com o ensino público ou os remédios para pessoas carentes.

[PS: Minhas opiniões não necessariamente refletem as das OGNs de direitos humanos com as quais colaboro.]

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Professor titular da Unicamp e voluntário da Rede de Ação Urgente de Anistia Internacional