Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Emissora quis ser fechada por Chávez

Tenho acompanhado atentamente o que ocorre na Venezuela. Até resenhei, neste Observatório, o excelente livro-reportagem do jornalista Pablo Uchoa sobre o país de Hugo Chávez [ver aqui].

Confesso que não morro de amores pelo bolivarianismo ou por Hugo Chávez, a quem já chamei de ‘marechal dos mosquitos’ [ver aqui].

Mas também não morro de amores pela mídia, cujo poder desmedido cria a impressão de que a única democracia que existe é aquela que os canais de TV criam ao expulsar a política do cotidiano das pessoas. Já disse, no Jornal de Debates, que ‘a política, arte de discutir e resolver em conjunto os problemas da polis (cidade), surgiu como uma expressão do cotidiano ateniense sob a democracia’. Onde os súditos apenas obedecem não há política, mas tirania.

A mídia diz que vivemos numa democracia. Contudo, nossa participação na vida pública é tão limitada que não podemos, por exemplo, reduzir ou congelar os salários de nossos servidores públicos. Sob esta farsa democrática, nossos administradores, legisladores e juízes se comportam como verdadeiros tiranos e a mídia só não sugere que devemos apenas obedecer-lhes para manter intacta a impressão de que a democracia é uma verdade insofismável.

‘Ágora eletrônica’

O processo eleitoral já foi contaminado pela mídia de tal forma que não há mais espaço para debate público em torno de propostas. A discussão de soluções para problemas que afligem a comunidade não faz mais parte da política. Votar se tornou um ato vazio de escolha entre produtos de marketing (votar em candidatos sabão-em-pó ou papel-higiênico, como já disse em outro lugar). O candidato que falar melhor, que se apresentar melhor ou que melhor aprender a explorar os recursos da TV é eleito e conserva o mandato na próxima eleição.

A mídia sabe de que poder desfruta na ‘sociedade do espetáculo’ e comporta-se como se seu poder fosse intocável. Quando alguém afeta seus interesses, ajuda a enterrá-lo, exatamente como o colocou no altar. ‘O neo-lacerdismo, amplamente difundido entre as empresas de comunicação brasileiras, demonstra satisfatoriamente que Carlos Lacerda estava à frente de seu tempo. Não foi à toa que Lula abdicou de seu poder administrativo e colocou nas mãos das próprias concessionárias do serviço público de televisão o direito de se auto-regulamentarem. O Estado que concedeu o direito de exploração de TV já não tem o direito nem mesmo de regulamentar seu uso (revogar uma concessão de TV por violação do regulamento estatal é algo absolutamente impensável)’ [http://www.jornaldedebates.ig.com.br/index.aspx?cnt_id&art_idr02].

Para compreender bem a reação da mídia ao que ocorreu na Venezuela é preciso ler o livro Showrnalismo, do jornalista José Arbex Jr. Arbex afirma que…

‘…aparentemente, a ‘opinião’ divulgada pela mídia interfere no curso dos acontecimentos, dando a ilusão de que o público foi levado em consideração. Na realidade, os indivíduos permanecem isolados, espalhados pelas mais distintas cidades, regiões, estados e países, sendo virtualmente ‘unificados’ pela mídia, mas sem terem exercido qualquer interlocução. É a ‘ágora eletrônica’ que simula a antiga polis, onde tudo se debatia. As megacorporações simulam a ágora que legitimará suas próprias estratégias de dominação e controle’.

Ilusão não domina a realidade

A empresa RCTV apoiou o golpe de tal maneira que, segundo Pablo Uchoa…

‘…a população oferece – e pede – ajuda à imprensa estrangeira, desconfia da mídia local e não hesita em intimidar seus profissionais’.

Uchoa informa que essa divisão perdurou mesmo depois da tentativa de deposição de Chávez.

Gostemos ou não, Hugo Chávez foi democraticamente eleito pela população da Venezuela. Seu mandato é, portanto, legítimo. Gostemos ou não, a rede de TV que ele fechou teve uma participação importante na tentativa de golpe que quase o depôs pela força da Presidência. Esquecendo-se que era concessionária de um serviço público – e que deveria apoiar a preservação da legalidade na Venezuela –, a RCTV apoiou os golpistas e tentou legitimar uma ilegalidade. Portanto, a companhia se excedeu e merecia realmente ser fechada.

O fechamento da RCTV não pode ser considerado uma afronta à liberdade de imprensa. O Estado não é obrigado a renovar qualquer concessão de serviço público. Como fonte da legalidade, a principal tarefa do Estado é preservar a mesma e punir os abusos cometidos pelos concessionários do serviço público.

A mídia televisiva, de tão desacostumada a se submeter ao Estado, de tão convencida do poder exagerado que exerce com a conivência dos políticos que elege, quer fazer parecer o contrário. Mas, neste caso, a ilusão não pode dominar a realidade. A decisão do ‘marechal dos mosquitos’ é perfeitamente legítima.

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Advogado, Osasco, SP