Dizem que a primeira baixa numa guerra é a da verdade – deduz-se, portanto, que a mentira deva seguir ilesa no campo de batalha. Poder-se-ia, no entanto, perguntar: até quando?
O mais recente mea-culpa do jornal americano New York Times sobre a cobertura de alguns fatos que antecederam (e justificavam de certa maneira) a invasão do Iraque pela coalizão anglo-americana aponta para vários aspectos demonstrativos do comportamento e procedimento da indústria midiática – não só o modelo ianque, mas também (e por que não) o nosso, como reflexo da prática jornalística adotada pela imprensa nacional, muitas vezes acima do bem e do mal.
Atirar no próprio pé não parece uma prática salutar – fingir que não é consigo tampouco. Corrigir erros ou desvios exige mais que temperamento, uma vez que na atual conjuntura muitos interesses se entrelaçam e é quase impossível desatar nós sem atentar para a complexidade e multiplicidade das questões envolvidas.
Parece que a prática jornalística tem-se servido de sua suposta isenção (absoluta) e objetividade como tecnicalidades próprias dos meios de comunicação, revelando aspectos de uma arte manipulatória precisa e útil para determinados interesses políticos e/ou empresariais.
Sussurros na sociedade
Na verdade há um apagamento das fronteiras, dos limites propiciado pela prática hegemônica do capitalismo que perpassa todas as camadas da sociedade global, disseminando uma aparente normalidade nos procedimentos quando na realidade incrementa a desigualdade. Como se nessa aparente homogeneização as diferenças se apagassem abrindo caminho para o pensamento único – encobrindo a face mais crua e assustadora da realidade, fomentada justamente por essa homogeneização.
Já se disse que a capacidade de manipulação é diretamente proporcional à ignorância do manipulado (ou conivência de quem se deixa manipular, acrescentaríamos). Quando todos os olhares se voltam para um único ponto não quer dizer necessariamente que seja o alvo correto – e quantos tiros não saem pela culatra? Talvez não se tenha dito toda a verdade sobre determinado assunto, ou quem sabe se tenha desviado o foco para um aspecto menos relevante – o fato é que a realidade, muitas vezes, escapa à realidade e vem impreterivelmente à tona, e, de uma forma ou outra, se realiza através da mídia. Pode parecer paradoxal (e o é certamente) mas nessa câmara de espelhos não está em jogo somente o fluxo de imagens, mas sim o do discurso dominante numa renhida batalha para a manutenção do poder.
Isso não quer dizer, todavia, que outras vozes não se façam ouvir (ainda que sussurrantes) nas sociedades. O fluxo dos discursos é contínuo (Foucault) e garante a sobrevivência (e importância) das diferenças (como formas de resistência), ao contrário do que o pensamento capitalista faz supor. Daí a pertinência do mea-culpa do New York Times, uma vez que suscita (ou deveria suscitar) reflexões acerca de tais comportamentos e da própria responsabilidade das corporações midiáticas. Claro que não se excluem desse contexto as questões éticas.
Autocrítica e crítica
O ato de contrição ensejado pelo jornal americano sinaliza mais que uma autocrítica – respinga, de certa forma, nos demais veículos que têm procedido da mesma maneira no tratamento dispensado às ações do comandante Bush (e até o momento não ensejaram semelhante atitude). Expõe erros, além das mentiras deslavadas da trupe bushista em pleno campo de batalha; demonstra que ainda existem alguns veículos (e jornalistas) independentes (na periferia das corporações) que não perderam o foco nem o bom senso, como exceção nesse panorama.
À imprensa nacional serviria a lição dos riscos de se dobrar ao próprio poder manipulatório num deslumbramento de si mesma ou num servilismo devotado aos mais obscuros interesses – e tudo sem qualquer questionamento ou remorso. Colocar-se acima de tudo pode ser sintomático da vontade de se alçar ao lugar de Deus – estabelecendo uma nova ordem de poder, devotado cada vez mais à glória do lucro, à superficialidade da notícia/entretenimento e, em última instância, à própria coisificação do homem, como resultado desse processo de midiatização, esvaziamento e culpabilidade.
A autocrítica e a crítica se fazem mais que necessárias em momentos como os atuais – e refletir sobre isso areja a sociedade, bem como o jornalismo feito com seriedade como forma de estabelecer novos paradigmas para a sua prática – uma vez que não se trata (ou não deveria tratar-se) de um mero produto ou agente acobertador de mentiras, mas de relevante serviço público de informação e esclarecimento.
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Poeta, Jaú, SP