Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Abismo cultural, a representação e o real

Antes de discutir a ‘verdade da televisão’ e colocá-la no banco dos réus para o julgamento de valores, entre o bem e o mal, proponho um convite à reflexão. Uma leitura – ou releitura – do mundo. Não é preciso para isso retomar o surgimento da humanidade, nem percorrer os corredores obscuros da história e da filosofia. Basta lembrar de uma célebre frase de Arthur Schopenhauer, traduzida para o português como: ‘o mundo é minha representação’, ou ainda ‘o mundo é sua representação’. Sua ou minha, a representação é um fato, e o fato é sua representação.


Sem grandes profusões filosóficas, o importante é se observar que a idéia defendida por Schopenhauer em 1819, e interpretada por muitos, está intrinsecamente ligada às discussões atuais sobre a imagem na TV. A exploração do tempo, do espaço e a manipulação da realidade. O que tomamos por realidade é um recorte que a representa, um fragmento deslocado de seu contexto e manipulado através da linguagem da televisão, para produzir sentido, mesmo que este esteja pautado em uma cópia imperfeita do real.


Uma cópia imperfeita e estrategicamente selecionada, editada. Não apenas pelas câmeras de TV, diretores, editores, produtores ou qualquer um envolvido nos bastidores da notícia. Há uma seleção ainda mais sutil, que é a do olhar. O olhar que escolhe o que quer mostrar e o que escolhe o que quer ver. Sobre esta questão, em entrevista ao Observatório da Imprensa, o professor Arlindo Machado, questiona: ‘O espectador de cinema escolhe o filme que vai ver antes de sair de casa, o leitor de romances escolhe o livro que vai ler; por que, então, o espectador de televisão não deveria selecionar o que vai entrar no seu aparelho?’ Ouso ainda complementá-lo: não só selecionar o que vai entrar na sua TV, mas no complexo aparelho mental.


Manipulação da realidade


Entre o que é apresentado pela TV e a leitura consciente do mundo há um abismo cultural que envolve uma rede complexa de interesses e ideologias. Para que essa lacuna seja preenchida com um diálogo criativo, envolvendo o mundo dentro e fora da tela, é preciso antes de tudo entender que a televisão é um espaço plural de representações. Assim, a realidade que cabe no tempo e no espaço da TV, é resultado da manipulação da forma e do conteúdo.


A forma é definida pela linguagem da TV. Um complexo jogo de luz, explorando o espaço, os movimentos de câmera fazendo a vez dos olhar do telespectador – que não tem a oportunidade de estar ‘ali’, mas pode acompanhar ‘agora’ o desenrolar dos acontecimentos. Os efeitos sonoros, a voz dando vida à narrativa que vai tocar as sensações humanas. Vale observar que são estes mesmos elementos que fazem a linguagem do cinema – luz, câmera, ação.


Vamos ao conteúdo. A informação, por si só, não tem tanto poder de persuasão quanto a forma. Assim, é possível dizer que a forma (a linguagem) potencializa a manipulação da realidade. Mas tudo isso acontece muito rápido, de maneira que não sobra tempo para a reflexão; pelo menos, não no breve momento em que as imagens televisivas chegam ao alcance dos olhos do telespectador – aquele que assiste de longe a um espetáculo (tele- longe, espectador – aquele que assiste a um espetáculo). Do outro lado da tela, o sujeito pode até assistir de longe, mas tem a impressão de estar próximo.


O mundo e suas representações


Não há melhor exemplo para ilustrar essa impressão do que um jogo de futebol. Da arquibancada ninguém jamais poderia ver – e ainda mais, rever – o momento do gol, de um ângulo em que é possível assistir todo o percurso da bola saindo dos pés do jogador até entrar na área, balançar a rede e o coração das pessoas. Tampouco poderia acompanhar a emoção expressa numa lágrima que escorre no rosto de um torcedor ou explode no grito ecoante da platéia.


O telespectador é bombardeado a todo momento pela chuva de elétrons, imagens e sons já incorporados ao seu cotidiano. O artefato funciona, então, como uma extensão do homem. Assim como a câmera é a extensão do olho humano. Registra, comprova, testemunha e eterniza momentos.


Momentos como os descritos anteriormente só são possíveis graças à televisão. O professor Arlindo Machado deixa claro uma coisa: convivendo com esta TV brasileira, que, como tantas outras, insiste em copiar os modelos banalizados das TVs estrangeiras, existe gente querendo fazer uma TV que utilize seus recursos para potencializar a reflexão sobre o mundo e suas representações.


O homem sem alma é uma coisa


Agora, ao banco dos réus. Lá não está apenas um aparelho, mas um complexo ideológico, um olhar mecânico, um espelho distorcido da realidade, editor da verdade. O julgamento já começou, mas ainda cabe uma ressalva. A pergunta central do julgamento não deveria ser se a TV é ‘boa ou má’, mas o que se está fazendo dela. A própria energia nuclear é inofensiva. Pode tanto salvar vidas como destruir. O problema está em quem faz uso dela, e principalmente ‘como’ o faz. Da mesma forma é o conteúdo televisivo. Isso, sim, deveria estar sendo julgado, tanto por quem faz quanto por quem assiste e principalmente por quem a critica.


Lidar com a manipulação da realidade é ter em mãos uma poderosa ferramenta que tanto pode informar, edificar vidas e consciências, quanto pode aniquilar o que o ser humano tem de mais precioso: sua inteligência. Pode tanto engrandecer, quanto ‘coisificar’ o homem, tornando-o uma máquina de trabalhar, gerar lucro, fazer filho e consumir. Enfim, pode valorizar ou aniquilar a capacidade humana de leitura crítica do mundo. Sua alma. Nenhuma coisa existe sem o homem para criá-la. E o homem não existe sem sua alma para torná-lo humano. A alma sem o homem ainda é alma, é energia. Mas o homem sem sua alma é apenas uma coisa.

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Estudante de jornalismo