Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Do fundo da gaveta

Disse o grande Quixote:

‘Una de las cosas (…) que más debe de dar contento a un hombre virtuoso y eminente es verse, viviendo, andar con buen nombre por las lenguas de las gentes, impreso y en estampa. Dije con buen nombre, porque siendo al contrario, ninguna muerte se le igualara.’ Miguel de Cervantes. Don Quijote (1992, p. 558-559).

Publicar um livro pode ser algo instigante ou desestimulante, dependendo de o livro sair ruim ou bom. Livro ruim é um precedente chato que deixa ressaca: a gente não quer mais olhar, afasta o autor de qualquer editor por um bom tempo. Se o livro sai razoável, é um estímulo. Um livro bonzinho, com peso para ficar de pé na estante, é simbolicamente (sempre para o autor, é óbvio) um bilhete de ingresso na sociedade dos amigos que arrumamos na biblioteca. Estamos ao lado deles, no meio deles… Somos um deles?

Nasceu da publicação em 2004 do meu primeiro livro bonzinho, Democracia ou fundamentalismo? Esboços de compreensão política, o impulso para rever manuscrito de ‘fundo de gaveta’, escrito em 1994, em Nova York, e atualizá-lo, não exatamente ao tempo, mas ao modo de ser e escrever do autor de hoje, menos sublime e menos sentimental, mais irônico ou mais ‘gracioso’, enfim, mais Sancho Pança que Quixote.

Defensor do ‘generalismo’

Conscientemente forjado no gênero ensaístico, sua concepção teve diferentes modelos. Os ‘escritos de Nova York’, de 1994, foram imaginados em imitação ao jovem Lukács de A alma e as formas. Será sempre ridícula a pretensão de inspirar-se em modelo genial? Ou: a pretensão, expressa como tal, já não se torna ironia e dá conta da distância desde o que sonhamos ao que podemos fazer? Como gostava de dizer Lima Barreto, ‘sonhei Shakespeare e acordei um ‘Mal das Vinhas’ qualquer…’ (LIMA BARRETO, 2004, v.1, p. 79), isto é, um daqueles autores de escritos publicados como apedidos nos jornais da primeira República, que se acreditavam literatos geniais e incompreendidos…

A reconstrução do manuscrito tomou como modelo também os ensaios sobre ‘lugares de memória’ e identidade nacional, coordenados, na França, por Pierre Nora (Lieux de mémoire).

A prosa ensaística quer conversar com o leitor, propor-lhe reflexões, subtraindo ou suspendendo respostas, até porque não se interessa por respostas prontas, mas pelas perguntas… Seu ideal é interativo, para usar palavra que entrou na moda com a revolução cibernética. Todo ensaio evidentemente parte de algum objeto, normalmente um livro ou obra de arte, mas sempre tem seu nome precedido por invisível subtítulo: ‘pensamentos por ocasião de…’ (LUKÁCS, 1974, p. 15). O ensaísta é assumidamente um clínico geral avesso a especialidades. Entre nós, louvo-me no precedente (sem pretensão a comparações de ranking, apenas de gênero) de um notável defensor do ‘generalismo’ que se expressa no ensaio, Gilberto Freyre:

O ensaísmo representa, nas letras ocidentais, em geral, nas brasileiras, em particular, não só uma ressurgência (…) mas uma insurgência sob a forma de nova abrangência: a insurgência de um neogeneralismo superador de excessos tecnocráticos de especialismos. Insurgência em face do que começou a ser uma intolerante ortodoxia dessa espécie de tecnocracia: o extremo especialismo no trato de assuntos sociais ou sócio-culturais. (FREYRE, 1983, p. 76).

Amar nosso inimigo

Apresentada a forma, digamos algo sobre o conteúdo: ‘A casca e o caroço’; ‘Brasília: uma capital do século 20’ e ‘Três mulheres altas’ são reelaborações do manuscrito de fundo de gaveta de que falei. O resto todo é novo.

A aparição de uma tendência etnocrática, de-canonizadora e racista na vulgata da esquerda identitária pós-moderna conduziu-nos à discussão de tema que retornou à agenda pública mundial em forma nova: o terrorismo. Para essa discussão comparecem ‘Caricaturas e metáforas perigosas’, ‘Literatura e terror’ e ‘Rescaldos do terror: PCC, esperança e memória’. O pretexto de discutir a novidade da ‘cota racial universitária’ foi mote para visita à obra de Gilberto Freyre, em ‘Preconceito, discriminação e ressurreição do negro no Brasil’. Já ‘Para que serve um jornalista?’ nasceu de uma encomenda: comentar para o Observatório da Imprensa uma condenação judicial que sofrera um jornalista pelo único crime de noticiar processo envolvendo um magistrado. Encomenda que se entregou do modo mais enviesado, puxando conversa com Lima Barreto pelo caminho.

A leitura do livro de Josué Montello sobre Os inimigos de Machado de Assis foi mote para a pretensão de defender Machado melhor que Montello, que pode, com justiça, ser considerado seu melhor amigo. O texto é apologético, elaborado conscientemente na retórica de uma defesa no tribunal do júri, com saudação, apresentação e discussão da prova e peroração. Um acerto de contas pessoal com o escritor, de quem o hoje advogado de defesa era mais um dentre tantos inimigos, pode ser aquele pedaço de ‘biografia estendida’ de que fala Gilberto Freyre, pode funcionar como reconciliação coletiva, que se atreve a mexer no vespeiro dos grandes traumas de nossa formação político-cultural. Se ‘Literatura e Terror’ pode ser visto como um alongado rodapé ao mandamento de Antônio Cândido, de que devemos amar a nossa literatura, por pobre que ela seja diante de outras, porque ela nos expressa, o ensaio sobre Machado de Assis o completa com o mandamento de amar ao nosso inimigo.

Com Deus, o mundo se resolve

O título foi aos poucos condensando-se em torno a duas palavras que traduzem experiências de tempo: esperança e memória. São duas grandes palavras em todos os sentidos. São sinalizadoras da passagem do tempo, mas também, como escreveu Lukács, são vitórias sobre o tempo num mundo esquecido por Deus.

Apostemos em que a combinação dessas duas vitórias sobre a passagem do tempo ainda resulte numa terceira: na fé de que não será facilmente que permitiremos que o mundo seja abandonado por Deus, por mais que ditaduras fundamentalistas e reveses demagógicos nas democracias-liberais teimem em caricaturar as verdades das grandes religiões. Porque ‘com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra’, bem ensina João Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas (1991, p. 56). [Florianópolis, 2007].

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Procurador da República