‘A imprensa (quem a contesta?), é o mais poderoso meio que se tem inventado para a divulgação do pensamento.’ – (Carta inserta nos anais da Biblioteca Nacional, vol. I). (Carlos de Laet)
A imprensa comercial serve aos interesses das grandes corporações e do interesse econômico?! Lembremo-nos das palavras de Soren Kierkegaard, 1848: ‘De fato, se a imprensa diária, tal como acontece com outros grupos profissionais, tivesse que pendurar um letreiro, seus dizeres deveriam ser os seguintes: aqui homens são desmoralizados com a maior rapidez possível, na maior escala possível e ao preço mais baixo possível’.
Você, caro, leitor, lembra da explosão com o gás liquefeito de petróleo (GLP) da Companhia Ultragaz S/A ocorrida a 11 de junho de 1996 no Osasco Plaza Shopping, que ceifou a vida de dezenas de pessoas de todas as idades e ocasionou lesões corporais em outras centenas? Saiba que quando ocorre um acidente com o gás liquefeito de petróleo, a grande maioria dos veículos de imprensa somente se preocupam em noticiar o corpo-a-corpo entre vítimas e seus familiares, empresas projetistas, construtoras sub-empreitadas e administradores da edificação predial residencial ou comercial sinistrada, não prestando atenção no campo das responsabilidades civil e criminal da distribuidora de gás e de seus funcionários respectivamente.
‘Departamento técnico’
No caso Osasco Plaza Shopping, sob o clima das grandes tragédias, os chamados mass media não atentaram para a responsabilidade da Ultragaz e de seus funcionários, partícipes no cometimento e não desfazimento das causas e conseqüências da explosão que chocou o Brasil. Tanto é que, nenhum nome dos funcionários, diretores e advogados da Ultragaz foi mencionado nas matérias vinculadas pela imprensa no período de 12 de junho de 1996 a 05 de agosto de 1996.
Esse mesmo ‘fenômeno’ fez e faz ainda hoje com que a imprensa vasculhe informações sobre o que cada vítima da explosão fazia no momento da explosão e, depois, a história pessoal de cada um, sua vida familiar, amorosa…
É importante repisar e atentar para a circunstância de que, desde o primeiro momento da tragédia, a imprensa passou a ser o ‘departamento técnico’ das autoridades incumbidas de investigar as causas do acidente. Os administradores do Osasco Plaza Shopping foram massacrados, julgados e considerados culpados no processo da imprensa antes mesmo de prestarem depoimentos à autoridade policial.
Furo de reportagem
Embora não faltassem evidências a serem percebidas sobre a participação da Ultragaz e de seus funcionários no empreendimento e no episódio, em vez da apuração técnica-científica, promotores e delegados, peritos e jornalistas, misturavam denúncias de pessoas leigas com as mentiras propaladas pelos funcionários e advogados da Ultragaz. Qualquer denúncia ou qualquer declaração era bem vinda e divulgada, desde que criasse responsabilidade e fosse contra o Osasco Plaza Shopping e seus administradores – o que me faz lembrar do adágio de autoria do Prêmio Nobel de Economia (1991), Ronald Coase: ‘Se torturarmos os fatos suficientemente, eles confessaram tudo.’
E a reação da opinião pública era de apoio ao presidente da República, governador do Estado, prefeito, promotores, delegados, peritos, jornalistas, vítimas, oportunistas e demais autoridades, com os programas de televisão e de rádio batendo recordes de audiência e de prestígio e com os jornais e revistas ultrapassando em muito os recordes de tiragem do caso Escola Base.
Assim, sufocando critérios técnico-científicos e procedimentos operacionais, normativos, técnicos e de segurança, preventivos e corretivos, mínimos de checagem científica, essa sede pelo furo de reportagem abriu espaços para alianças entre promotores, delegados, peritos, advogados e jornalistas, para montar o caso Osasco Plaza Shopping.
Dolo eventual
Neste ponto é interessante invocar um trecho das lições da obra Ética Geral e Profissional (São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1998), adrede exarada pelo professor, desembargador José Renato Nalini, a saber:
‘Os chamados mass media são detentores de grande poder na sociedade moderna. A imprensa constrói e destrói reputações, cria verdades, conduz a opinião coletiva por caminhos nem sempre identificáveis e para finalidades muitas vezes ambíguas. A informação inseriu-se no mercado. É um bem da vida com valor comercial apurável. Para alcançá-la, os profissionais dos órgãos de divulgação não se permitem hesitar se precisam ferir outros interesses, sobretudo aquele consubstanciado na verdade. O que interessa mesmo é a versão, nem sempre o fato.’
E foi com a matéria de opinião da revista Veja (edição 1.449 – Ano 29 – nº 25, de 19 de junho de 1996), com manchete de capa: ‘Explosão no Shopping – Histórias De Horror’, que esse caso se desenvolveu: com os promotores, delegados, peritos e advogados vazando suposições para a imprensa, que as abria em manchetes, as quais, em seguida, os mesmos promotores, delegados e peritos reabsorviam como elementos novos a serem investigados.
A revista Veja, ávida pelo furo de reportagem, desinformada, sem mencionar uma única prova documental ou técnica-científica, na mais franca utilização da tese-precursora do marketing político de Joseph Goebbels, por exemplo, noticiou: ‘Câmara de Gás – Depois da mortandade, as investigações demonstram aquilo que todo mundo que ia ao shopping já sabia: estava vazando gás… Pela quantidade de queixas de clientes e funcionários, tem-se como certo que o gás ficou vazando por semanas no subsolo.’ Nascia a denúncia e subseqüente condenação dos administradores do shopping na modalidade de dolo eventual.
Rol das ‘vítimas fatais’
Porém, a imprensa responsável, compromissada com a ética moral e profissional de seus editores, jornalistas e repórteres, e com a formação de opinião pública, após decorrido o período de ‘furos de reportagem’, passou a investigar os acidentes com mais profundidade e, por muitas vezes, passou a questionar a conduta das autoridades. Ressalta-se que, no caso Osasco Plaza Shopping, o jornalista Luís Nassif foi o primeiro a policiar a imprensa e a revelar as falhas nas condutas da polícia e do Ministério Público em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 15 de julho de 1998:
‘A primeira conclusão a que chegou é sobre o processo de formação de notícias, entre jornalistas e autoridades (delegados e promotoria) cúmplices do escândalo (…). A posição dos delegados e promotores reforçava as suspeitas das publicações que, por sua vez, reforçam as suposições dos delegados e promotores. Montava-se uma rede infernal, auto-alimentada, que não permitia nem sequer o exercício do contraditório.’
Depois, após quatro anos, o caso Osasco Plaza teve outro direcionamento conforme se constata nas matérias jornalísticas de autoria dos jornalistas Bárbara Gancia – Folha de S. Paulo, 14 de junho de 2000; Mauro Chaves, O Estado de S. Paulo, 17 de junho de 2000; Milton Parron, Rádio Bandeirantes, 07 de novembro de 2000; Mariza Cavalcanti, revista IstoÉ Dinheiro, 24 de agosto de 2001; Luísa Alcalde, Diário de S. Paulo, 11 de junho de 2002; Luísa Alcalde, Diário de S. Paulo, 09 de abril de 2003; editores da revista IstoÉ Dinheiro, 11 de junho de 2003; Maria Fernanda Erdelyi, revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2005; Sérgio Lírio, revista CartaCapital, 17 de janeiro de 2007; editores do Diário da Região,15 de fevereiro de 2007; e Luísa Alcalde, Diário de S. Paulo, 04 de março de 2007.
Contudo, é oportuno deixar à mostra a irresponsabilidade da imprensa comercial muito bem representada pelo apresentador Gilberto Barros, popularmente conhecido como ‘Leão’, que levou ao ar para todo o Brasil uma entrevista totalmente sensacionalista, no dia 11 de junho de 2003, como é peculiar em seu programa Boa Noite Brasil, da Rede Bandeirantes de Televisão. Após sucessivas chamadas, apresentou um homem que se identificou como Mike Nascimento, que dizia ter sido uma das vítimas da explosão ocorrida no Osasco Plaza Shopping. A incrível história aos poucos foi se esfacelando, a começar pelo número de parentes seus que ele afirmava que também haviam sido vítimas fatais do acidente. Na somatória de seu pai, irmão, filha, mulher e outros amigos, computamos cerca de 18% das vítimas fatais. Porém, seus supostos familiares não constam do ‘rol das vítimas fatais do I.P. nº 886/96’.
Mais de uma década
Agora, a verdade sobre o que realmente aconteceu no caso Osasco Plaza Shopping está sob claridade solar. E se agora as coisas estão claras e são de conhecimento da sociedade, é à imprensa responsável que devemos. A informação pública é o primeiro dado para se equacionar qualquer problema social, se divulgada.
Portanto, há de se reconhecer a importância e a utilidade social da imprensa responsável, que pode, só ela, denunciar um atentado contra os pilares das instituições republicanas, conforme já relatado por este articulista em matéria publicada pela revista Consultor Jurídico, em 12 de março de 2007, sob o título: ‘Por que o MP não acusou a Ultragaz pelo acidente?’, a qual foi reproduzida nos sites do Ministério Público do Estado de São Paulo, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e do Observatório da Imprensa, sob o título: ‘Caso Osasco Plaza: Falta alguém no banco dos réus’, e outros.
Que se reflexione sobre as ‘coisas’ que vieram à tona no caso Osasco Plaza Shopping, que a imprensa se esquivou de informar à sociedade, por exemplo, a saber: no Brasil, império da corrupção e da impunidade, é comum que se questione o óbvio. A existência de uma ‘Operação Osasco’, constituída pela Companhia Ultragaz S/A e composta por operadores do Direito e políticos, que em comum acordo e com identidade de propósitos, abusaram das ferramentas do Direito e da democracia e desmoralizaram ambos, reforçaram os argumentos de quem quer a impunidade garantida desde a explosão do Osasco Plaza Shopping, produziram e aperfeiçoaram jurisprudência, à luz dos buracos negros da lei, para forrar a Ultragaz e seus responsáveis técnicos da responsabilidade pelo grave crime que cometeram, para ser utilizada pela Ultragaz em sua defesa nas ações propostas por vitimados do perigoso GLP e para que as distribuidoras de gás não fiquem submetidas às regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC), faz com que sejam questionadas coisas por mais de uma década, o que, em outros países, jamais passaria pela cabeça de alguém. Jamais!
Apenas moedas
Impossível negar, diante do grande número de vítimas atingidas pela explosão – muitas delas, embora sem lesões físicas, experimentaram prejuízos de toda ordem moral ou patrimonial com a perda de entes queridos – sem deslembrar a dificuldade de locomoção de algumas em razão de mutilações sofridas, estando outras, ainda hoje, decorridos 11 anos, experimentando sofrimentos com tristes conseqüências na vida social, extensivas a traumas psicológicos complexos, discriminações, deformações físicas e psicológicas e a síndrome do estresse pós-traumático com danos certamente irreversíveis, que as falhas nas condutas dos doutos membros do Ministério Público, que ofereceram denúncia e atuaram nos processos crime e civis do caso concreto, não se constituíram em atos ilícitos e em violações às Declarações Universais dos Direitos Humanos e dos Direitos da Vítima.
Além disso, o acidente com gás combustível pode significar, para as vítimas e os familiares das vítimas de lesões corporais e das vítimas fatais, o início de um périplo penoso, demorado e caro. Por exemplo, como demonstram os vários relatos constantes nos autos dos processos do caso Osasco Plaza Shopping, de vitimados que tiveram problemas relacionados ao acesso à justiça, a cuidados médicos, à tramitação dos processos, à garantia dos direitos indenizatórios, enfim, à recuperação da dignidade e do respeito perdidos após o acidente que poderia e deveria ter sido evitado pela Cia. Ultragaz S/A. Especialmente porque todo ato de violência – explícito ou implícito, físico, moral ou intelectual – é uma agressão à condição humana.
Repetir o óbvio, por vezes, é necessário para reavivar memórias e despertar consciências. ‘Vamos ver se, de novo, vai haver a mais completa impunidade. Se vão falar em fatalidade! Precisamos tratar coisa séria com seriedade neste país! E responsabilizar com prisão, como manda a lei, os que por incompetência, omissão ou negligência, acabaram provocando essa catástrofe, que matou e feriu, e que desgraçou famílias em Osasco, em São Paulo. A vida humana precisa voltar a valer mais que moedas! Apenas moedas, aqui no Brasil!’ (Boris Casoy, TJ Brasil, SBT, 14 de junho de 1996, 19h20).
Barbáries inenarráveis
Com efeito, sobressaem bem a propósito estes trechos colhidos do vaticínio do ex-procurador-geral de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Guimarães Marrey – que atuou, quando promotor, no caso do crime da Rua Cuba e com o ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso e advogado da Ultragaz no caso Osasco Plaza Shopping, José Carlos Dias, a saber:
‘Este é um país onde a impunidade de pessoas importantes é a regra! Quando se trata de crimes praticados por grandes sonegadores, por pessoas poderosas e importantes, há mecanismos que levam à impunidade! É isto que nós temos que acabar! Não se constrói um país democrático com esta impunidade! A justiça tem que valer pra todos!’ (Bom Dia SP, TV Globo,13 de junho de 1996).
Infelizmente, a percepção do que ocorre fora dos muros palacianos nunca foi o forte de nossos governantes e autoridades, cuja tendência é sempre garantir soluções através da imprensa e tomar providências, tardias e inócuas, até quando barbáries inenarráveis são descobertas e tornadas de conhecimento público, contrariando o senso comum e dificultando ainda mais a vida do cidadão e da Justiça brasileira.
O vitimado consumidor
A falta de seriedade com as coisas do Estado democrático de Direito e a política do fato consumado sendo levada a cabo, e o que é pior – e aqui está a forma de autêntico gangsterismo –, valendo-se a Ultragaz de mecanismos inconfessáveis e das falhas na conduta do Ministério Público, que maculou uma das poucas instituições ainda respeitadas pela sociedade brasileira, ao tempo em que quer se safar da responsabilidade pelo grave crime que cometeu no Osasco Plaza Shopping, quer levar o Poder Judiciário a incorrer em erro para que ela e as distribuidoras de gás não fiquem submetidas às regras do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Principalmente porque, atente-se, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) introduziu uma nova forma de julgar, semelhante à common law, onde o direito não é legislado, mas baseado nos precedentes, na jurisprudência, que o juiz cria no caso concreto.
Não há nenhuma dúvida que, decorridos 11 anos da explosão no Osasco Plaza Shopping, a Ultragaz parece absolutamente convencida de que seu único objetivo foi ou está sendo plenamente alcançado e de que os méritos são exclusivamente seus, porque nunca antes na história do país tal objetivo havia sido pensado, proposto, tentado e alcançado. E, mais um pouco, a Ultragaz teria substituído as duas palavras de nossa bandeira, ‘ordem’ e ‘progresso’, por outras duas: ‘corrupção’ e ‘impunidade’.
Os poderosos da Ultragaz e seus operadores do Direito e políticos parecem realmente convencidos de que o mal feito de um abona o mal feito do outro e assim sucessivamente até estarem todos absolvidos de suas faltas. Ou seja, o crime praticado contra todos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e contra todos os direitos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos compensa! Ora, o vitimado consumidor! O vitimado consumidor…!
Monstro devorador
Infelizmente, alguns juízes ainda não perceberam essa farsa e práticas, que lembram o período da ditadura militar e da Operação Bandeirantes, ofendendo preceitos fundamentais da Constituição deixando os vitimados com GLP e os consumidores de gás combustível ao arbítrio do aparelho do Estado, mas o Poder Judiciário é formado na sua maioria por ‘homens do bem’, instrumentos de Deus, e, como é sabido, o erro de um juiz o tribunal pode corrigir.
Como já tive oportunidade de afirmar, em casos como os dos vs. acórdãos da Apelação Criminal nº 302.777.3/8-00 (TJSP), da Apelação Cível nº 293.860.4/2-00 (TJSP) e do Recurso Especial nº 880.283/SP (STJ), diante de sua importância e complexidade, ao invés de ficar discutindo teses de relevância apenas acadêmica e sem utilidade prática, coube ao Poder Judiciário se fazer presente, ágil, firme e corajoso para aplicar a norma jurídica colocada à disposição da sociedade pelo legislador. Assim, o Poder Judiciário cumpriu seu papel social de dizer o direito, fazer justiça, dar a cada um o que é seu e até incentivou os legisladores para que também, no âmbito de suas atribuições, revejam leis ultrapassadas que não mais se coadunam com a celeridade dos acontecimentos da vida moderna.
É de se ter presente que a ação civil pública nº 1959/96, ajuizada pelo Ministério Público perante a MM. 5ª Vara Cível da Comarca de Osasco, em data de 30 de outubro de 1996, tão-somente em face da B-Sete Participações S.A. e da Administradora Osasco Plaza Shopping S.C. Ltda. – o consumidor final de gás –, proposta com base no Código de Defesa do Consumidor, apoiada na denúncia caluniosa em face dos administradores do Shopping – a do dolo eventual –, e estruturada nos depoimentos mentirosos dos funcionários da Ultragaz e nas versões do ‘vazamento lento e gradual’, do ‘cheiro de gás’, do ‘período de tempo para a execução do teste de estanqueidade’ e da ‘ganância do diretor do shopping’, cuja sentença condenatória genérica proferida em 26 de maio de 1997 não foi objeto de liquidação, além de não ter tido a adesão de nenhuma vítima até hoje, foi benéfica para a Ultragaz e imprestável para amenizar o desumano sofrimento das vítimas e de seus familiares, pois, privilegiou a Apólice de Seguro nº 002.002.531, de 1º de janeiro de 1996, na época, de R$ 50 milhões, da Cia. Ultragaz S/A junto ao Bradesco, que não foi disponibilizada para nenhum dos 400 vitimados. Ou seja, na prática, a propalada ação civil pública disfarçada de boas intenções sociais mostrou-se o monstro capaz de devorar as próprias vítimas sobreviventes do evento danoso.
Ingerências políticas
Tanto é que o Ministério Público, em vez de se sensibilizar com as conseqüências indizíveis da explosão e orientar racionalmente a inclusão no pólo passivo da ação civil pública nº 1959/96 de todas as empresas partícipes na ata de reunião nº 2302/95 e, portanto, no cometimento e não desfazimento das causas e conseqüências do evento danoso, em primeiro lugar demorou para agir em defesa das centenas de vitimados, na hora em que mais precisavam de socorros e de cuidados médicos, e do consumidor de gás combustível, e quando agiu, agiu mal, não tendo incluído a Ultragaz no pólo passivo da ação, que já respondia, sim, solidária e independente de culpa, pelo ressarcimento dos prejuízos ocasionados aos vitimados e consumidores, os quais tiveram atingidos interesses muito superiores aos meramente patrimoniais, nos termos dos artigos 6º, 12º e 14º do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Veja-se que, por trás da ação civil pública aforada pelo Ministério Público, há interesses maiores, corporativistas, políticos e econômicos do Grupo Ultra e da Companhia Ultragaz S/A, e não necessariamente os interesses difusos da população. Com a propositura da ação civil pública nº 1959/96 tão-somente em face do Osasco Plaza Shopping – o consumidor final de gás –, só se estava escondendo o que havia por trás do acidente com o gás da empresa do poderoso e importante empresário Paulo Guilherme Aguiar Cunha: as ingerências políticas, por exemplo, que deram causa eficiente aos ‘mecanismos’ utilizados para forrar a Ultragaz e seus responsáveis técnicos da responsabilidade pelo grave crime que cometeram.
Um ‘parecer jurídico’
Neste ponto é oportuno colacionar-se trechos do v. acórdão (nº 00160150, Osasco, SP) proferido pela Colenda Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em data de 24 de junho de 1999, no julgamento de Apelação Cível nº 71.502-4/0 – de Osasco, especificamente o anotado pelo desembargador José Ozório (Relator), em seu voto nº 12.285:
‘Ignorou-se o fator catástrofe, que impõe tratamento jurídico diverso para todo o episódio e suas conseqüências. Todas as vítimas passam a formar um grupo definível por um ponto comum, ou seja, o mesmo fato jurídico lesante. Nessas condições, muitas vezes até surgem associações dos infelizes. Fatos de tal envergadura, quando oriundos de ato ou falha humana, lesam também uma infinidade de direitos difusos.’
Como é sabido, as vítimas do evento lutuoso constituíram a Associação Nacional de Proteção às Vítimas de Desabamentos e Explosões – ANPVDE, obtiveram um ‘parecer jurídico’ elaborado pela professora doutora Ada Pellegrini Grinover, e contrataram o Escritório Yarshell, Mateucci e Camargo Advogados, o qual, em razão do mesmo acidente, propôs a ‘ação civil pública nº 2.967/03’ da MM. 5ª Vara Cível da Comarca de Osasco, com requerimento de medida liminar, em face da Companhia Ultragaz S/A e da BRR Gerenciamento e Planejamento S/A.
Ação deve prosseguir
A presente demanda tem como causa de pedir próximo a responsabilidade contratual e extracontratual: a) da Ultragaz, por não ter cumprido suas obrigações de fornecimento de produto perigoso e de prestação de serviço de assistência técnica e manutenção de forma adequada e segura; b) e da BRR Gerenciamento, por não ter prestado de forma adequada e segura os serviços de gerenciamento, coordenação e fiscalização.
Ou seja, esta demanda tem como causa de pedir remota a responsabilidade: a) objetiva das rés, como fornecedora de produtos e prestadoras de serviços respondem pelos prejuízos decorrentes de defeitos e vícios – Fornecimento e prestação de serviços de forma adequada e segura – Responsabilidade objetiva – arts. 4º, 6º – I e III, 8º, 9º, 10º, 12º, 14º, 17º, 20º, 23º, 30º, 31º, 34º, 36º e 39º – VIII, do Código de Defesa do Consumidor e arts. 113, 421 e 422 do Código Civil em vigor; e b) subjetiva das rés, em razão da conduta culposa de seus prepostos – Responsabilidade subjetiva – arts. 159 e 1.521, III, do Código Civil de 1916 e arts. 186 e 932, III, do Código Civil de 2002.
Ora, o consumidor que sofreu os danos tem direito à integral reparação, o que só ocorrerá quando cada qual receber a totalidade dos valores correspondentes aos prejuízos que efetivamente sofreram, como bem decidiu a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça – a favor de duas vítimas da explosão com o GLP da Ultragaz no Osasco Plaza Shopping –, no julgamento do Recurso Especial nº 333.099-SP (2001/0090212-4), como bem anotado pelo ministro Rui Rosado Aguiar (relator) em seu voto vencedor:
‘Como o Código Civil admite que o lesado, propondo ação contra um dos devedores, não fica inibido de acionar os outros, e que o pagamento parcial feito por um dos devedores não aproveita aos demais, se não pelos valores pagos, concluo que a ação promovida contra os que não foram parte naquela transação, a quem aqui se imputa responsabilidade por culpa própria, na forma exposta na inicial, deve prosseguir, sem que se atribua a transação com outros efeito impeditivo desta ação’.
Depreciação moral
Ressalta-se que a ação civil pública nº 2967/03 encontra-se em grau de Recurso de Apelação nº 487.429.4/5-00, interposto pela ANPVDE, na Oitava Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, aguardando julgamento, relator desembargador Sílvio Marques Neto. Inclusive, o Ministério Público já opinou pelo ‘desprovimento’ do referido recurso.
Como se vê, dá para perceber, sem muito esforço, uma das razões do porquê as coisas chegaram ao ponto em que chegaram. Em que país estamos, onde tudo é às avessas? O Ministério Público, por exemplo, escolheu as pessoas que participaram no empreendimento e deram causa eficiente à explosão como testemunhas da acusação, deixou de solicitar das empresas e dos profissionais envolvidos no empreendimento e no episódio os documentos exigidos pela legislação do Sistema Confea/CREAs, pertinentes ao conjunto técnico de gás do shopping, escondeu por vários anos os funcionários da Ultragaz André Luiz Pedro Pregion e Alexandre Toledo, que eram sabedores dos riscos de ocorrer uma explosão no shopping desde a ata de reunião nº 2302 de 23 de fevereiro de 1995, escamoteou mais de duas dezenas de provas perfeitas do presidente do inquérito policial nº 026/96, ofereceu denúncia caluniosa em face de pessoas inocentes, que foram transformadas em monstros humanos e condenadas em primeira instância nas modalidades culposa e de dolo eventual e que tiveram que suportar o ônus de um processo comprovadamente viciado por uma década, ou seja, até o Superior Tribunal de Justiça publicar a Certidão nº 104.955 sobre o Recurso Especial nº 880.283/SP, em 13 de março de 2007.
‘A instauração de ação penal, por si, é suficiente para depreciação moral; para acarretar baixa no conceito social do acusado; para causar repercussões negativas em seu ambiente de trabalho e danos na harmonia familiar, além de queda na auto-estima e outros dramas psicológicos’ (membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Renato Marcão, Controle Jurisdicional da Denúncia, artigos de colaboradores, www.direitosfundamentais.com.br).
A consciência dos magistrados
A mais nefasta das mentiras é aquela que parece verdade, que de tão nefasta que é, quando vinculada sobre a honra de alguém, ainda cabe à vítima ter que provar sua inocência.
Acresce que os doutos membros do Ministério Público inventaram e defenderam ferrenhamente teses esdrúxulas para astutamente justificarem o injustificável e darem mais credibilidade às suas hipóteses, conjunturas e induções, por imaginação fértil, fruto de elaboração mental criativa, doentia e imoral. Afirmaram, por exemplo, que : ‘A companhia distribuidora não tinha a obrigação legal ou contratual de fiscalizar a rede de instalação de distribuição de GLP do local – tubulação e seus acessórios’, referido pela promotora Marilú de Fátima Scarati de Castro Abreu, na sua denúncia, a fls. 12 –, o que obviamente não é verdade, pois soa pueril ao comando do artigo 9º do Código de Defesa do Consumidor.
Maior, mais clamorosa injustiça é negar aos lesados, com tão fútil pretexto, toda e qualquer reparação, estimulando com a impunidade novos prejuízos, novos acidentes, novas mortes. É preferível uma solução imperfeita à permanência da injustiça não reparada. O direito legítimo do cidadão e a culpabilidade estarão sujeitos às interpretações jurídicas por parte dos magistrados, afirmou Rui Barbosa: ‘Não há tribunais que bastem para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados.’
Depoimentos dos funcionários
E para que dúvidas não possam subsistir quanto à cabal responsabilidade da Ultragaz pelo grave crime que cometeu, cumpre trazer a lume alguns dos nefastos procedimentos operacionais, normativos, técnicos e de segurança, preventivos e corretivos, adotados pela sua assistência técnica antes de mandar o Osasco Plaza Shopping pelos ares, pinçados dos depoimentos de seus funcionários prestados à autoridade policial, que precisam ser expostos à sociedade, a saber:
‘Que, quando a instalação das tubulações não é feita pela Ultragaz, a empresa distribuidora não exige do cliente a comprovação, através de testes, do bom funcionamento das tubulações e a inexistência de vazamentos nas mesmas, antes de dar-se início à ligação da bateria com os tubos que levam o gás até o interior do prédio.’ (…) ‘Que, no caso presente, não foram feitos testes ou exigida a comprovação de suas realizações, quando do início do fornecimento de gás.’ (…) ‘Que, em sendo feita pela construtora, e como no caso do shopping, sendo embutida… visto que a tubulação já estaria feita e uma alteração implicaria quebrar-se o piso e refazer todo o serviço’ (Celso Barchi Junior).
‘Mesmo não estando encamisada a tubulação, como ocorria no shopping, a instalação se fez, não se fazendo qualquer recomendação específica quanto à tubulação quando da instalação da central’ (Edízio Rodrigues Gaia).
‘Que, por sua experiência… o depoente percebeu que ali poderia haver risco de algum acidente; que a este respeito o depoente não efetuou nenhuma comunicação por escrito ao shopping ou à própria Ultragaz’ (Antonio Carlos de Souza).
Controvérsias e mentiras
Ora, sem recorrer a outros fatos pertinentes aos depoimentos dos funcionários da Ultragaz, o mesmo Antonio Carlos de Souza, que compareceu ao shopping quando solicitado por este, declarou, em depoimento prestado às fls. 4188/4189 dos autos do Processo-Civil nº 2143/96 da MM. 6ª Vara Cível da Comarca de Osasco: ‘Que, quando ocorre vazamento em uma tubulação embutida, é melhor condená-la e construir outra tubulação externa. Para identificação exata do ponto de vazamento, seria necessário quebrar todo o piso, mas não compensa… Informou seu chefe, André, do risco.’
Depois, a explosão! Depois, uma tese mentirosa defendida à exaustão pela Ultragaz e pelo Ministério Público, segundo a qual ‘a autora alega que a requerida foi chamada ao shopping dias antes da explosão e não realizou o exame necessário de ‘estanqueidade’. Esse fato restou incontroverso. Mas o motivo pelo qual não foi realizado é que interessa neste processo. Pelo contido nos autos, em especial nas cópias nos demais processos, o exame não foi realizado por culpa da proprietária e administradora do estabelecimento comercial. Como o centro de compras teria de ficar de um a dois dias fechado, a requerida Ultragaz não foi contratada para fazer esse serviço extra’, referido pelo promotor Fabio Luis Machado Garcez, em seu parecer, a fls. 3366 dos autos da ação civil pública nº 2967/03.
A nefasta afirmação acima transcrita não resiste a uma passada de olhos no voto vencedor do relator da Apelação Criminal nº 302.777.3/8-00, desembargador Ericson Maranho, no qual restaram incontroversas duas coisas: uma é que o funcionário da Ultragaz Antonio Carlos de Souza mentiu à autoridade policial ao dizer que, no dia 17 de abril de 1996, havia recomendado verbalmente a execução de teste de estanqueidade ao funcionário do shopping Leônidas Dias Pereira, pois este funcionário do shopping, naquele dia, encontrava-se de férias em Tapejara, no Rio Grande do Sul; outra é que ‘é sabido que, diante da possibilidade de vazamento, a primeira providência que a fornecedora deve adotar é interromper o fornecimento de gás e condenar a rede de distribuição. Se nada disso fez, ao contrário, entregou mais combustível, ou não havia dúvida quanto à inexistência de vazamento, ou foram desidiosos. E a denúncia não cuidou de incluí-los no pólo passivo da ação’.
Teste de estanqueidade
E mais. Façamos um raciocínio: supondo que o período de tempo para a execução do teste de estanqueidade durasse 48 horas (prazo mentiroso), supondo que a Ultragaz realizasse um teste de estanqueidade no conjunto técnico de gás do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, então o Tribunal teria ‘de ficar de um a dois dias fechado’?! Isto é, se fosse constatado um vazamento de gás, o Tribunal teria de ficar mais ‘de um a dois dias fechado’ para localizar o ponto vazante na tubulação e realizar um novo ‘exame necessário de estanqueidade’?! É sabido que o período de tempo para a execução de um teste de estanqueidade, normatizado pela ABNT, é de ’30 minutos a duas horas’.
O curioso é que, até hoje, os advogados da Ultragaz, promotores e juízes deixaram de citar, expressamente, quais foram as Normas Técnicas Oficiais e/ou Legislações Vigentes nas quais eles se basearam para afirmarem que a execução de um simples teste de estanqueidade demandaria um período de tempo de ’24 horas a 48 horas’. E não o fizeram por uma razão muito simples: tais Normas Técnicas Oficiais e/ou Legislações Vigentes não existem!
Ademais, os doutos membros do Ministério Público não acostaram aos autos de um único processo do caso concreto, nem conseguiram dos advogados da Ultragaz sequer uma cópia xerográfica de uma única ‘Carta de Teste de Estanqueidade’ comprovando que ao menos um estabelecimento comercial no Brasil ficou fechado no período de tempo da execução do teste de estanqueidade pelos funcionários da Ultragaz!
‘Rede de distribuição interna’
E a curiosidade ganha vulto quando se apurou que as teses dos advogados da Ultragaz foram transcritas integralmente pelo promotor Fabio Luis Machado Garcez em seu parecer, por exemplo, a tese anotada na r. sentença a fls. 5778 dos autos da ação civil pública nº 2967/03:
‘A Ultragaz não era responsável pela assistência técnica da tubulação interna de gás mas somente pelas instalações centralizadas (externa) razão porque o Ministério Público, de posse destas informações (sic), moveu a ação civil pública somente contras os verdadeiros responsáveis pelo acidente.’
Contudo, advogados, promotores e juízes não acostaram aos autos de um único processo em que a Ultragaz figura como ré uma cópia xerográfica de uma única prova que outra distribuidora de gás (por exemplo, a Copagaz) é responsável pela assistência técnica da ‘rede de distribuição interna’ abastecida com o GLP da Ultragaz? Ou que a Ultragaz é responsável pela assistência técnica da ‘rede de distribuição interna’ abastecida com o GLP de outra distribuidora de gás?
Valores da democracia
É, pois, preciso que a sociedade civil esteja alerta para não subsidiar tais mecanismos, utilizados nos processos do caso Osasco Plaza Shopping, que já levaram Jesus Cristo à cruz e Hitler ao poder, e se dê conta de que, se há um notório estado de ineficiência, relaxamento moral e de descontrole no setor público, quer se trate da administração direta ou indireta, ou mesmo dos órgãos encarregados de perseguir os infratores da lei, isso não decorre da falta de leis, ou do fato de que estas sejam brandas ou inaplicáveis, nem em razão de acolherem garantias e direitos individuais, que de há muito se acham reconhecidos internacionalmente e incorporados ao patrimônio dos cidadãos que fazem parte das sociedades civilizadas e democráticas. O que não se esclarece à sociedade, é que leis existem e o que falta é aplicá-las com eficiência e seriedade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos está ai para nos lembrar que sempre que depararmos com algo parecido com o que foi arquitetado no caso Osasco Plaza Shopping e está sendo levado a cabo em desfavor dos vitimados com o gás liquefeito de petróleo (GLP) e dos consumidores de gás combustível, seja contra quem for que seja brandido esse tipo de violência e o contexto histórico onde isso se dá, estaremos diante de uma ameaça mortal. É esse – grita-nos ela – o divisor de águas entre civilização e barbárie!
A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. A segurança dos bens é um direito da sociedade. A segurança das pessoas é um direito natural. E a quem cabe assumir a responsabilidade de proteger o consumidor de gás combustível e de manter as distribuidoras de gás submetidas às regras do Código de Defesa do Consumidor?
Cabe ao Ministério Público defender e promover os direitos constitucionais dos cidadãos, o interesse público, os princípios republicanos e os valores da democracia.
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Tecnogasista e autor de representações junto ao MP-SP no caso do acidente no Osasco Plaza Shopping