O analfabetismo científico mostrou o quanto pode ser prejudicial à imprensa e lançá-la no descrédito num momento em que a humanidade concentra suas atenções para questões planetárias prementes, como os efeitos do aquecimento global. Por volta das 8h30 da segunda-feira (11/6), como de costume, ingressei no portal do Estadão e vi uma imensa imagem de um asteróide em direção a Terra, devidamente creditada como ‘ilustração’. A reprodução artística, bem ao estilo das distribuídas pela Nasa, com uma pequena legenda sobre um choque com a Terra me fizeram entrar rapidamente no link.
Entrei na matéria e o que surgiu foi um logotipo do Observatório de Asteróides – um site associado ao International Astronomy Centre – o endereço do link era www.mundodaastronomia.com.br/ – notícias e mais alguns códigos. Em momento algum, tanto no portal do Estadão quanto no texto, havia menção de ser uma peça publicitária.
A matéria pretensamente jornalística tinha o seguinte título: ‘Asteróide Pallas poderá se chocar com a Terra em 2007’.
As trombetas do Apocalipse
‘Astrônomos amadores descobriram que o asteróide 2-Pallas teve sua órbita alterada e, segundo os últimos cálculos, está em rota de colisão com a Terra. Os principais centros espaciais do mundo ainda não se pronunciaram, mas já existe uma grande mobilização na comunidade científica e militar.
O impacto poderá trazer grandes conseqüências, levando em conta a extensão do asteróide, considerada a segunda maior do cinturão que vai de Marte a Júpiter.
O 2-Pallas mede 558x526x532 km e, caso a informação seja confirmada, trará mudanças sem precedentes à existência humana na Terra. A colisão deverá acontecer na primeira quinzena de julho de 2007. Logo, deveremos ter novas notícias das autoridades competentes que, por enquanto, evitam comentar o fato para não gerar um descontrole generalizado na população mundial.
2007 – Observatório de Asteróides. Todos os direitos reservados.’
Ao lado do texto, havia um gráfico espacial com a rota do Pallas 2005. O peso de duas décadas de atuação dentro do jornalismo científico, inclusive 10 anos deles cumpridos no próprio Grupo Estado, não me deixou outra atitude a não ser investigar. Ou o Estadão estava dando o maior furo da ciência espacial desde o surgimento do jornal impresso, ou tratava-se de uma barriga imensa, destas que servem como exemplo da má prática jornalística para qualquer iniciante na carreira.
Como na internet tudo é volátil, resolvi gravar a página e partir para encontrar a home do site mundodaastronomia no mecanismo de busca Google. Também fui atrás do International Astronomy Centre (IAC), que surge numa minuta do governo do Reino Unido como proposta de criação no ano de 2001. Tudo ficcional, bem mais próximo ao seriado Jornada nas Estrelas que algum furo jornalístico oriundo das trombetas do apocalipse de São João.
‘Informe publicitário’
Até pouco antes das 10 horas a matéria foi mantida no ar, com a ilustração bem abaixo da foto principal da página, sendo destaque da editoria de ciências. De repente, desapareceu. Vasculhei o portal – e nada. Entrei em contato com um dos editores do portal, meu companheiro de vários anos de Agência Estado, e lhe contei os detalhes da imensa e sideral barriga que deram por lá. Para comprovar o fato, mandei os arquivos. Profissional muito experiente e experimentado, saiu atrás do autor da besteira cósmica.
Provavelmente, esse editor remanescente do antigo time da Agência Estado encontrou o autor da façanha, que tentou justificar o erro grosseiro como ‘um pop up de uma peça publicitária’, coisa que definitivamente esteve longe de ser verdade, pois tenho bloqueador dessas telinhas desagradáveis. E, para minimizar o efeito da barrigada, ainda providenciou a inclusão de ‘informe publicitário’, logo após a observação: ‘Todos os direitos reservados’.
Ímpeto sensacionalista
A questão aqui não é só a besteira publicada no portal, algo extremamente desagradável para um periódico centenário e conceituado, mas o despreparo absoluto dos profissionais de imprensa quando o assunto é ligado à ciência espacial ou terrestre. Tudo que vem sob formato científico, independentemente da fonte, é tratado como verdade absoluta. E pronto!
Nada é checado, diga-se de passagem, ferindo um dos princípios básicos da prática jornalística. Numa atitude passiva, típica da preguiça e despreparo que se enfronhou nas redações. O jornalista deveria saber que o monitoramento do Cinturão de Asteróides e outras formações semelhantes, como a de Kuiper, é alvo de estudos científicos cotidianos, com observatórios de alta tecnologia e softwares de acompanhamento e mapeamento de trajetórias.
É por essas e outras que a comunidade científica fica temerosa quanto ao despreparo da imprensa leiga. Muitas vezes, um tropeço destes, além de virar motivo de chacota, representa, na prática, um retrocesso na melhoria do diálogo entre ciência e jornalismo. A solução do problema é tão simples. É só empregar o mesmo ímpeto sensacionalista na busca pela informação responsável e precisa. O leitor agradece.
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Jornalista pós-graduado em jornalismo científico, com especialização em águas atmosféricas