Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Apuração negligente e confusão

A ágora – praça principal das antigas cidades gregas que servia como recinto público para as assembléias dos cidadãos – era adornada com pórticos e esculturas de deusas e de heróis. Prestava-se às trocas e às artes, com festivais de música e de tragédias, onde Sófocles, Esquilo e Eurípedes, entre outros, imortalizaram suas obras perscrutando o espírito humano. Foi na ágora ateniense que se pensou e praticou a primeira forma de democracia – a democracia direta, sem mídia, sem intermediários. Ali se decidia o tempo de paz e o tempo da guerra. Hermes, o deus das comunicações, na certa abençoara a ágora por entender que a democracia só poderia nascer da paz e da boa comunicação entre os homens. Teria sido esse deus o inventor da imprensa?

Com a complexidade das sociedades modernas, a imprensa ocupou o lugar da agora. E a ágora, lugar original da comunicação e da controvérsia, passou a ocupar um lugar no passado nostálgico de seus heróis e deuses adormecidos.

Por outro lado, essa mesma modernidade trouxe a tecnologia, a informática e, com ela, a possibilidade de se resgatar a ágora, agora virtualmente. Assim, nasceu em São Paulo, o Instituto Ágora em Defesa do Eleitor e da Democracia, uma organização não-governamental com foco nas Câmaras Municipais; um observatório civil, uma agência de informações independente que acompanha os trabalhos dos representantes políticos para saber se, quanto e como cumprem suas cartas-programa e as promessas consagradas no calor das campanhas que os elegeram.

Com essa missão, além de fomentar o debate público e incentivar à participação política suprapartidária com programas para escolas, centros comunitários e empresas, o Instituto Ágora de São Paulo percebeu que o caminho percorrido para levar a produção legislativa a todas as praças, aproximando representantes de representados, é o mesmo que traz de volta para as Câmaras Municipais as sugestões, dúvidas, críticas e até elogios aos vereadores, por parte da população eleitora. Muitas das sugestões colhidas se constituem em embriões de projetos de lei para ingressar no rito legislativo, e um expressivo número delas tornam-se efetivamente lei. São os eleitores e eleitoras interferindo na governabilidade.

Esse projeto recebeu o nome de Ouvidoria do Eleitor e começou a funcionar na capital paulista há poucos meses. Estava restaurada a democracia direta e com ela a Ágora possível. O país tem perto de 5.600 municípios e, se não for ofensivo sonhar (no Ágora sonhar não é proibido), um dia poderemos ter uma Ouvidoria do Eleitor em cada município, geridas por estudantes pagos com meia bolsa por ‘empresas amigas da democracia’. Essa, pelo menos, é a missão do Ágora de São Paulo, e que um dia poderá fazer no Brasil uma imensa praça virtual na qual cidadãos e cidadãs decidem os rumos de suas cidades e de seu país.

‘Tudo igual’

Mas, eis que mandada por algum deus travesso, a neo-ágora midiática, como a cólera de Medeia, poderosa e apressada, mandou pelos ares, pelos jornais e editoriais da semana, que uma ONG de nome Ágora mantêm relações esquisitas com o governo federal. Tratava-se de uma certa Associação Ágora de Combate à Fome, com sede em Brasília.

Em que pese a enorme quantidade de dinheiro, supostamente dinheiro público, repassado pelo governo àquela entidade, e de outro lado a grande admiração que nutrimos por dom Mauro Morelli, um dos ex-presidentes dessa ONG, o fato é que a notícia se abateu sobre o Instituto Ágora em Defesa do Eleitor e da Democracia, de São Paulo, como um míssil no coração do Iraque. Razão: os jornais noticiaram que o caso nebuloso de repasse de verbas envolvia apenas a entidade Ágora, a ONG.

Se procurarmos no dicionário, encontramos o termo, sem dificuldades, munido de seu pleno significado, o que prova ser ágora uma palavra do vernáculo, como imprensa, democracia etc. Assim é que há escolas, editoras, ONGs e grupos de teatro com esse nome. Mas o Fantástico, da TV Globo, em horário de grande audiência, decretou que todas as Ágoras são falíveis. E a revista Veja, por ter também negligenciado o nome completo da pessoa jurídica em questão, assevera que todas as ONGs Ágora são suspeitas. São igualmente suspeitas e desqualificadas as Ágoras de todas as capitais segundo a revista Época. E, por fim, o jornal O Estado de S.Paulo estampou numa primeira página de domingo, reforçada em subseqüentes editoriais, que a ‘Ágora é uma ONG petista’.

Uma chuva de telefonemas e de e-mails inundou o Ágora em Defesa do Eleitor, em São Paulo. Gente pedindo esclarecimento, cartas de indignação, de repúdio, e até mensagens de solidariedade cujo pressuposto era de compreensão, na linha de que eram apenas informações em uma profusão de informações, e que logo o povo esqueceria. Um argumento plausível, já que de fato o trabalho de campo do Ágora confirma que uma grande parcela da população estende as reservas que nutre aos políticos à política às nossas débeis instituições democráticas.

Muitos não se lembram em quem votaram e trocariam de bom grado a nossa incipiente democracia por um emprego com carteira assinada e pela possibilidade de consumir num shopping center – até porque acreditam que político é ‘tudo igual’ e que os que presumivelmente prestam, uma vez eleitos, por alguma estranha razão deixam de prestar tão logo sejam empossados. Por que haveriam então de se importar com uma ONG de nome grego e que mexe justamente com política? Se a Globo falou, tá falado!

Informação como mercadoria

Um quadro que nunca será revertido por obra da classe política, uma vez que esta dele se beneficia. Apartados da fiscalização dos eleitores, maus políticos fazem o que bem entendem ao eleitorado, retornando a ele somente de quatro em quatro anos, amparados por agências de publicidade com aportes financeiros de grupos de interesses. Sobra, evidentemente, para os educadores. Mas em pesquisa realizado pelo Ágora na Feira Educar, a maior feira de educação da América Latina, 89% dos professores entrevistados não sabiam a diferença entre um deputado federal e um senador da República.

Todavia, nenhum daqueles telefonemas e comunicados foram de agências de fomento e financiamento para projetos sociais de onde o Ágora espera (com disfarçada ansiedade) apoio e apreciação de seus programas de fortalecimento da democracia, inclusão política, combate à corrupção, educação para a cidadania e responsabilidade pública. Na certa, pensaram seus diretores, não leram as notícias nem viram os jornais. E, depois, são tantas as informações que muitas se perdem no alucinado ritmo da vida moderna.

É verdade, ponderaram alguns, que a construção de credibilidade leva anos de trabalho sério e vigília, e que para arruiná-la gasta-se menos de cinco minutos. Mas os empresários, os agentes do Terceiro Setor e a opinião pública saberão distinguir o joio do trigo.

Em todo caso, como vivemos em um mar de informações, e não havendo muita clareza para distinguir a informação qualificada da informação em migalhas; não existindo nítida fronteira entre informar e conhecer, entre o imediatismo produtivo e a responsabilidade profissional; pode–se, sem prejuízo, contribuir com alguns dados justamente sobre a imprensa:

** No Brasil, as seis principais redes privadas de TV controlam ou estão associadas a outros 668 veículos para os quais fornecem a pauta;

** a essas seis redes de TV somam-se quatro grupos – Abril, RBS, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo – que, juntos, controlam virtualmente tudo o que se vê, se escuta e se lê no Brasil;

** a Rede Globo, sozinha detém 80% da receita publicitária;

** das 3.315 concessões de rádio e televisão distribuídas pelo governo federal, 37,5% pertencem a políticos filiados ao PFL, PMDB (17,5%), PP (12,5%), PSDB (23%) e PDT (3,8%);

** 90% da informação dos jornais do mundo têm origem em apenas quatro agências internacionais.

Este é o chamado quarto poder, responsável por fiscalizar o Executivo, os legislativos, e agora, as ONGs e as ágoras.

Resumindo, a informação se transformou, nos últimos 30 anos, em uma mercadoria de propriedade de poderosas organizações corporativas que operam dentro da lógica da lucratividade. E o jornalismo de negócios, entretenimento e sensacionalismo suplantou o jornalismo como serviço de utilidade pública – muito embora, segundo a Constituição, os meios eletrônicos sejam uma concessão pública e, portanto, prerrogativa da sociedade.

Garrafa no oceano

Se a situação não é propriamente animadora e o governo não pode fazer nada, se a classe política não vai contra seus próprios interesses e se os educadores têm limites, quem ou o que efetivamente poderá interferir para mudar? As ONGs e os movimentos sociais, e não as igrejas como queria a ex-ministra Benedita da Silva. Entretanto, se parte do povo acredita que político é ‘tudo igual’, parte da imprensa acredita que as ONGs são todas iguais.

Para não permanecer apenas na melancólica figura de vítima, vejamos o que diz o Ágora de São Paulo, somente no plano municipal:

** R$ 4.975.000,00 é o gasto anual com cada vereador em São Paulo, fora suplentes, que multiplicado por 55, número máximo permitido por lei, custa a cada eleitor-contribuinte R$ 25,81 por ano. No entanto, mais de 60% das leis aprovadas, se constituem no que chamam de produção legislativa de baixo impacto, isto é, nomes de ruas, datas comemorativas e títulos honoríficos, como atribuição da Medalha Anchieta etc.

** O Instituto Ágora de São Paulo está lançando o Balanço Legislativo 2002/2003 em que, além de analisar o custo de cada sessão por projeto aprovado, traz gráficos de cada mandato com os respectivos índices das políticas públicas e das de baixo impacto por eles perpetrados.

Num ano como o que corre, com eleições justamente para as Câmaras Municipais, a entidade considera que seus esforços podem ser muito úteis para a população, bem como para a própria classe política, que pela primeira vez no plano da municipalidade poderá ser avaliada por um olhar técnico eqüidistante. Porém, se todas as ONGs são iguais, assim como todo agente público e político, a publicação do Balanço Legislativo será uma mensagem numa garrafa atirada ao oceano, na espera de que um deus antigo a tome para ser lida na praça.

Cada país tem a ágora que merece, e a imprensa também.

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Diretor institucional do Instituto Ágora em Defesa do Eleitor e da Democracia (Ágora de São Paulo); (http://www.agoranet.org.br)