Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mentalidade de colônia na TV

O Fantástico exibiu no domingo (10/6) a matéria ‘Ser dono ou empregado?’, no quadro ‘Emprego de A a Z’. Por se tratar de um assunto de interesse, decidimos acompanhar. Mas logo de saída o arrependimento começou a bater e veio a decepção. Para começar, o apresentador do quadro, Max Gehringer, soltou a afirmação: ‘Ser dono ou empregado não é uma questão de escolha, é uma questão de vocação’. Como filósofa que sou, não pude deixar de desdobrar a afirmação do sr. Gehringer. Por detrás desta frase há uma concepção antropológica, uma concepção acerca da natureza humana de caráter determinista. Ou seja, o ser humano não é capaz de escolher aquilo que deseja ser, não é capaz de mudar, de pensar e agir diferente; o ser humano já nasce com determinadas capacidades as quais o levarão a fazer inevitavelmente certas coisas e jamais outras. Enfim, há aqueles que nascem para mandar e há aqueles que nascem para obedecer.


Como se isso não bastasse, as afirmações continuaram: ‘Se você gosta de trabalhar em grupo e ouvir a opinião de outras pessoas, então você nasceu para ser empregado. Se você gosta de decidir as coisas sozinho e não aceita palpites, então você nasceu para ser dono’.


Gostaria de saber a qual século o sr. Gehringer se refere. É conhecimento corrente mundo afora que uma das principais características de um verdadeiro líder é a capacidade de trabalhar em grupo. Para tanto, o diálogo é fundamental. E diálogo envolve tanto saber falar quanto saber ouvir. Ao que me parece, o sr. Gehringer baseou a sua fala numa concepção estereotipada advinda de muitos séculos atrás.


Ousar, ousar, ousar


Para resumir a tortura que se tornou ouvir tais afirmações, eis a frase final: ‘Se você tem dúvidas sobre se tornar ou não dono do próprio negócio, então você nasceu para ser empregado. Quem nasceu para ser dono não tem dúvidas, só tem certezas’.


Neste momento o meu desejo era jogar a televisão pela janela. Caso o sr. Gehringer não saiba, o desenvolvimento da civilização ocidental se deu, fundamentalmente, graças à dúvida. É por ter um dia duvidado que o galo fosse o responsável pelo surgimento do sol que os estudos astronômicos começaram e que hoje exploramos planetas longínquos. É por ter duvidado das respostas medievais que Renè Descartes decidiu procurar um método mais seguro para o desenvolvimento do pensamento em geral e das ciências, dando origem, com isso, a um modelo científico até hoje em uso.


Matérias como essa do Fantástico não têm outra função além de acorrentar, subjugar ainda mais o cidadão brasileiro numa mentalidade colonialista da pior espécie, na qual não se tem competência para empreender, mas somente para servir, obedecer e se conformar. Deste modo, não se deve sequer ousar ser diferente, pensar diferente, sonhar diferente.


Há não muito tempo assisti a um programa norte-americano de TV que não só dizia, mas mostrava exatamente o contrário. Algumas pessoas que passaram pela experiência de ser desencorajadas com veemência a ousar, a caminhar com as próprias pernas, a abrir seus próprios negócios, contavam como haviam se tornado multimilionárias após terem decidido perseguir seus sonhos. A ‘moral da história’ era a seguinte: ‘Não deixe que alguém diga do que você é ou não é capaz’.


Desde o ano de 1500 fazemos exatamente o contrário.

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Filósofa, Porto Alegre, RS; www.metamorfoseantemente.blogspot.com