Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marrom é a realidade, não a imprensa

Imprensa marrom no Brasil é desperdício. A realidade já é marrom. A imprensa nada precisa acrescentar aos fatos para produzir noticiário escandaloso. Ao contrário: poderia cavar mais fundo e mostraria um país ainda mais feio, mas a cada dia aparece uma nova denúncia. Quem se lembra da Operação Furacão, substituída nas primeiras páginas pela Operação Navalha, logo seguida pela Operação Xeque-Mate? Na semana passada, os jornais tiveram de se dividir entre o caso do presidente do Senado, Renan Calheiros, e as investigações sobre um irmão, Genival, e um compadre, Dario Morelli, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Enquanto corre atrás das novas denúncias, a imprensa vai deixando pelo caminho uma porção de histórias incompletas. Os escândalos do ano passado resultaram em alguma condenação? E os do ano anterior? A Polícia Federal acrescentou provas àquelas apresentadas no início de cada escândalo? Raramente aparece um balanço e quase sempre é negativo: os acusados continuam por aí, livres e leves, e alguns foram eleitos ou reeleitos para cargos públicos. Um balanço mais completo, de vez em quando, daria um retrato mais completo da realidade marrom.

Parte do noticiário resvala em questões importantes, nunca exploradas até o ponto de satisfazer o leitor um pouco mais curioso – ou um pouco mais ansioso em relação à vida política brasileira. Lembram-se do caso dos ‘anões do Orçamento’, na primeira metade dos anos 1990? Foi um escândalo e tanto, mas nunca se criaram mecanismos para mudar o chamado processo orçamentário.

Orçamento e corrupção

A chamada ‘parte livre’ do Orçamento Geral da União continuou, ano após ano, a ser estraçalhada por emendas de parlamentares. Boa parte dos escândalos – um bom exemplo é o das ambulâncias – tem relação com os gastos enxertados no projeto por deputados e senadores. Fala-se até, abertamente, numa bancada das empreiteiras, mas o próprio orçamento quase nunca é o tema central de uma reportagem.

Nas últimas duas ou três semanas, voltou-se a falar em mudança no sistema de emendas. O presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), anunciou a intenção de propor o fim das emendas de bancada. Na quarta-feira (6/6), o ministro de Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia, defendeu a liberação automática das verbas previstas nas emendas, para facilitar a vida dos prefeitos beneficiados. ‘A questão das emendas não deve ser discutida com preconceito’, disse o ministro, citado em reportagem do Estado de S.Paulo. ‘A palavra emenda não traz catapora ou corrupção.’

De fato, nem todo parlamentar faz bandalheira quando toma para sua clientela um pedaço do Orçamento. Apenas desperdiça dinheiro federal. Mas a associação entre emenda orçamentária e corrupção não ocorre por acaso nem por preconceito – e cada jornalista participante daquele encontro sabe disso muito bem.

Critério atropelado

Apesar disso, e de uma porção de outros problemas importantes, o Orçamento aparece na imprensa, quase sempre, como um adjunto adverbial facilmente esquecível. É um instrumento ou uma circunstância da corrupção ou da pulverização de dinheiro e isso parece torná-lo secundário. Mas não é. O processo de elaboração e de votação do projeto orçamentário é um componente importante do sistema político e do esquema administrativo do país. É parte relevante da história das democracias. Por que não explorá-lo, para variar, como tema central da reportagem?

A mesma pergunta vale para outros temas do dia-a-dia. Os jornais vêm cobrindo, há meses, o loteamento de cargos federais, parte da composição da base do governo. O presidente Lula dividiu a vice-presidência de Governo e Agronegócios do Banco do Brasil em duas unidades, para entregá-las a um peemedebista derrotado nas últimas eleições, o ex-senador Maguito Vilela, e o ex-ministro da Agricultura Luiz Carlos Guedes Pinto, vinculado ao PT. Uma vice-presidência da Caixa Econômica Federal foi oferecida ao peemedebista Moreira Franco. Na semana passada, falava-se também na nomeação, para a Caixa, do ex-deputado Paes de Andrade, aquele da República de Mombaça.

O critério da experiência profissional foi atropelado noutros casos, mas nesse episódio o governo extrapolou. Estadão, O Globo e Folha de S.Paulo deram destaque ao assunto, mas não valeria a pena, nesse caso, ir atrás da opinião de especialistas e fazer um barulho muito maior?

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Jornalista