Uma alameda azulada e arborizada atravessa as duas páginas do noticiário sobre o Rio, isto é, sobre as ações policiais no morro do Alemão, que em um mês deixaram 17 mortos; prossegue, triunfante, na página seguinte, em meio ao precário calçamento de uma famosa rua do Centro de São Paulo e a um vazamento de espuma nas obras do metrô em Pinheiros; finalmente, chega ao paraíso: o lançamento de mais um imóvel de um empreendimento imobiliário que é ‘uma obra de arte, de bom gosto, charme e elegância, em um bairro que é pura poesia’. Trata-se de mais uma unidade do projeto ‘Jobim – arquitetura de morar’, que batiza edifícios com os nomes especialmente ecológicos de algumas das mais famosas obras do compositor.
Misturar publicidade e reportagem é algo quase tão antigo quanto o negócio da imprensa. Nem se pense em protestar contra esse tipo de recurso que, em princípio, conspurcaria o ideal do jornalismo de informar e esclarecer o público, e não, de induzi-lo ao consumo – porque afinal estamos no mundo dos negócios e no mundo dos negócios é assim. Tanto é que a família de um dos maiores ícones da nossa música permite a exploração comercial de seu nome por uma das maiores empreiteiras do país, interessada em associar sua imagem à cultura e ao respeito à natureza.
Jobim, afinal, não deixa de ser uma marca, embora um mínimo de cuidado em relação à sua memória recomendasse evitar reduzi-lo a isto.
Preciosos exemplos
Ocorre que mesmo no mundo dos negócios é preciso haver algum limite. Sobretudo quando esse negócio principal é o jornalismo. O que choca especialmente nessa publicidade exibida no caderno ‘Cotidiano 2’, da Folha de S.Paulo de 2 de junho, é o flagrante contraste entre o anúncio e as reportagens. Sobretudo as que tratam do conflito no Rio: beira o cinismo a promessa de paz e serenidade em meio a tantos mortos no subúrbio da Penha, o garoto (da propaganda) placidamente jogando bola com o pai cercado por matérias sobre o poder de fogo do tráfico e a ação violenta da polícia, o menino João Hélio (de verdade!) sorrindo numa de suas últimas fotos na cronologia das mortes, a imagem da escola pública pichada e degradada ao lado do anúncio do edifício ‘Corcovado’.
Num dos textos de sua coluna dominical (3/6), o ombudsman da Folha contesta a justificativa da redação a respeito de uma ilustração imprópria – um urso polar numa reportagem sobre Ushuaia, que fica no extremo sul do planeta e tem os pingüins como atração – afirmando que, ‘no caso’, uma ilustração é uma unidade informativa, não um recurso ficcional ou lúdico.
Tem razão, mas o argumento não pode ser aplicado apenas a casos específicos: as informações não existem isoladamente, fazem sentido no contexto que ocupam na página. Por isso é tão diferente ler um jornal em papel ou na internet, quando a versão online desse jornal ainda não reproduz as páginas do impresso: a relação entre texto e foto pode alterar completamente o sentido original do texto, tomado à parte. O mesmo vale para a relação entre a informação jornalística e a publicidade: são ambas unidades informativas, embora de distinta natureza. E é preciso demarcar os limites para a interferência da publicidade na informação jornalística.
Quem sabe o episódio possa levar o jornal a discutir melhor a relação entre o departamento comercial e a redação? Desde já, esses preciosos – embora lamentáveis – exemplos servem para análise e debate nos cursos de Comunicação Social.
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Jornalista e professora da Universidade Federal Fluminense