Os problemas históricos de desigualdade e exclusão na América Latina refletem-se nos campos da comunicação e da cultura de modo semelhante e perverso: um pequeno número de megagrupos, quase sempre em alianças com conglomerados transnacionais, controla, de maneira oligopólica, expressiva parcela da produção e da circulação de dados, sons e imagens. Os titãs buscam rentabilidade a qualquer preço, beneficiando-se das desregulamentações neoliberais, das omissões deliberadas dos poderes públicos e dos desníveis tecnológicos entre países ricos e periféricos. Em função de seus interesses mercantis, boa parte da produção simbólica não leva na devida conta identidades, tradições e anseios socioculturais dos povos. O que prevalece, geralmente, são apelos convulsivos ao consumo, elevado à condição de instância máxima de organização societária.
A ascensão do espanhol como segundo idioma da globalização, o atrativo de um continente com 560 milhões de habitantes, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de legislações antioligopólicas têm levado conglomerados de infotelecomunicações – principalmente norte-americanos – a incrementarem seus negócios. Isso acontece por meio de aplicações diretas ou acordos e joint ventures com empresas e investidores locais.
Trata-se de uma das regiões mais rentáveis ao escoamento de bens e serviços multimídias. As projeções da consultoria Price Waterhouse Coopers para o quadriênio 2004-2008 indicam expansão de 6,3% nas receitas de informação e entretenimento. Não é casual que a taxa de expansão da publicidade latino-americana supere os índices dos produtos internos brutos da maioria dos países. Enquanto o PIB subiu, na média, 5,3% em 2006, os investimentos publicitários cresceram em torno de 8%.
Entendamos bem o cenário adverso com que nos deparamos. As corporações de mídia qualificam-se como atores de primeira linha no processo de reprodução do capital em dimensão planetária. Elas apóiam-se em tecnologias de ponta, poderio financeiro, know-how gerencial, influência política, capacidade industrial, suporte logístico e esquemas globais de distribuição. Do ponto de vista ideológico, fixam as premissas do discurso neoliberal, que transfere para o mercado a regulação das aspirações sociais ao mesmo tempo em que desqualifica ou neutraliza contestações ao status quo. A mídia, assim, atua tanto por adesão à globalização capitalista quanto por deter a capacidade única de interconectar o planeta, através de satélites e redes infoeletrônicas.
Lógicas comerciais
A concentração patrimonial e tecnoprodutiva é particularmente grave na América Latina, onde players internacionais (News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony-Columbia) têm alianças estratégicas com grupos multimídias regionais, vários deles controlados por dinastias familiares. Com as desregulamentações e privatizações na década de 1990, dinamizou-se essa junção de atores nacionais – sobretudo do Brasil, da Argentina e do México – e internacionais. As diretrizes de regionalizalização traduzem-se em coleções de joint ventures, aquisições, fusões, repartições acionárias e acordos operacionais, geralmente concebidos e implementados por holdings transnacionais (particularmente norte-americanas).
As quatro maiores empresas nas áreas de mídia e entretenimento retêm 60% do faturamento total dos mercados e das audiências. Se compararmos o desempenho sofrível da maioria dos países latino-americanos no comércio internacional com o que os gigantes midiáticos arrecadam no nosso continente, concluiremos que o grosso do faturamento é sugado por potências estrangeiras. Os Estados Unidos ficam com 55% das rendas mundiais geradas por bens culturais e comunicacionais; a União Européia, com 25%; Japão e Ásia, com 15%; e a América Latina, com apenas 5%.
Os principais grupos de comunicação da região (Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; Clarín da Argentina) têm parcerias com grupos transnacionais para explorar, sinergeticamente, os setores tornados convergentes pela digitalização: televisão aberta e paga, rádio, mídia impressa, internet, celulares, filmes, vídeos, DVDs, CDs, livros, jogos eletrônicos, softwares, seriados e desenhos animados, etc. Com isso, além de monopolizar os mercados nacionais, racionalizam custos e obtêm mais-valia em ramos conexos e na economia de escala.
A dependência aos cartéis acentua-se em face dos insuficientes investimentos dos governos em tecnologias e produção cultural. Um dado eloqüente: embora o acesso à internet na América Latina cresça, semestralmente, a uma taxa média de 25%, somente 6% da população estão conectados. O descompasso nas apropriações e nos usufrutos tecnológicos constitui um paradoxo frente ao caráter estratégico da comunicação, seja para a formação de opinião pública, seja para o consolidação do mercado interno (mais serviços, receitas e empregos), ou para o desenvolvimento do audiovisual nacional, ou ainda para as condições de competitividade no plano externo.
A prevalência das lógicas comerciais na mídia latino-americana manifesta-se no reduzido mosaico interpretativo dos fenômenos sociais; na escassa variedade argumentativa, em razão de enfoques que reiteram temas e ângulos de abordagem; na supremacia de gêneros sustentados por altos índices de audiência e patrocínios (telenovelas, telejornais, reality shows); nas baixas influências públicas nas linhas de programação; no desapreço pelos movimentos sociais nas pautas e coberturas; na incontornável disparidade entre o volume de enlatados adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional.
Diversificação simbólica
Os mais indulgentes diriam que, apesar dos pesares, aumentou a oferta multimídia e há recepções diferenciadas. De fato, seria miopia enxergar apenas manipulações no que a mídia difunde, ou supor que todas as audiências submergem na passividade crônica. Entretanto, devemos examinar atentamente importantes os lados da questão: a) os usos dependem de acessos e capacidades de discernimento marcadamente desiguais; b) quem comanda a disseminação dos bens simbólicos? c) quem define o que vai ser produzido e divulgado? d) como acreditar no valor absoluto da liberdade de escolha quando verificamos que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provêm dos Estados Unidos? Se duas dezenas de corporações respondem por dois terços das informações e dos entretenimentos mundiais, evidentemente a descentralização se inscreve mais na órbita das exigências mercadológicas do que propriamente nas diferenças qualitativas de conteúdos.
Em face da concentração monopólica e transnacional das indústrias culturais, a possibilidade de interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade criativa e reativa dos indivíduos, como também de direitos coletivos e controles sociais sobre o desmedido poder da mídia.
De que adianta pôr em relevo os downloads grátis de filmes e vídeos na web ignorando-se que a avalanche imagética tem procedência definida: as produções de Hollywood detêm 85% do mercado cinematográfico global e 77% das programações televisivas da América Latina. Portanto, a diversificação simbólica guarda estreita proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas.
Vislumbrando horizontes
Fica claro que diversidade nada tem a ver com os prazeres sensoriais proporcionados pela Disney ou com o gáudio da Sony ao anunciar o lançamento de cinco mil itens por ano. Muito menos com modismos compulsivos. Diversidade pressupõe revitalizar manifestações do contraditório, confrontar pontos de vista, debater as interseções entre progresso, técnicas e tecnologias. Diversidade se assegura com intercâmbio e cooperação horizontal entre as culturas de povos, cidades e países. Diversidade se alcança com o acesso do conjunto da sociedade a múltiplas abordagens sobre acontecimentos e informações de interesse coletivo.
Entre as medidas ao alcance de governos comprometidos com a democratização da comunicação, estão:
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legislações que impeçam a oligopolização;**
revisão de normas para concessão ou renovação de canais de rádio e TV, pois as licenças pertencem ao patrimônio público e não a grupos privados;**
mecanismos democráticos de fiscalização das empresas concessionárias;**
ampliação da cota obrigatória de programação nacional, regional, comunitária e educativa nas emissoras de TV;**
à semelhança do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) existente no Brasil, estipular um percentual de taxação sobre o lucro das concessionárias de rádio e TV, a fim de criar um fundo para programas de incentivo ao audiovisual nacional;**
patrocínios a novas mídias, rádios e televisões comunitárias e projetos de comunicação popular (como na Bolívia de Evo Morales e na Venezuela de Hugo Chávez);**
políticas específicas para a comunicação virtual sem fins mercantis, em sintonia com medidas que favoreçam a universalização dos acessos a tecnologias, através de desenvolvimento de infra-estruturas de rede em banda larga, do barateamento de custos teleinformáticos, da multiplicação de telecentros e pontos de acessos em comunidades carentes e de formação educacional condizente.Tais intervenções englobam regulamentações favoráveis a veículos alternativos e comunitários (como no Chile de Michelle Bachelet e na Venezuela de Chávez); leis de incentivo à produção cinematográfica nacional (como na Argentina de Néstor Kirchner); e linhas de apoio à geração de conteúdos voltados à defesa da cidadania e à preservação de tradições culturais (como no Equador de Rafael Correa e na Nicarágua de Daniel Ortega).
São viáveis ações conjugadas de órgãos estatais de fomento no âmbito de blocos regionais (Mercosul, Pacto Andino). Isso poderá influir na formação de novos eixos para projetos compartilhados de comunicação e difusão cultural. É o que se observa nos recentes acordos de cooperação audiovisual firmados pelos governos de Chile, Argentina, Bolívia, Venezuela, Equador e Nicarágua – todos vedam financiamentos a grandes empresas, que são lucrativas e devem recorrer a bancos privados (ou então que paguem juros de mercado nos empréstimos obtidos em agências governamentais).
Pressões organizadas
Ao definirem novas políticas de comunicação, os governos progressistas da América Latina devem estar cientes de que marcos regulatórios das concessões de rádio e TV são tão indispensáveis quanto a inclusão dos sistemas de comunicação e das indústrias culturais nos eixos estratégicos de desenvolvimento e na agenda dos acordos de integração regional.
O processo de mudanças ainda está se desenhando; por certo haverá tensões, dificuldades e obstáculos. Os conglomerados resistirão a perder áreas de influência ou a se submeter a sanções legais. Basta ver a operação de guerra desencadeada contra o governo Chávez por não renovar, dentro da lei venezuelana, a licença da RCTV, que apoiou abertamente o fracassado golpe de estado em 2002. A grande mídia revidará toda vez que tentarmos salientar, como fez lucidamente o economista Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital, junho de 2007), que ‘os titulares do direito à informação e à livre manifestação do pensamento são os cidadãos em geral e não as empresas de comunicação e seus proprietários’ [ver aqui a íntegra do artigo].
Os governos eleitos pelo voto popular e comprometidos com transformações sociais substantivas devem zelar, cada vez mais, pela prevalência do interesse público sobre as ambições comerciais e monopólicas.
As determinações políticas em vários países parecem apontar na direção de maiores e necessárias interferências governamentais nos rumos do setor. ‘A comunicação deve ter um nítido sentido social e de serviço público. É preciso reforçar o direito à informação, fortalecer a pluralidade comunicacional e facilitar o acesso dos cidadãos à tecnologia’, resume com clareza a presidente chilena, Michelle Bachelet.
O ministro da Comunicação da Venezuela, William Lara, salienta a mudança de enquadramento no caso das concessões de radiodifusão (mudança que os governos de Bolívia e Equador também planejam fazer): ‘Os canais privados de rádio e televisão sempre foram aliados de setores do poder econômico e político. Agora devem estar abertos a todos os setores do país’.
Na abertura do V Encuentro Mundial de Intelectuales y Artistas en Defensa de la Humanidad, realizado em maio de 2007 na cidade boliviana de Cochamba, o presidente Evo Morales disse que jornalistas e intelectuais devem ajudar o governo a criar ‘consciência popular sobre a importância de os meios de comunicação defenderem os valores da vida, e não os valores do capital, do egoísmo e do individualismo’.
O desafio de longo prazo remete à construção de alternativas não contaminadas pela febre da mercantilização – alternativas que não podem prescindir de pressões organizadas por parte de segmentos reivindicantes da sociedade civil, bem como do empenho sistemático por parte de poderes públicos afinados com o ideal de democratização. Teremos que demonstrar capacidade de articular múltiplas ações e cobrar medidas que assegurem emissões descentralizadas, dinâmicas participativas e compromissos duradouros com uma comunicação mais plural.
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e pós-doutor em Comunicação pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO); publicou, entre outros livros, Cultura mediática y poder mundial (Norma, 2006), Sociedade midiatizada (Mauad, 2006) e Por uma outra comunicação (Record, 2003). Com apoio da Fundação Ford, coordena pesquisa sobre as novas políticas de comunicação de governos progressistas da América Latina.