Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As rádios piratas e os discos voadores

A cada inverno se noticia o aparecimento de discos voadores, aqui e acolá. Pilotados por viajantes da pele verde, olhos esbugalhados e antenas de bombril, esses velhos long plays desafiam a nossa lógica e a nossa pragmática. Disco voador, todo mundo já viu, menos eu, como já disse o poeta Carlos Drumonnd de Andrade. Porque, já disse um outro poeta, Oliveira de Panelas, esses discos voadores me preocupam demais. Existirá jabá no lugar de onde eles vêem?

Discos voares nos céus do país e rádios piratas interferindo em avião são duas coisas que aparecem assim, de vez em quando, a cada solstício de inverno. E a grande imprensa adora falar sobre isso. É tudo boato, ou somente a opinião de um grandão, mas ela bota lá, na primeira página. Aliás, a opinião de um grandão – isto é uma autoridade – é, para muitos, igual ao papa falando em 1500: infalível; o repórter não precisa averiguar nada. Para ele, a fala é o bastante. Mas não é.

Por exemplo, no dia 31 de maio o Correio Braziliense reproduz fala do ministro das Comunicações, Hélio Costa, sobre uma possível interferência, causada por possíveis rádios piratas, aparentemente informada pela Infraero ao ministro, possivelmente no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Uma vez que nenhum repórter se deu ao trabalho de confirmar as declarações do presidente da Infraero, e apresentar provas sobre o caso, só nos resta apelar para o condicional. Mas vamos em frente.

Falou, tá falado

Se a grande maioria dos repórteres não se limitasse a transcrever a opinião oficial, sem contestar ou pesquisar – se fossem mais jornalistas – não cometeriam tantos deslizes. Por exemplo, ao Correio o ministro afirmou que não sobrou uma só freqüência para os aviões se comunicarem com a torre e pousarem. Ora, o Instrument Landing System, ILS, é o sistema utilizado para contato da torre com os aviões. Ele opera na faixa de 108 a 112 MHz. Nesta faixa há quase uma centena de opções de freqüência para o piloto se comunicar. Somente um sistema (ou um piloto) com defeito não conseguiria achar uma faixa de freqüência livre entre as tantas disponíveis. Portanto, o ministro comete um equívoco técnico (ou político?) que o jornal deixa passar.

Mas não pára por aí. Na mesma matéria, ele diz que os agentes da Anatel não têm poder de polícia. E isto não é verdade. De acordo com o Art. 3º da Lei nº 10.871, de 20 de maio de 2004, este poder é assegurado. O Supremo Tribunal Federal disse em outra ocasião que isso da Anatel apreender equipamentos é inconstitucional, mas o presidente Lula sancionou a lei assim mesmo. Paciência, é assim que funciona a política. Hoje, a Polícia Federal é chamada quando os agentes da Anatel temem uma reação popular ou apenas para se impor junto às emissoras. A repórter Marina Mazza, que fez a matéria para o Correio Braziliense, não se deu ao trabalho de averiguar a legislação existente e se havia algo errado nela. Falou, tá falado.

Posição da Anatel é clara

Igualmente vale para o terceiro equívoco cometido pelo ministro. Ele afirma que muitas vezes falta interesse dos operadores de regularizarem suas rádios. ‘Se fizessem o dever de casa, em menos de 60 dias teriam uma licença.’ O que seria o ‘dever de casa’? Cumprir os ritos burocráticos? Ora, no caso das rádios comunitárias, é importante lembrar que há emissoras pleiteando uma concessão – isto é, atuar dentro da lei – há cinco ou seis anos. Se o repórter se desse ao trabalho de averiguar como andam os processos no Ministério das Comunicações colocaria a verdade no seu jornal, e não a versão – que não é a verdadeira – da autoridade. No mês passado, o procurador Sérgio Suiama, do Ministério Público Federal em São Paulo, entrou com ação contra o Minicom exatamente porque ele é lerdo no trato com as comunitárias. Mas isto jamais será notícia na grande imprensa.

Também não será notícia o relatório feito pelo Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), finalizado no ano passado, dando conta de que o tempo médio de um processo no Minicom é de 26 meses (relatório do GTI, pág. 17). Depois, o processo ainda vai para a Casa Civil, onde demora mais 14 meses (pág. 17)! Portanto, quem cumpre o dever de casa pode esperar 40 meses, ou 3 anos e 4 meses, para ser reconhecido como não-pirata, isto é, não bandido, pelo Estado.

A acusação de que rádio pirata derruba avião é mofada e tem um ranço político. A própria Anatel já não defende mais isso. Salvo um ou outro agente mais desmiolado, a posição da direção de fiscalização é bem clara: ‘Existe a possibilidade de uma emissora interferir no sistema.’ Não é, portanto, questão de ser pirata ou não-pirata.

Direito à comunicação

É preciso um transmissor descalibrado e de grande potência para que seu sinal seja captado nos ares, e nesta freqüência acima dos 108 MHz. Mas que rádio vai querer isso? Sim, porque nenhuma emissora pirata, ou não pirata, tem interesse em transmitir fora da faixa de 88 a 108 MHz. Só um maluco ou um terrorista (coisa que abunda na cabeça nazista dos norte-americanos) iria querer mandar uma programação para o piloto de um avião. A lógica manda transmitir para quem tem receptor de rádio e todos eles recebem nesta faixa. A propósito, este governo considera que rádios comunitárias devem operar fora do dial! Por isso está locando todas as emissoras em freqüências abaixo de 88 MHz. Ora, se a faixa começa em 88, para quem irão falar as rádios comunitárias? Mas algum jornal ou TV vai se interessar por isso?

Ainda sobre a questão, transcrevo o que se encontra no site Observatório do Direto à Comunicação:

‘No relatório do GTI, entre outros casos, são citadas as interferências sofridas no aeroporto Santos Dummont (RJ) por diversas rádios comerciais, entre elas a Rádio Globo, cujo sinal interferiu nas comunicações aeronáuticas de 15 de maio a 29 de outubro de 2003.

‘O presidente da GOL, Constantino Oliveira Júnior, por exemplo, afirmou aos deputados e senadores da CPI do Apagão Aéreo que ‘a interferência de rádios ilegais na comunicação do piloto com a torre não põe em risco o vôo, já que o piloto troca a freqüência ou faz ponte com outras aeronaves’.

‘Engenheiros especializados em telecomunicações também desmentem Costa e a Abert. Marcus Manhães, do CPqD – Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações, afirma que a acusação não está fundamentada no entendimento técnico da questão, além de ser preconceituosa. Segundo o engenheiro, qualquer transmissão tem potencial de ser interferente, seja de rádio comercial, comunitária ou ilegal. ‘Utilizando essa comoção dos acidentes aéreos, fica muito fácil atribuir responsabilidade a quem é mais fraco. Se o Ministério Público quiser resolver essa questão, tem que verificar, além das não autorizadas, as emissoras comerciais, sua potência e o local onde colocam suas antenas’, diz ele.

‘Manhães ressalta que uma rádio, seja ela autorizada ou não, que opere com potência de até 25 watts (a potência autorizada para as rádios comunitárias) e a uma distância de no mínimo um quilômetro e meio dos aeroportos, jamais poderá interferir na freqüência utilizada pela aviação. E que, mesmo que estejam mais próximas ou operando com potência acima de 25 watts, só poderão fazê-lo de fato se seu sinal for impulsionado por pelo menos outro de potência mais forte, proveniente de uma rádio comercial. Ou seja, uma rádio comunitária jamais pode interferir sozinha numa transmissão aeronáutica, ao contrário das comerciais. ‘As comunitárias com potência baixa têm o menor potencial de ser interferente. As rádios comerciais, por trabalharem com potências muito superiores, são as potencialmente interferentes’, afirma o técnico do CPqD.’

Ninguém ousa checar

O relatório do GTI não cita denúncia feita à Anatel pelo Cindacta I, datada de 06/02/2002, sobre interferências na faixa de 127 MHz, ‘com a programação da Rede Globo’, possivelmente por ‘alguma retransmissora, no município de Bom Despacho’, Minas Gerais. Este é um fato, devidamente registrado. Mas que veículo de comunicação da grande imprensa ousará dizer que a Globo interfere na comunicação dos aviões? Nenhum, ora.

Um outro aspecto a se considerar é a tecnologia. Se, como dizem, um transmissor de baixa potência é capaz de derrubar um avião, é porque ele deve ser uma tralha. Então, realmente, é aconselhável que ninguém viaje nisso. Que tecnologia é essa que é abalada por um transmissor de 25 ou 50 watts? Diante dos avanços tecnológicos nessa área, me parece bem mais provável que um transmissor de baixa potência derrube um disco voador do que um avião.

Na verdade, quem atua com comunicação popular, sabe que o risco não é de uma emissora pirata derrubar o avião. O grande perigo – e real – é das rádios comunitárias derrubarem o modelo de comunicação criado e mantido pelas grandes redes. Uma rádio comunitária faz um estrago desgraçado nesse modelo em vigor: concentrador, monopolizador, censor da realidade nacional. Uma rádio comunitária de qualidade promove a educação, a solidariedade, a arte e a cultura, a cidadania, permite que todos opinem, faz o povo pensar. E o povo pensando é uma desgraça para o poder. Os defensores desse modelo adotaram a estratégia de satanizar as rádios piratas e assim bater nas comunitárias. Por isso, nessas horas, a grande imprensa não faz jornalismo, mas proselitismo. A autoridade fala e ninguém ousa checar se é verdade.

Não é jornalismo

Para essa imprensa, pouco importa saber quais rádios comunitárias são comunitárias de verdade. Ora, a realidade mostra que ter uma autorização não prova que a rádio é comunitária. Eis alguns exemplos: no Distrito Federal, a primeira ‘rádio comunitária’ autorizada a funcionar pelo Ministério das Comunicações está numa igreja evangélica, a Catedral da Benção, em Taguatinga, e tem como presidente a mãe do deputado distrital (corresponde ao estadual no DF) e pastor Junior Brunelli, do PFL (para mais informações – esclarecedoras – sobre o deputado, sugiro uma pesquisa no Google). No Rio de Janeiro, a Igreja Nossa Senhora de Copacabana ganhou uma autorização de funcionamento. No município de São Gonçalo, a uma hora do centro do Rio de Janeiro, a Igreja católica também tem lá sua ‘comunitária’. Aliás, a Igreja católica tem cerca de 200 ‘rádios comunitárias’.

A legislação não permite que instituições religiosas sejam proprietárias ou estejam no comando da rádio. A lei 9.612/98 é clara neste aspecto. Então, como esses políticos e essas igrejas ganharam concessões? Tudo isso nos leva a imaginar que estariam ocorrendo interferências políticas sobre os processos. Para o governo e para a Anatel, essas rádios são comunitárias. Todavia, elas não são reconhecidas pelo movimento das rádios comunitárias. O próprio relatório do GTI reconhece que ter autorização do Minicom não dá legitimidade de comunitária para a rádio.

Estima-se que somente de 10 a 20% das autorizadas pelo governo sejam de fato comunitárias. A grande maioria estaria nas mãos de igrejas (católicas ou evangélicas), políticos ou empresários. Em contrapartida, existe um grande número de rádios comunitárias de qualidade, que fazem um brilhante trabalho social, mas não conseguiram a autorização de funcionamento, ou por conta da burocracia ou por conta de possíveis interferências políticas. São tratadas como marginais pelo Estado.

Hoje a avaliação crítica da mídia é uma realidade. E o repórter deveria estar ciente de que o leitor e/ou telespectador já não engole tão facilmente as matérias tendenciosas ou fantasiosas. Aqui não se questiona que uma rádio, autorizada ou não, possa interferir no sistema de aviação. O que se indaga é sobre o papel da mídia em apresentar somente meia verdade. Com essa meia verdade, pode-se considerar que rádio comunitária – essa coisa que promove a educação e a inteligência – derruba avião. Mas também se pode imaginar que é mais fácil ela derrubar disco voador do que pôr uma aeronave abaixo.

Em resumo: ‘matérias’ deste tipo devem ser tratadas como uma campanha contra o direito à comunicação, para atingir diretamente as rádios comunitárias. Não é jornalismo.

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Jornalista, escritor, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias e diretor do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal