Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Rio e seu novo grande ‘afluente’

Grande parte do que se exclui editorialmente como notícia pode, num contexto analítico, servir à maior compreensão do fato social. Exemplo que transparece numa pequena ocorrência de dias atrás no Rio de Janeiro: um comerciante que tem o seu negócio nas imediações de uma favela foi assaltado à mão armada e viu desaparecerem morro acima a sua valiosa camioneta japonesa (sem seguro) juntamente com documentos, rádio, celular etc. Ainda mal refeito do susto, chamou um dos garotos que costumam guardar carros naquela área e ofereceu a quantia de 150 reais, caso obtivesse a devolução apenas do veículo. Pouco tempo depois, retornou o mensageiro com outro garoto, um ‘soldado’ do tráfico, ‘trepado’ (é o termo do submundo que designa um indivíduo armado) em um fuzil AR-15, que determinou a um subordinado: ‘Pode devolver, que o homem é da área’. E, ostensivamente, acrescentou: ‘Depois, volte à rua e me traga mais dois carros’.

Conhecemos o comerciante, damos garantia pessoal quanto à veracidade do ocorrido. É, claro, assunto pequeno demais para chegar à imprensa – uma gota d’água, sem maiores conseqüências, no oceano das inseguranças urbanas. Mas o evento tem enorme valor de sintoma para a compreensão da gravidade da situação a que se chegou no Rio.

É certamente possível estabelecer comparações pertinentes com outras cidades brasileiras – São Paulo ou Recife, por exemplo –, mas a ocupação e o controle progressivos de territórios urbanos são traços marcantes e institucionalmente assustadores na paisagem carioca. Ao que saibamos, tomar território é tática de guerra de posições.

Vozes discordantes

Por outro lado, esta menção a ‘posições de guerra’ pode ser reinterpretada por ‘belas almas’ sociológicas também como sintoma, não embora de um perigo real, e sim da ‘posição paranóide’ que às vezes caracteriza a classe média, atemorizada pela ameaça de perda de suas tradicionais e vantajosas posições de classe. É o temor que abre portas para as ideologias da segurança absoluta e, conseqüentemente, para os fascismos de toda ordem.

A justa cautela com este tipo de postura veste normalmente a roupagem do discurso politicamente correto, impedindo que se exteriorizem pontos de vista mais sinceros. Mas a imprensa das últimas semanas tem mostrado opiniões de lideranças sabidamente progressistas – o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) é um exemplo – nas quais se reconhece implicitamente a gravidade do estado de coisas e se abre espaço no discurso para a adoção de medidas mais enérgicas por parte do Estado nacional. É o que transparece nas repetidas discussões sobre a conveniência ou não de que as forças armadas usem a experiência obtida no Haiti para intervir nas zonas de violência do Rio.

São enormes os riscos de fracasso para uma operação dessa ordem e não deixam de ter razão as vozes discordantes, quando alegam a inadequação do papel constitucional, do treinamento e das finalidades militares à resolução de problemas típicos da esfera policial. Não são poucos sequer aqueles que assentam a questão exclusivamente na aplicação de políticas sociais efetivas nas zonas problemáticas.

Controle do espaço urbano

Tudo indica, entretanto, que a escala do problema já tenha atingido proporções extraordinárias, verificáveis até por perguntas banais do tipo ‘quem vai aplicar as medidas correspondentes às políticas sociais?’ Ou, então, ‘o que é ainda possível fazer sem aceitar os termos de negociação por parte dos enlouquecidos senhores da guerra?’ Ou ainda ‘a situação não seria mais séria aqui do que no Haiti, em termos militares, considerando-se a diferença de armamentos?’ E ‘não seria um imperativo político forte abrir a caixa-preta da chamada polícia carioca?’

São as difíceis respostas a questões aparentemente banais dentro da normalidade institucional de um Estado de direito que parecem estar levando a grande imprensa a registrar com mais freqüência as discussões sobre o efetivo controle do espaço urbano carioca. Queiram ou não as almas também ‘belas’ do marketing turístico (o nosso ‘Doutor Pangloss’), o grande ‘afluente’ do Rio é, hoje, o risco.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro