Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Muito barulho por nada

‘A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu anistia política ao capitão Carlos Lamarca (…). A viúva de Lamarca, Maria Pavan Lamarca, receberá pensão relativa ao salário de general de brigada, que hoje corresponde a cerca de R$ 12 mil…’

Assim começa a nota distribuída pela assessoria de Imprensa do Ministério da Justiça na tarde de quarta-feira (13/6), intitulada ‘Família de Lamarca é indenizada pela Comissão de Anistia’, que suscitou reações exacerbadas dos porta-vozes da extrema-direita na mídia, um festival de desinformação e parcialidade de veículos da grande imprensa e comemorações ingênuas dos defensores dos direitos humanos.

Depois, no olho do furacão, o novo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão Pires Jr., em carta à Folha de S.Paulo, esclareceu que:

** ‘quem reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Carlos Lamarca foi a Comissão de Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, em (…) 1996’;

** ‘quem primeiro reconheceu a condição de anistiado político a Lamarca, afastando a tese da deserção, foi a Justiça Federal de São Paulo, em decisão transitada em julgado e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça’;

** ‘quem o promoveu a coronel foi a 7ª Vara Federal de São Paulo, em 2006’;

** ‘a Comissão de Anistia (…) não concedeu o pedido da viúva requerente, que solicitava a progressão para general-de-brigada’, **’manteve apenas a decisão proferida anteriormente pela Justiça, concedendo o posto de coronel’.

Então, o que realmente fez a Comissão de Anistia? As únicas novidades foram:

** conceder a Lamarca o privilégio de que desfrutam todos os oficiais ao passarem à reserva, de receber pensão equivalente à patente imediatamente superior;

** considerar Maria e seus filhos César e Cláudia também anistiados, concedendo a cada um deles uma indenização de R$ 100 mil, em parcela única.

Como a indenização aos outros três não provocou celeuma, importando mesmo é a decisão relativa ao ex-guerrilheiro (cuja beneficiária foi a viúva), salta aos olhos que a imprensa gastou muito papel com algo que já havia sido quase inteiramente definido em outras instâncias. Muito barulho por nada, enfim.

Tempo cumprido

O capcioso release do Ministério da Justiça não deixou de dar uma pista para os jornalistas, no quarto parágrafo:

‘Lamarca já havia sido considerado anistiado pela Comissão de Mortos e Desaparecidos e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, considera que agora um ciclo está fechado’.

Mas, os repórteres passaram batido, acompanhando o tom triunfalista do abre. Com isto, fizeram exatamente o que deles esperava a Comissão de Anistia: dar destaque exagerado à sessão de reabertura dos trabalhos desse colegiado, a primeira sob a batuta de seu novo presidente e com o número de conselheiros ampliado para 20.

Também se tratou da primeira sessão realizada desde a posse, como ministro da Justiça, de Tarso Genro, que fez o pronunciamento inicial.

Então, para colocá-la sob os holofotes, nada melhor do que marcar o julgamento de um caso polêmico. Mesmo que passando por cima dos critérios estabelecidos pela própria Comissão de Anistia para a priorização dos processos a serem julgados e do direito de anistiandos que estão há anos e anos na fila, enquanto esse caso foi concluído em apenas sete meses.

O pior é que o mesmo artifício já havia sido usado quando da comemoração do 25º aniversário da Lei da Anistia, em 2004. Para garantir a esse colegiado um bom quinhão do espaço que a imprensa dedicaria à efeméride, foi, por ‘coincidência’, programado o julgamento do caso de Anita Leocádia Prestes, cujo processo teve tramitação ainda mais acelerada: três meses e meio.

A filha de Luiz Carlos Prestes se mostrou à altura do pai. Explicou à imprensa que só pedira à Comissão de Anistia que os anos de perseguições por ela sofridas fossem acrescentados ao tempo cumprido em sua carreira de professora, para que ela pudesse requerer aposentadoria; e que, como não solicitara a indenização de R$ 100 mil que lhe concederam nem se considerava dela merecedora (já que não fora presa ou torturada), doaria esse valor para caridade.

Cobertura tendenciosa

Pequenos truques promocionais e favorecimentos indevidos a algumas celebridades e ‘amigos da corte’ arranham a credibilidade de um programa basicamente correto em seus fundamentos e procedimentos. São 29 mil processos já julgados e em apenas algumas dezenas se verificaram distorções. Mas, é tudo de que os neo-integralistas e os saudosistas da ditadura precisam para alimentar sua grita histérica e demagógica.

O pior é que a cobertura que a grande imprensa deu a este pífio ‘Caso Lamarca’ pareceu provir diretamente dos sites de extrema-direita como o Terrorismo Nunca Mais. Caso da Folha de S.Paulo, que dedicou duas páginas de sua edição de quinta-feira (14/6) a uma reportagem que já começou errando no título: ‘Comissão de Anistia declara Lamarca coronel do Exército’ (a Justiça é que o fizera, no ano passado).

Os textos da sucursal de Brasília e da Redação qualificam cinco vezes Lamarca de ‘terrorista’, embora essa terminologia não seja pertinente para os resistentes que pegaram em armas contra a ditadura militar.

Em carta que foi publicada apenas no Folha Online, eu retruquei:

** ‘A utilização desse termo para designar, erronea e maliciosamente, os grupos de resistência à ditadura militar foi uma idéia dos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas e, hoje, é característica dos partidários da extrema-direita.’

** ‘…protesto contra o uso inadequado dessa terminologia no caso de um revolucionário que jamais quis provocar o caos, mas sim engajar as massas na luta contra o grupo militar que usurpou o poder em 1964.’


** ‘Lamarca jamais poderá ser equiparado aos narodniks do século 19 que atentavam contra o czar e seus ministros com bombas e tiros, nem aos Bin Ladens atuais. Se a Folha pretende qualificá-lo como `terrorista´, deveria também referir-se aos militares da ditadura como `carrascos´, `déspotas´, `genocidas´ ou `tiranos´.’

Em sua coluna dominical, o ombudsman Mário Magalhães apresentou uma justificativa bizarra: ‘Carlos Marighella, um dos líderes da luta armada, se dizia guerrilheiro e terrorista’. Como se o fato de o Marighella não perceber as diferenças entre ele próprio e Savinkov (o social-revolucionário russo que matou o tio do czar) determinasse a terminologia a ser utilizada pela Folha. Seria o caso de pedirmos ao jornal para adotar também os ideais de Marighella…

Verdade restabelecida

O ombudsman reconheceu, entretanto, outros erros, como o endosso à versão oficial (depois derrubada na Justiça) de que Iara Iavelberg, companheira de Lamarca, se suicidou. Mas, deixou passar um deslize sintomático: a afirmação de que ‘o guarda civil Orlando Pinto Saraiva foi morto com um tiro na nuca por Lamarca’ quando da expropriação simultânea de dois bancos em maio de 1969.

É exatamente assim, com ênfase no ‘tiro na nuca’, que tal acontecimento aparece na propaganda enganosa que a extrema-direita faz circular na Internet. Será que os redatores da Folha preferem aproveitar as informações encontradas nos sites de busca do que pesquisar nos arquivos do jornal?

O que se tenta, claro, é dar a impressão de que se tratou de uma execução à queima-roupa. Na verdade, Lamarca se encontrava a uns 40 metros de distância e, ao perceber que o policial se posicionava, com arma em punho, diante da porta pela qual sairiam os militantes da VPR, teve tempo apenas para dar dois disparos dificílimos, de onde estava. Só um atirador de elite como ele conseguiria acertar o alvo, salvando a vida de jovens secundaristas que haviam acabado de ingressar na luta armada. Foi, aliás, a partir daí que Lamarca se tornou um personagem em grande evidência no noticiário.

O editorial do dia seguinte, também muito infeliz, me obrigou a nova manifestação, que, desta vez, a Folha acolheu corretamente na edição escrita:

‘…discordo da distinção que a Folha propôs (…) entre os militantes que foram torturados e/ou assassinados sob a custódia do Estado e os demais, só reconhecendo aos primeiros o direito a reparação. De imediato, por não levar em conta que muitos foram capturados, levados a centros clandestinos de tortura, supliciados e executados, sem detenção formal.

‘Tal distinção só caberia se o Brasil não estivesse então submetido à ditadura e ao terrorismo de Estado.

‘Quem, como Lamarca, ousou confrontar esse regime totalitário, nada mais fez do que exercer o direito de resistência à tirania. Então, não cabe recriminá-lo por assaltar bancos, seqüestrar embaixadores e matar agentes de segurança. Também durante a luta contra o nazi-fascismo foram descarrilados trens, explodidos quartéis, assaltados bancos e mortos policiais sem que a ninguém ocorra hoje vituperar os mártires e heróis da Resistência.

‘É inexato, ainda, que todos os resistentes brasileiros objetivassem a instalação de uma ditadura socialista. Então, anda certo o Estado ao reconhecer como vítimas tantos quantos sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência da quebra da normalidade constitucional em 1964, da qual decorreram todas as atrocidades e horrores subseqüentes.’

O ombudsman, justiça seja feita, restabeleceu a verdade quanto a outro trecho do malfadado editorial, no qual se afirmou que ‘a morte em combate (…) é risco natural para quem escolhe pegar em armas’. Magalhães observou:

‘Assim, a Folha bancou o relato do regime militar. Em 1996, a União concluiu que o guerrilheiro foi assassinado quando – desnutrido, doente e exausto – já não tinha condições de reagir. Não teria, portanto, havido combate algum, mas homicídio, em vez da prisão possível’.

‘Facínora desertor’

O Estado de S.Paulo deu menos destaque ao assunto, mas seu editorial ‘Prêmio ao facínora desertor’, de sábado (16/6), foi uma peça de propaganda de um dos lados envolvidos na polêmica e não, como deveria, uma reflexão eqüidistante. Começando pela ênfase dada à ‘deserção’ de Lamarca, sem em nenhum momento apresentar o outro lado da questão: ele se engajou, na década de 1950, no Exército de um país democrático e se desligou, em 1969, da força repressiva de um estado totalitário. Quem estava mais errado, Lamarca ao desertar do Exército ou o Exército ao desertar da democracia?

Como não poderia deixar de ser, o Estadão, que reconhece e se orgulha de haver conspirado para a derrubada do presidente João Goulart, insiste na desmoralizada tese do ‘contragolpe preventivo’, atacando pessoas pelo que presume que elas fariam – e omitindo que aquilo que a ditadura militar realmente fez foi muito pior do que quaisquer elocubrações imaginosas.

‘Carlos Lamarca, Yara Iavelberg e seus companheiros militantes da Vanguarda Popular Revolucionária ou do MR-8 (…).queriam era derrubar uma ditadura para implantar outra, mais cruel e liberticida’, afirma o editorial/oráculo de um futuro que não houve. Como se isso justificasse as execuções de Lamarca, Yara e outros militantes que foram verdadeiramente abatidos como animais.

E, como vem se tornando uma triste rotina, o texto mais raivoso e panfletário foi o da Veja, que acusou Lamarca até de estar ‘a soldo de uma potência estrangeira’. Mas, aí já saímos do terreno jornalístico. E nem tampando o nariz uma pessoa decente consegue acompanhar essa revista por seus descaminhos atuais…

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Jornalista, escritor e ex-preso político, foi companheiro de Carlos Lamarca na VPR