Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Super-heróis da redação

Houve uma época em que os jornalistas eram quase super-heróis e os super-heróis eram quase jornalistas. Tintim, Clark Kent, o alter-ego do super-homem, e o fotógrafo Peter Parker, também conhecido como homem-aranha, freqüentavam as redações e personificavam uma idéia romântica da profissão: melhorar o mundo. De lá pra cá, as cosias mudaram. Este ano é comemorado o centenário de nascimento do criador de Tintim, o Hergé. A data chama atenção para uma reflexão sobre o que mudou desde a invenção de seu personagem, que virou um ícone desde sua criação, em 1929. O programa Observatório da Imprensa de terça-feira (19/06) quis saber se quem mudou foram os jornalistas ou o mundo.


No editorial, Alberto Dines avaliou que o repórter já foi visto como uma espécie de Dom Quixote, que deseja salvar o mundo. Mas este ideal está bem longe da realidade que se apresenta nos dias de hoje. O apresentador comentou as críticas feitas por Tony Blair, Lula e Hugo Chávez à imprensa e questionou se o modelo de antigamente mudou. Participaram do programa, de São Paulo, o jornalista e escritor Álvaro de Moya e o editor do site Universo HQ, Sidney Gusman; no Rio, o professor e escritor Moacy Cirne e o repórter Rodrigo Fonseca, do jornal O Globo.


Nos tempos do jornalismo romântico, a idéia que se tinha do repórter era a de um sujeito de sobretudo, com um chapéu e um pedaço de papel onde se lia a palavra imprensa. Este personagem estampou as telas nos filmes, páginas de livros policiais e de suspense, e os quadrinhos. Era neles que a figura do repórter Tintim se aventurava pelo mundo inteiro em busca de matérias.


O belga Georges Rémi, mais conhecido como Hergé, foi o criador de Tintim. Ele deu ao personagem algumas características suas, entre elas, o fato de ser jornalista. Tintim era um repórter corajoso e audacioso e a partir dele o mito do repórter romântico ficou idealizado na memória de seus leitores em mais de 40 países. O personagem era acompanhado pelo seu fiel escudeiro, o cachorro Milú, que falava e dava um toque de humor às histórias.


O diretor do festival internacional de quadrinhos Roberto Ribeiro comentou, em entrevista gravada, que um repórter investigativo, acompanhado por seu cachorro que falava, ‘era algo bastante inusitado’ nos anos 30.


O desenhista Hergé era preciosista e mantinha uma equipe que estudava arqueologia, história e geografia. As aventuras eram precedidas de uma minuciosa pesquisa e garantia que o traço do autor fosse fiel à realidade. Ele não se importava de demorar até 1 ano para finalizar cada um dos 24 álbuns publicados. Hergé também tinha uma boa visão do futuro, ele imaginou a chegada do homem a lua quase 20 anos antes disto acontecer.


Tintim à parte, o Super-homem foi o mais famoso herói influenciado pelo jornalismo. O cartunista e jornalista Ota explicou, também em entrevista gravada, que como o personagem foi criado na década de 30, as redações ainda representavam uma imagem romântica.


O fotógrafo Peter Parker, verdadeiro nome do Homem-aranha, também fez suas incursões na gazeta. Apesar das suspeitas atitudes do dono do jornal, J.J. Jameson. Ota contou que esse jornal era mais sensacionalista, ‘o proprietário manipula os acontecimentos para proveito próprio’. Outro super-herói ligado ao quarto poder é o Capitão Marvel. Ele foi, inclusive, acusado e processado de plágio pelos criadores do Super-homem por se parecer demais com Clark Kent.


As mulheres não ficaram de fora desse universo, e Brenda Starr teve sua própria revista. E até personagens de Walt Disney passaram pelas redações: o Tio patinhas possuía o jornal A patada, onde trabalhavam Pato Donald, Peninha e Margarida. E na cola dos quadrinhos, os super-heróis chegaram ao cinema, como é o caso do Homem-aranha, que até hoje garante bilheterias milionárias.


Roteiro sem reedição


Atualmente, a profissão de repórter já exerce tanta magia, com tanta tecnologia envolvendo seu dia-a-dia fica até difícil imaginar que o antigo roteiro das histórias possa ser reeditado.


Álvaro de Moya é pioneiro, no Brasil, no estudo de cartoons. Dines disse que queria aproveitar o mote de 100 anos de nascimento de Hergé e perguntou para o jornalista – que também é produtor de quadrinhos – como era possível que, em 1929, quando o jornalismo ainda não tinha a força e papel político que tem hoje, Hergé tivesse criado o Tintim como um repórter itinerante. Moya contou que os jornalistas sempre foram mais bem vistos nos quadrinhos que nos filmes hollywoodianos, que sempre criticam repórteres e advogados. ‘Nos quadrinhos, os personagens inspirados em jornalistas são sempre os mocinhos’, observou Álvaro. Ele lembrou também que a Companhia das Letras lançou a coleção completa do Hergé.


Moacy Cirne tem 30 livros publicados, sendo 8 deles sobre quadrinhos. Entre eles estão História e crítica dos quadrinhos brasileiros e quadrinhos, sedução e paixão. O apresentador do OI na TV contou que queria insistir na pergunta anterior: ‘a mídia ainda estava iniciando, mas por que o Hergé escolheu a figura do jornalista como protótipo da figura que vai conduzir os acontecimentos?’.


Moacy contou que o caso de Tintim era especial porque ele estava sempre procurando aventuras, e não escrevia nada. ‘Eu acredito que o capitão Haddock é muito mais interessante que o Tintim. Ele conduz a ação’, opinou. Mas lembrou que o repórter era um personagem importante, mesmo não sendo o único da série. O escritor também explicou que Tintim era ligado ao pensamento de direita da época. Há, inclusive, uma das histórias que o próprio Hergé relutou em relançá-la por esse fato estar muito explícito, ‘mas apesar de tudo é um marco importante’, avaliou Moacy.


Dines contou que iria pegar um gancho político e contextualizou que, enquanto Hergé era católico e lançou o Tintim, a Revolução Russa estava completando 10 anos e André Gide já havia lançado vários textos criticando o que acontecia na União Soviética. Por outro lado, o Clark Kent surgia nos Estados Unidos, em 1933. O personagem e ícone norte-americano foi criado por dois judeus e acusado de conservar suas características religiosas. O apresentador questionou Rodrigo Fonseca – crítico de cinema do jornal O Globo e antigo crítico de quadrinhos do Jornal do Brasil – como ele via essa politização.


Humano e sobre-humano


Rodrigo disse que queria chamar atenção para um detalhe que poucos prestam atenção historicamente nos quadrinhos. Ele explicou que o Tintim não é um herói clássico e de ação, mas apenas um gancho da existência das aventuras. O jornalista contou que, com ele, veio uma geração de personagens em que o humano é muito mais super que os super-heróis. ‘Ele se emana de uma geração onde se encaixam Buck Rogers e o próprio Flash Gordon. E que é, na forma, um traço muito helênico, principalmente no caso de Flash Gordon, que vem de uma tradição mais clássica. Mas na dramaturgia, o que os torna especiais é o fato deles serem apenas humanos e encararem o desconhecido de peito aberto, nenhum deles tem super-poderes’. Segundo Rodrigo, o Super-Homem inaugura uma nova era nos quadrinhos, que é a era do sobre-humano. Existem muitas teorias históricas e sociológicas sobre isso. ‘É curioso como esse personagem se cristaliza como um símbolo americano. Você vai ter isso muito mais arraigado a partir dos anos 40 com a questão da guerra e a maneira como os super-heróis vão ser empregados como combatentes da guerra. O Capitão América é muito marcado por isso’, explicou o jornalista do Globo.


Dines contou que Sidney Gusman foi vencedor 6 vezes do troféu HQ Mix, maior premiação sobre quadrinhos no Brasil, e lançou 100 respostas sobre super-heróis, 100 respostas sobre Hanna-Barbera e 100 respostas sobre Batman. O apresentador brincou e pediu que o editor desse apenas uma resposta sobre os super-heróis: ‘como é que você os considera?’.


Sidney comentou que os super-heróis são a realização de um sonho de todo ser humano, no sentido de transpor qualquer dificuldade. No caso do Super-Homem, isso acabou sendo transposto na forma de sua profissão, o jornalismo, que quer realizar o bem acima de tudo, ‘apesar de que o Super-homem, o Homem-Aranha e o Capitão Marvel são extremamente antiéticos no exercício da profissão deles’. Gusman explicou que Clark Kent, por exemplo, só conseguiu entrar no jornal Planeta Diário por ter conseguido um furo de entrevista com o Super-homem, ou seja, ele próprio. E, com isto, tirou de Louis Lane o cargo que ela estava almejando havia anos.


No segundo bloco, o debate girou em torno da imagem heróica do jornalista que não existe mais nos dias de hoje. O antropólogo e ilustrador André Toral explicou, em entrevista gravada, a associação entre jornalistas e super-heróis da seguinte maneira: ‘o jornalista está onde o evento está, então é a profissão sobre a qual o super-herói deveria esconder sua identidade. A outra razão é ideológica. Havia uma crença no profissional liberal, na figura do jornalista, o homem que busca a verdade’. Segundo André, hoje se vive um momento de pouca criatividade em relação aos quadrinhos, e que por isso, ‘é um momento de se remastigar heróis que foram criados no século XX’.


Dines perguntou a Álvaro se a transformação de Clark Kent em Super-Homem não teria sido a tentativa de vencer o super-homem nazista e da propaganda alemã, inspirado erroneamente em Nietzsche. O jornalista afirmou que a criação do herói por dois jovens judeus tem realmente algo a ver com a figura de Nietzsche. Mas eles fizeram o super-herói com a desculpa dele ter vindo de outro planeta. Aqui ele assumiu outra personalidade que se esconde por trás de um óculos escuro. Álvaro apontou isso como um fato diferente porque na maioria dos casos, quem se esconde são os super-heróis e não os personagens que eles representam quando não são super-heróis.


O apresentador do OI na TV questionou então Moacy se o personagem de Tintim não estava relacionado com a tradição romântica do século anterior, de descoberta do mundo, de explorar terras desconhecidas. ‘De uma certa maneira eu diria que sim, é uma descoberta do exótico’. Moacy disse ainda que queria chamar atenção para deixa anterior, que falava da relação entre quadrinhos e jornalistas. O escritor afirmou que ela não se resume apenas ao personagem jornalista, ‘temos um autor chamado Joe Sacco fazendo jornalismo em quadrinhos, sobre a Palestina, a Bósnia’. ‘E que se tornou o grande criador de quadrinhos na atualidade’, continuou Rodrigo Fonseca, que explicou a relevância de Joe a partir da sua inovação no plano da forma. Moacy disse que, desse ponto de vista, Joe pode ser muito mais interessante para discussão quadrinho jornalismo que o Tintim. ‘O político no Joe Sacco é a superexposição absoluta’, avaliou Rodrigo.


Produção contemporânea


Alberto Dines questionou Sidney se existe uma atualização nos quadrinhos com temas contemporâneos e jornalistas contemporâneos. O editor disse que fazia tempo que não surgia um jornalista marcante nos quadrinhos, ‘o que tem acontecido são atualizações desses personagens’. Em seguida, Sidney chamou a atenção para o fato de que várias das histórias de Tintim foram refeitas em razão de reclamações de países erroneamente retratados. Dines avaliou que isso era ‘inevitável’, citando o livro Brasil, o pais do futuro, que fez sucesso no exterior, foi condenado no Brasil e só depois foi resgatado no país. O apresentador se dirigiu para Rodrigo Fonseca para saber sobre jornalistas contemporâneos nos quadrinhos.


O jornalista afirmou que havia uma gama de personagens que não foram citados no programa por não serem protagonistas e não estarem dentro daqueles casos avaliados. Ele citou Ben Urich, o coadjuvante mais conhecido das histórias do Demolidor, ‘ele é quase um equivalente nos quadrinhos ao Valdomiro Pena da nossa cultura televisiva’. Rodrigo explicou que ele era um repórter investigativo e policial, e que tinha uma importância por ser um confidente do Demolidor. Muitas vezes se colocava até contra o protagonista por achar que ele estava perdendo as características humanas. Sidney interveio e disse que Ben Urich era um dos jornalistas mais éticos que já apareceu nos cartoons, ‘é um jornalista do bem’, elogiou.


No terceiro bloco vieram as perguntas dos telespectadores. De Itapetinga, na BA, Moises Viana perguntou para Dines: ‘sou repórter, trabalho muito, ganho pouco e ainda tenho que agüentar o partidarismo político do meu patrão. Isso não é viver como um herói?’.


‘Certamente’, comentou o apresentador. ‘É um super-herói, assim como todos nos que militamos na imprensa de uma forma ou de outra. Chegamos na profissão com um ideal romântico, queremos consertar o mundo, sim, todos. E esbarramos nas dificuldades, seja na sua terra aí na Bahia, seja no Rio, seja em São Paulo. Mas é uma profissão ainda romântica, que se baseia um pouco no messianismo, um pouco no utopismo, mas que infelizmente, talvez isso já se esvazie na primeira semana ou na primeira quinzena quando somos obrigados a trabalhar em condições que não permitem que esses ideais sejam transformados em realidades, em palavras. Você é um super-herói, sem dúvida nenhuma’, comentou Dines.


O apresentador perguntou a Moacy se também ele achava que era um super-herói. O escritor disse que o brasileiro em geral é um super-herói e que existiu super-heróis brasileiros nos quadrinhos. Em seguida, Rodrigo Fonseca avaliou que ‘o maior supervilão das histórias em quadrinho brasileiras é a falta de memória da cultura nacional’.


O quarto bloco do programa foi destinado aos comentários finais. Álvaro de Noya lembrou o caso de um agente de imprensa que foi o primeiro ‘underground’ a lutar contra os nazistas na Europa, na década de 40. Rodrigo Fonseca recomendou a leitura de Tintim pela Companhia das Letras e sugeriu a reedição de Dick Tracy. Sidney Gusmam agradeceu o espaço e disse que o super-herói ainda tem identidade secreta sim, exemplo disso é o novo super-homem. Moacy Cirne lembrou um super-herói brasileiro e natalense chamado Super Cupim e avaliou que a questão do jornalismo vai além dos quadrinhos.


 


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Mudou o mundo ou mudou a imprensa?


Alberto Dines # Editorial do programa Observatório da Imprensa na TV exibido dia 19/06/07


Bem vindos ao Observatório da Imprensa.


Este é o Tintim, um dos mais famosos repórteres do mundo. Começou há quase 80 anos e ficou conhecido pelo menos por 200 milhões de pessoas que compraram os seus álbuns em 40 países. Logo depois, apareceu outro repórter que tornou-se ainda mais famoso, Clark Kent, alter-ego do Superman. Em 1940 aparece um rádio-repórter que foi jornaleiro quando criança – o Capitão Marvel. O homem aranha, nosso contemporâneo, é cientista, mas faz bicos como fotógrafo e geralmente confronta o seu patrão, empresário de jornal não muito escrupuloso.


Apesar desta galeria de heróis e super-heróis de quadrinhos, a imprensa está hoje no banco dos réus, aqui e no exterior. Na semana passada, no mesmo dia, Tony Blair e o presidente Lula falaram muito mal dela. Isto sem falar em Hugo Chávez.


Será que não leram histórias em quadrinhos? Há três gerações a figura do repórter-herói de quadrinhos está associada à luta contra o mal, versão moderna do quixote, o cavaleiro andante do século dezesseis e dezessete. Então o que aconteceu com os jornais e jornalistas? O modelo hoje seria o jornal do Tio Patinhas, A Patada, que só se preocupava em vender mais exemplares do que o rival, A Patranha?


O que aconteceu com aquela que foi considerada a última profissão romântica? Mudou o mundo ou mudou a imprensa?