Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Judiciário e os chinelos do lavrador

Quando Angeline Jolie ou Cameron Díaz aparecem usando jeans, camiseta, chinelo de dedo e boné, a imprensa badala: elas são fashion. É até justo, pois o chinelo de dedo é um dos orgulhos da indústria nacional. Quando a Gisele Bündchen faz anúncio de chinelo de dedo, tenta nos vender a ilusão de que basta usar a mesma sandália para subir na escala da beleza e do charme.

Mas a mesma imprensa esquece o item fashion quando dá a notícia das sandálias do lavrador:

‘Um simples par de chinelos de dedo, costumeiramente usados por tantos brasileiros, abriu uma ampla polêmica no Judiciário do município de Cascavel (PR), situado a 500 quilômetros de Curitiba. No dia 13, o juiz da Terceira Vara do Trabalho, Bento Luiz de Azambuja Moreira, cancelou uma audiência de instauração de dissídio apenas por ter constatado que as sandálias de dedo vestiam os pés de uma das partes, o trabalhador rural Joanir Ferreira. O calçado, segundo argumento relatado pelo próprio juiz no termo de audiência, é incompatível com a dignidade do Poder Judiciário’. (O Estado de S.Paulo, 23/6/2007)

Marketing da sandália

O advogado do lavrador tentou argumentar com o juiz, dizendo que seu cliente ‘é pessoa humilde, analfabeta, desempregada e foi à audiência com a melhor roupa que tinha’. Não adiantou. Só conseguiu marcar uma nova audiência. O juiz alegou que o advogado estava ‘explorando politicamente o fato e que juiz não tem que se explicar, porque, em audiências, tem poder de polícia’. O presidente da OAB do Paraná classificou a atitude do juiz como ‘aberração jurídica’, mas não disse se Joanir Ferreira vai poder ter sua audiência usando chinelos ou será obrigado a comprar um sapato só para a ocasião.

Tomara que essa ‘aberração jurídica’ continue sendo assunto na imprensa e que o trabalhador Joanir Ferreira não seja esquecido. Ele pode ser personagem de muita matéria nos jornais. Algumas sugestões:

** Os jornalistas de moda podem, por exemplo, mostrar por que a mesma roupa – jeans, camiseta, chinelo de dedo e boné (um desacato quando usada por um desempregado) – é fashion quando usada por celebridades como Angeline Jolie e Cameron Díaz e merece texto e fotos em todos os jornais.

** Os jornalistas de economia poderiam discutir se deu certo o marketing da sandália que – usando eventos de moda e apelando para criatividade de costureiros – tentou mudar a imagem do produto. O que até então era um chinelo popular (que não tem cheiro e não solta as tiras) passou a ser vendido como um item de moda. Graças à imprensa, sabemos que foram vendidos 162 milhões de pares em 2006 e que a marca está presente em 80 países. Resta saber se os consumidores brasileiros – na sua maioria trabalhadores pobres – escolhem esses chinelos de dedo porque são fashion ou porque o preço é acessível.

Vendendo o peixe dos anunciantes

** Os jornais poderiam encomendar uma pesquisa aos institutos especializados e perguntar o que – na opinião dos brasileiros – prejudica mais a imagem do Judiciário: a roupa que as pessoas usam no tribunal ou os escândalos envolvendo os altos escalões deste poder.

** E os analistas de comportamento poderiam discutir se existe preconceito no Brasil e se a origem de todos os preconceitos é econômica.

Vamos esperar e torcer para que o caso das sandálias do lavrador não seja esquecido. E que no dia da próxima audiência haja um fotógrafo de plantão no tribunal para mostrar se os chinelos de dedo foram ou não aceitos no tribunal. E que a mídia não mentiu aos leitores ao vender o peixe dos grandes anunciantes que garantem que os velhos chinelos de dedo – talvez o calçado mais acessível para os mais pobres – podem ser um item fashion.

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Jornalista