Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Histórias de um sertanejo, mineiro, brasileiro

‘Era uma pessoa normal’, diz a jornalista Carla Rodrigues sobre Herbert de Souza, o Betinho. A intenção de Carla, ao escrever a biografia Betinho – sertanejo, mineiro, brasileiro [lançado em 19 de junho], foi mostrar esse lado do economista/ativista/sociólogo que veio do sertão de Minas Gerais. Tarefa difícil, sem dúvida.

Betinho era inquieto. Sua vida era um exercício de contrastes: da luta contra a morte com a paixão enérgica na agitação política. Participou de movimentos estudantis nos anos 60, lutou contra a ditadura e teve de se exilar. Primeiro, no Chile; depois, no Canadá. Voltou, como o mais famoso ‘irmão do Henfil’, para continuar sua luta por um Brasil mais justo, trabalhando com uma intensidade que parecia buscar compensar a reclusão a que foi submetido durante a adolescência – uma tuberculose o obrigou a ficar confinado dos 15 aos 18 anos.

Nos anos 80, fundou o Ibase, atualmente uma das maiores e mais importantes ONGs do Brasil, pois acreditava na participação política da sociedade civil brasileira. Com Carlos Afonso, hoje diretor de planejamento da Rits, fundou o Alternex, o primeiro provedor de serviços de internet do país voltado para a sociedade civil, já nos anos 90.

Hemofílico, precisava fazer transfusões de sangue e, em uma delas, foi infectado pelo HIV, ainda nos anos 80. Passou dez anos lutando contra o vírus e a favor de políticas de Estado para quem, como ele, continuava com esperança de viver. Daí surgiu outra ONG, a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e uma grande campanha contra o preconceito.

Mas a campanha que acabou marcando a imagem de Betinho em todos os setores da sociedade brasileira foi a Campanha Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, lançada também nos anos 90, época em que estava com a saúde mais debilitada. O mineiro, contrariando o estereótipo, fez alarde e mobilizou o país em prol de uma refeição decente por dia para cada cidadão. Segundo Carla, ele ‘estava tentando justificar a própria sobrevivência’. Morreu em 1997, aos 61 anos, mas todas as suas lutas continuam vivas.

A oposição entre doença e vida ativa foi bastante trabalhada por Carla Rodrigues, que foi assessora de comunicação de Betinho por três anos. A jornalista entrevistou 63 pessoas para mostrar diversas faces de um personagem que, para muitos, tinha uma certa aura de santo. Não à toa. Entretanto, Carla buscou desmistificar essa imagem ao mostrar que Betinho não era nada mais do que um cidadão. ‘Somos todos assim’, diz.

Leia abaixo a entrevista concedida pela autora da biografia à Rets.

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Como foi fazer a biografia do Betinho? Por quanto tempo você conviveu com ele?

Carla Rodrigues – Conheci o Betinho em 1993, quando fui contratada para fazer assessoria de comunicação para ele, quando começava a campanha contra a fome. Trabalhei diretamente com o Betinho por três anos. Há algum tempo fui chamada para escrever sua biografia. A editora estava procurando uma jornalista e pensaram no meu nome. O projeto, na verdade, é de um editor, o Pascoal Souto, que eu tinha conhecido na época do Ibase. Ele propôs que eu fizesse e aceitei.

E como foi o trabalho de pesquisa?

C.R. – Entrevistei 63 pessoas. A primeira coisa que fiz, na verdade, foi ler material sobre ele. Quando o Betinho recebeu o diagnóstico de que tinha o vírus da Aids e descobriu que tinha pouco tempo de vida, começou a deixar alguns relatos. Entre eles, uma série de entrevistas com o [jornalista] Ricardo Gontijo, que viraram o livro Sem vergonha da utopia – Conversas com Betinho (ed. Vozes). Além disso, eu tinha três anos e meio de convivência direta com ele, então sabia de muitas coisas. Mas era muito pouco. Afinal, ele viveu 61 anos. Li ainda muito sobre o período histórico em que ele militou politicamente e aí comecei a fazer as entrevistas. Fui para Belo Horizonte, onde ele foi criado, para Ribeirão das Neves (MG), onde também morou, para Bocaiúva, onde nasceu, e também fui para São Paulo entrevistar gente que conviveu com ele no período de clandestinidade. Em Itatiaia (RJ), conversei com seu médico, dr. Walter Vieira, que o tratou nos últimos dez anos de vida. Cada entrevistado te dá dicas de outros e daí por diante. Fiz uma pesquisa cronológica.

Durante essas conversas, houve algum fato que contrastasse com a imagem que a maioria das pessoas tem do Betinho?

C.R. – O Betinho já era uma pessoa muito conhecida quando eu aceitei fazer o livro. Então, me preocupei em escrever um livro não sobre todas as coisas que as pessoas já sabem, mas para desmistificar sua imagem. Ele era uma pessoa comum, como outra qualquer. Partindo dessa idéia, encontrei relatos de muitos fatos que as pessoas não sabiam, pois ele não contava. Por exemplo, na militância estudantil, Betinho fez um movimento para derrubar o diretor da faculdade de Ciências Econômicas – não por razões totalmente políticas, mas pessoais, pois estava sendo preterido na concessão de bolsas. Há várias passagens deste tipo, há vários momentos em que ele não corresponde ao mito, ao santo, ao personagem ideal. Isso é importante, pois mostra como era uma pessoa normal. Somos todos assim.

O Betinho se envolveu com diversas causas. De onde vinha essa inquietude?

C.R. – Ele nasceu hemofílico, então sempre teve uma vida cheia de restrições. Na infância, não podia correr, não podia jogar bola, subir em árvore etc. Aos 15 anos, teve tuberculose. Toda a adolescência, até os 18 anos, passou trancado num quarto, nos fundos da casa, achando que ia morrer. Ele estava muito mal quando a cura foi descoberta, mas, medicado, venceu a doença. Quando saiu desse período de reclusão, dizia que era um ‘sobrevivente em busca de vida’. Estava disposto a abraçar o mundo. Começou a militar na Ação Católica, onde as irmãs mais velhas atuavam e, daí em diante, não parou. Dali em diante, sua vida toda foi dedicada a alguma causa. Minha hipótese é de que ele estava tentando justificar a própria sobrevivência. Sobreviveu à hemofilia, depois à tuberculose, à ditadura militar (não foi preso, nem torturado), a uma hemorragia de estômago – quando teve que tirar metade do órgão, ainda clandestino –, depois sobreviveu ao vírus da Aids por dez anos, enquanto seus irmãos sobreviveram por dois. Então, toda vez que sobrevivia, ele justificava sua vida militando e abraçando uma causa. Quando os irmãos morreram, por exemplo, Betinho começou a militar pelos pacientes de HIV/Aids, pelos direitos destas pessoas, pela distribuição gratuita de remédios. Há inclusive uma lei, do governo Fernando Henrique, chamada ‘lei Betinho’ (10205/2001), que proíbe a venda de sangue.

As campanhas, então, sempre tinham alguma referência à sua vida pessoal?

C.R. – Não necessariamente. A Aids tinha, mas a campanha contra a violência, quando fundou o Viva Rio, não. A vida dele não teve nenhuma marca de violência urbana.

Ele chegou a considerar alguma das doenças como a mais complicada?

C.R. – Acredito que tenha sido a Aids. Ele nasceu hemofílico, no sertão de Minas Gerais, num momento em que ninguém sabia o que era hemofilia. Se salvou da tuberculose. Foi para o Canadá e sofria com as articulações, um dos sintomas da hemofilia. Tinha muitos problemas com o joelho. A Aids, porém, surgiu num momento em que a hemofilia não ameaçava mais e ele achava que ia morrer de velho. Isso aconteceu em 1986, quando ele tinha 51 anos e a hemofilia estava totalmente controlada. Veio, então, a Aids, que não tinha e não tem cura, e que encurtava a perspectiva de vida. Ele acabou morrendo cedo, com 61 anos. Apesar disso, parece que viveu muito, pois desde que nasceu, já se esperava que fosse morrer logo. Betinho superou a morte várias vezes.

Como era a relação do Betinho com a família?

C.R. – Ele teve que se afastar muito da família, pois ficou de 64 até 79 na clandestinidade ou no exílio. Isso o afastou de Minas, das irmãs mais velhas, da mãe. Por outro lado, sempre foi muito próximo dos irmãos. O Henfil o ajudou muito no período da clandestinidade e do exílio. O Chico Mário era o caçula e o Betinho cuidava dele quase como filho. Há ainda a relação com os filhos. Foram dois, um de cada casamento. O primeiro, Daniel, nasceu na clandestinidade, e o segundo, Henrique, quando ele já tinha voltado ao Brasil. Com o Daniel, ele sempre teve muita dificuldade de relacionamento. O menino nasceu na clandestinidade e depois os pais se separaram. O filho viveu o exílio na Europa, com o pai no Canadá, e só foram se reencontrar quando veio a anistia. Ou seja, perderam dez anos de relacionamento de um período de infância e juventude. O Betinho reconhecia que refazer os laços com o Daniel foi difícil.

O Betinho sempre trabalhou organizando a sociedade civil – desde seus tempos de Ação Popular até a fundação de grandes ONGs brasileiras. Ele acreditava que esse era o caminho para o fortalecimento da democracia brasileira?

C.R. – Ele começou na Ação Católica, depois fundou a Ação Popular. Em 69, a AP virou maoísta e ele seguiu a linha, mas acabou se desligando da organização. Resolveu ser independente. Durante o exílio, porém, flertou muito com a possibilidade de se filiar ao PTB, que depois viria a ser o PDT do Brizola, pois os dois tinham sido muito próximos. Mas, devido a essa experiência maoísta, acabou preferindo seguir uma linha de atuação independente. Por isso, quando voltou ao Brasil quis fundar o Ibase, por algo que ele chamava de ‘opção pela sociedade’. Ele achava que o Estado tinha seu papel, mas que a sociedade deveria agir independente dele. Era apartidário. Tanto que na eleição de 1994, preferiu não declarar apoio a ninguém. Foi muito criticado pelos petistas, pois era um homem de esquerda.

Por essas e outras, o Betinho tinha uma aura de santo?

C.R. – No final, com a campanha contra a fome e a história de estar marcado para morrer, ele foi adquirindo essa aura de santo. Por isso, o objetivo do livro foi mostrá-lo como um personagem qualquer. Ele não era um santo, era um cidadão.

Apesar dessa aura, o Betinho passou por uma situação delicada em 1990, quando foi acusado de receber dinheiro de dirigentes do jogo do bicho, no Rio de Janeiro. Como ele encarou esse episódio?

C.R. – Ele disse que foi o momento mais difícil da sua vida. A frase dele é: ‘foi o episódio mais duro da minha existência inteira’. Ele reconheceu que cometera um erro e, em conseqüência desse erro, sua ética foi questionada. Ficou muito abalado e, depois disso, sua saúde piorou muito.

O deputado federal Fernando Gabeira certa vez afirmou que esse episódio, na verdade, deu um alívio ao Betinho, por não ser mais necessário carregar o fardo de santo.

C.R. – O Betinho escreveu um artigo no qual respondia a quem dizia que a ética tinha ficado órfã. Ele escreveu: ‘A ética não está órfã, ela está mais viva do que nunca. Felizmente, a ética não precisa de mim. É muito bom que se perca a fé na minha infalibilidade. Já era tempo.’

Essa responsabilidade toda o incomodava?

C.R. – No fim, sim. Ao mesmo tempo em que tinha a vaidade do reconhecimento da sua credibilidade, da sua importância e poder político. O problema do episódio do bicho foi justamente ter afetado sua credibilidade.

Pessoas próximas a ele dizem que, apesar de todos os problemas e trabalhos, o Betinho era uma pessoa muito bem humorada. Ele encarava esses percalços com ironia?

C.R. – No início desses episódios, ele teve, sim, seus momentos de bom humor, mas não eram freqüentes. Ele ficou muito mais deprimido do que bem-humorado. Mas ele brincava com tudo – até com a própria morte.

A imagem do Betinho ficou bastante marcada pela campanha contra a fome. Essa foi mesmo a ação de destaque dele?

C.R. – Não sei responder. Depende do que você considera destaque. Com certeza, foi a que o colocou mais nos jornais. Até a Anistia, quando a Elis começou a cantar pela volta do irmão do Henfil, o Betinho era importante dentro do universo político de esquerda, onde atuava. O irmão famoso era o Henfil, cartunista, colunista, personagem público. Tanto que o Aldir Blanc, quando compôs a música [O bêbado e a equilibrista], disse que se tivesse escrito que sonhava com a volta do Betinho, ninguém iria saber quem era. O que a campanha contra a fome fez foi torná-lo conhecido na rua. Aparecia na televisão, foi homenageado por uma escola de samba (Império Serrano, em 1996). Ele já era conhecido antes da campanha, mas ela o tornou popular.

Era o trabalho do qual mais se orgulhava?

C.R. – É difícil dizer. Ele se orgulhava de tudo o que fez. Tinha muito orgulho do Ibase, mas a ONG não saía todo dia no Jornal Nacional.

De todos os ideais que ele defendeu, qual continua mais forte hoje?

C.R. – Acho que a ‘atitude Betinho’, o fazer as coisas pela sociedade. Tudo o que hoje se chama de responsabilidade social, inclusão social, voluntariado, é uma herança do trabalho do Betinho. E não é pouca coisa.

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Da redação da Revista do Terceiro Setor, publicação online da Rede de Informações para o Terceiro Setor