Estamos imersas/os no tempo e no espaço e tem sido a partir dessas duas categorias que somos percebidas e percebemos o mundo em que vivemos. Nosso tempo é 2007, século 21, inclusive denominados pós-modernos. Nosso espaço, nosso território: Brasil – país latino-americano, de cultura multi-étnica, que convive com as imensas desigualdades sociais e, entre outras coisas, com os resquícios do período da ditadura militar, este que em nosso tempo provoca arrepios quando o que está em jogo é a liberdade de expressão.
A imprensa, empresários/as, jornalistas, intelectuais, artistas e movimentos sociais, são aqueles/as que mais têm se interessado ou mais debatido as questões acerca da liberdade de expressão em tempos de ‘liberdades indiscriminadas’ e/ou que tolhem outras liberdades. A questão que se aborda aqui neste espaço não está mais na limitação ditatorial do que é pensado, mas no seu extremo, nos abusos por que a liberdade de expressão vem passando e quais os caminhos a serem trilhados no combate aos mesmos, uma vez que o direito à liberdade de expressão não pode ferir outros direitos humanos.
Direito à comunicação
A música-bomba no cabaré do grupo de forró ‘Mastruz com leite’, na íntegra, diz o seguinte: ‘Jogaram uma bomba no cabaré, voou para todo lado pedaço de mulher, foi tanto de caco de puta pra todo lado, dava pra apanhar de pá, de enxada e de colher! No meio da rua tava os braços de Tereza, no meio-fio tava as pernas de Raché, em cima das telha os cabelo de Maria, no terraço de uma casa tava os peito de Isabé! Aí eu juntei tudo e colei bem direitinho fiz uma rapariga mista, agora todo homem quer! Pode jogar uma bomba lá no cabaré, que eu junto os cacos das puta, pra fazer outra mulher!’
Na nossa Constituição, artigo 5º, parágrafo IX, há a seguinte referência: ‘Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: (…) É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.’
Há ainda, no artigo 220, parágrafo 2º, o seguinte: ‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (…) É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.’
A citação de tais leis nos apresenta, rapidamente o resultado da luta pela liberdade, pela possibilidade de expressar o que se sente, de falar o que se pensa, como máximas do direito humano fundamental à comunicação. Esse esforço não tem sido em vão. Cidadãs e cidadãos vêm cada vez mais buscando alternativas às formas hegemônicas de comunicação e a própria luta dessas pessoas e movimentos tem sido certamente uma das nossas maiores conquistas.
O alvo é a mulher
A questão é que o outro lado da moeda, ou seja, alguns resultados dessa ilimitada liberdade (se assim se pode dizer) de expressão, como a música acima e tantas outras, chama à reflexão sobre até que ponto é possível continuar assim, como proceder e a quem cabe responsabilidades quando é chegado o limite.
Na nossa Constituição está explícito: ‘Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm o direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito a lei deve proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer tipo de discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.’
Se está explícito em nossa Constituição que a lei deve proibir qualquer forma de discriminação em qualquer situação, então é necessário retomá-la. Se a idéia transmitida pela ‘música’ ‘Bomba no Cabaré’ incita discriminação e faz apologia à violência, então estranhamos que a canção não estimule nenhum tipo de apreensão, proibição e/ou qualquer outra sanção por parte dos órgãos competentes. Seria muito bom pensar que isso não acontece porque o alvo da violência é uma mulher, ou melhor, várias mulheres. E, para sermos mais específicas, as mulheres que estão em situação de prostituição.
Apologia e incitação ao crime
Seria demais indagar qual a ‘graça’ dessa ‘música’? Por que causa diversão? Será que ela tem adesão de uma parcela da população (independente de sua classe social) porque diz que as ‘putas estão sendo explodidas’ ou simplesmente porque ataca as mulheres, independentemente de serem putas ou não? Nos dois casos, é importante destacar que a ausência de ações efetivas contra esse tipo de abuso por parte do Estado colabora com a perpetuação da violência.
As estatísticas de violência contra as mulheres falam bem do quanto estas têm estado neste lugar de vulnerabilidade, tanto porque sofrem a violência sócio-culturalmente institucionalizada, quanto porque o Estado tem caminhado com passos vagarosos quando se trata da adoção de medidas efetivas para o enfrentamento a esse tipo de violação aos direitos humanos. Uma das provas do que se acaba de dizer foi a tardia, mas muito bem-vinda, Lei Maria da Penha, que chegou para inserir as mulheres na Constituição, uma vez que, até então, eram tratadas como qualquer coisa, menos como cidadã para a qual o Estado também possuía responsabilidades.
Se as formas comuns de desrespeito aos direitos humanos – como a apologia e a incitação ao crime, inclusive à prática da tortura, linchamento e outras formas de violência, bem como à discriminação racial, de gênero, religião e orientação sexual – não têm sido reconhecidas pelo Estado, cabe a nós, sociedade civil, embora não seja nossa obrigação, lembrar da responsabilidade a quem a tem.
Não dá para calar
O que se deseja é dignidade, reconhecimento e respeito. O que se deseja é a efetivação das leis por parte do Estado e, por assim dizer, a punição de quem corrobora para a disseminação da violência. O que se deseja é um mundo sem violência. Contudo, sabemos que este só se alcançará se também os símbolos dessa cultura forem postos em xeque.
No mais, é importante enfatizar que aqui não se reivindica o tolhimento da liberdade, nem a volta à censura, mas, sim, a efetivação dos direitos das mulheres que, temporal e espacialmente, têm ficado à margem dos processos da vida pública e violentadas no mundo privado. Se com a sua emancipação se deu e está se dando cada vez mais também sua inserção no mundo público, por outro lado também as violências ficam mais visíveis e é importante enfatizar a importância e necessidade de medidas efetivas contra quem protagoniza tais agressões, mesmo que, e inclusive, se estas venham em forma de cartazes de shows (por exemplo: ‘…até meia noite: mulher grátis’), propagandas de cerveja e/ou de músicas como a que a foi citada acima e tantas incontáveis outras.
Leis não faltam, pressão da sociedade civil também não. Se as leis existem para, por um lado, prever direitos e, por outro, instituir sanções a quem infringir os códigos de conduta que possibilitam cidadãs e cidadãos ao usufruto de tais direitos, recorremos às mesmas e aos órgãos competentes para que tomem as atitudes cabíveis e efetivem assim a cidadania das mulheres, em qualquer situação, em qualquer espaço, mas não em qualquer tempo. O tempo para transformações é hoje, é agora. Não dá para fingir que não ouvimos quando ouvimos, não dá para fechar os olhos quando vemos, não dá para calar quando sentimos. A vida é agora e a efetivação do direito das mulheres é para ontem.
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Mestra em Antropologia/UFPE Pesquisadora do SOS Corpo – Inst. Feminista para Democracia e Integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco