Não deixa de ser instigante imaginar o que aconteceria se os deuses ou demônios porventura resolvessem atender algumas das pragas e desgraças que meio mundo roga contra os EUA. Nem precisa dizer que o estrago ia ser grande, principalmente – e aí o aspecto irônico da coisa – para os que mais vociferam contra o capitalismo, o imperialismo, a ingerência que normalmente se atribui aos norte-americanos. O que o fanfarrão Hugo Chávez, por exemplo, faria com o seu rico petróleo se não fosse a meca do consumismo para abarrotar os cofres dos países produtores, ainda mais com o barril beirando os 100 dólares?
Pois uma mostra desse cenário apocalíptico pôde ser vislumbrada nas últimas semanas, com o recrudescimento da crise do setor imobiliário norte-americano levando as bolsas de todo mundo a amargar prejuízos colossais, na esteira de rombos não menos dramáticos por conta da inadimplência em massa nas carteiras de financiamento de imóveis.
Mais do que um fenômeno isolado e passageiro, a presente instabilidade parece ser a ponta do iceberg de uma situação que pode contaminar a economia mundial como um todo, pois a se confirmar a expectativa de recessão nos EUA, a causa imediata e mais dolorosa será uma inevitável retração das importações, com prejuízo para quase todo mundo, já que é para lá que escoa o grosso da produção mundial.
Simulacro jurídico
O curioso é que apesar do baque, a deflagração da crise não chegou a surpreender os mercados, muito pelo contrário: os sinais da erupção iminente já vinham sendo detectados por observadores, alertas que no entanto nem a normalmente atilada mídia norte-americana deu a devida atenção. Vistas grossas que parecem corroborar a tendência da mercantilização ostensiva que toma conta do setor midiático em geral, e em cuja onda a imprensa tupiniquim também dá claros sinais de estar surfando. Afinal, tanto lá como cá o setor imobiliário responde por fatia considerável do faturamento dos mais diversos veículos de informação, daí a explicação para que a explosão de crédito fácil e indiscriminado que originou a crise nos States tenha sido solenemente ignorada, ou no mínimo subestimada. Pecado compreensível mas imperdoável diante dos prejuízos acarretados com a sonegação de informações dessa relevância.
Faturamento, eis o fator determinante para que esta e outras omissões venham se tornando rotineiras na performance midiática, em função do preocupante monopólio que nos últimos anos tem avançado sobre o setor nos principais centros. Avanço, como se sabe, que tem no megaempresário australiano Rupert Murdoch o epicentro de uma voracidade perigosa para o próprio sistema democrático, sabendo-se do poder conferido pelo controle maciço de veículos de informação.
Aliás, é estranhável que as regras antitruste já existentes nas democracias modernas não venham sendo aplicadas num setor cujo peso na sociedade dispensa comentários. Mesmo nos Estados Unidos, onde Murdoch passou a ser o publisher mais importante com recente aquisição do Wall Street Journal, a bíblia do jornalismo econômico, essa questão do monopólio da informação parece emperrada no velho impasse sobre até onde a legalidade é o mais adequado à sociedade, quando desmentida pela prática.
Ora, é a democracia, dirão os ascetas do estado de direito pleno, para quem tudo se justifica dentro do âmbito das leis e da competitividade que o sistema estimula. Não é bem assim, é claro, pois isso seria atrelar a democracia aos ditames do capitalismo, à égide do poder financeiro, confusão que é feita costumeiramente à revelia dos interesses e do bem-estar da coletividade, e que por isso mesmo deve ser repelida. Como tudo mais que possa ser prejudicial à sociedade, ainda que legalmente amparado. Mesmo porque as leis são feitas pelos homens e, como tal, passíveis de erros e distorções.
Exemplos nesse sentido é o que mais temos por aqui. A começar por nosso sexagenário Código Penal, cujos meandros e enxertos feitos ao longo dos anos resultaram num simulacro jurídico que nem de longe atende as necessidades de uma sociedade literalmente desamparada de tudo. Enfim, como esperar por um aperfeiçoamento das instituições se as leis não ajudam e não há sequer vontade política de fazê-lo?
Como Judas
Embora não seja nenhuma novidade essa nova faceta da imprensa, com o balcão de negócios se sobrepondo a pauta jornalística propriamente dita, tendência que este Observatório tem apontado com freqüência, muita gente ainda reage em função de motivações políticas apartadas da realidade, na tentativa de reabilitar o que há de mais obscuro e obsoleto em termos ideológicos. Daí os ataques sistemáticos a posições que de certa maneira passaram a ser irrelevantes para a imprensa, na medida em que os próprios governos de esquerda tem-se curvado às regras do mercado, da economia globalizada, que para todos os efeitos têm prevalecido sobre as arengas político-ideológicas.
Tem sido assim tanto em países do primeiro mundo, como Inglaterra e Espanha, os exemplos mais pungentes dessa conversão do socialismo, como em plagas menos aquinhoadas, entre as quais este Brasil, que se consolida perante a comunidade internacional graças, exatamente, ao conservadorismo de uma política econômica sempre combatida por Lula no passado.
Não é outra a razão pela qual a imprensa de um modo geral já não se imiscui tanto nas discussões de cunho político-partidário, sem falar do inevitável desgaste que qualquer tipo de engajamento acarreta. Como em qualquer ramo, a mídia depende de venda, de faturamento, e se o governo não atrapalhar – ou, melhor ainda, proporcionar condições de crescimento – o resto torna-se secundário. Até mesmo porque uma postura diferente não encontraria respaldo na sociedade, cuja expectativa em torno do governo é mais ou menos a mesma, ou seja, basicamente que propicie melhores condições de vida e crescimento.
Nesse sentido, só mesmo um país com alto nível de desenvolvimento como os Estados Unidos pode assimilar com naturalidade um posicionamento político mais explícito por parte da imprensa, como fez ainda agora o New York Times, ao declarar seu apoio a candidatura Hillary Clinton (democrata) e do senador John McCain (republicano).
Dá para imaginar o alvoroço que por aqui causaria uma declaração semelhante, em plena campanha presidencial, por parte da Rede Globo, por exemplo, que por muito menos costuma ser malhada feito Judas em sábado de aleluia. Se é como se diz, daqui há uns cem anos talvez possamos nos dar a esse luxo.
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Jornalista, Santos (SP