Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A telenovelização do universo brasileiro

A imagem da mídia como manada enfurecida ou matilha esfaimada está superada. Não representa nossa realidade. No domingo (24/6), os dois jornalões paulistanos ofereceram aos seus leitores a opção para um novo símbolo da nossa imprensa: uma tela de TV.


As provas: na Folha de S.Paulo, a enorme entrevista da nova namoradinha do Brasil, Mônica Veloso — a quem o jornal, dois dias depois, congnominou de ‘a musa do escândalo’. Destaque no alto da capa da edição dominical do ‘jornal a serviço do Brasil’ e uma página inteira, muito bem produzida, repleta de frases de dramalhão mexicano, tipo ‘amei demais… aprendi muito porque sofri demais… exploraram a minha intimidade’. Faltaram alguns pontos de exclamação, mas isso não tem a menor importância – deve ter sido a matéria mais lida naquela edição.


No outro canto da telona, encenada pelo Estado de S.Paulo, com um pouco mais de compostura (ou menos competência), a entrada em cena da ‘legítima’, Senhora Dona Verônica, que estoicamente perdoa o marido, Renan Calheiros – ‘a maior vítima nisso tudo’ – e ainda dá-lhe um cascudo: ‘Homem é mesmo muito besta!’ (com ponto de exclamação).


Casa de quem?


Nossos jornais telenovelizaram-se, o país telenovelizou-se, a política telenovelizou-se, nossos valores telenovelizaram-se, a luta contra a ‘censura’ telenovelizou-se, assim como a esquerda, a direita e as aspirações nacionais telenovelizaram-se. Vivemos em capítulos: a cada seis meses muda o feitio do cenário, a cara e a roupa dos figurantes, mas a trama e o teor são os mesmos.


As aparição das rivais no mesmo dia foi coincidência, certamente. Os dois jornalões concorrentes não aceitariam participar de um pool destinado a amortecer outro enorme escândalo, transformando-o numa picaresca comédia de costumes. Isso, sim, seria coisa de telenovela.


Pintou um clima e as redações, devidamente estimuladas pelos marqueteiros, reagiram da mesma forma. Crise política não vende jornal, ainda mais quando estica demais. A saída é fazer da crise política mais um capítulo da telenovela nacional.


O curioso é que a TV Globo, dona da telenovelística nativa, preferiu operar em outra praia e com uma única reportagem liquidou quase todas as provas apresentadas pelo presidente do Senado Federal (doravante denominado de A Casa – a casa de quem? Da mãe Joana?).


Pérola metafísica


Quem pintou o clima foi Veja, merece um prêmio de dramaturgia. Com uma belíssima capa (edição nº 2012), transformou um escândalo que poderia abalar a República (se conseguisse apresentar as provas) num folhetim de segunda categoria. E, junto, fez da brava jornalista em busca da verdade uma das mais vertiginosas histórias de sucesso do nosso show bizz.


A deslumbrante mulher abandonada pelo poderoso ex-amante (e prejudicada nos acertos financeiros subseqüentes), de repente aparece como triunfante cover girl pronta para conquistar o mundo.


Abriu caminho para que na Folha (24/6, p. A-10), duas semanas depois, Mônica Veloso admitisse que embora queimada na profissão, está pronta para voltar à TV. ‘Talk-show é coisa que não descarto, seria muito legal…’ Pensa grande: ‘Até agora ninguém me ligou [para posar nua]’. Consideraria um convite oficial ‘mostrando como seria feito. Sem isso não dá nem para fazer conjectura’. Na edição de terça-feira (26/6, pág. A-10), a Folha informa que a revista Playboy diz ter interesse em produzir uma capa com a ‘musa’ e já contatou a jornalista.


Os leitores da Folha, geralmente rápidos no gatilho, não se manifestaram no dia seguinte (segunda, 25/6). Talvez tenham passado o domingo a refletir sobre esta pérola metafísica da lavra da entrevistada: ‘As coisas que começam errado [sic] não têm como dar certo.’


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O vetusto e grave Estadão parece tão imerso no mundo da telenovela que esqueceu do resto: na mesma edição de domingo (24) colocou na capa de dois cadernos o Balzac do momento: o mesmo Gilberto Braga, autor de Paraíso Tropical, em ‘Casa&’ e ‘TV&Lazer’.