Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Como contentar o leitor que não quer ver o que lê?

Este Observatório publicou artigo de Michelson Borges sobre a Superinteressante (‘Revista mata a razão e a paciência‘). Apesar de ter lido a matéria apenas on-line, o comentário suscita alerta sobre as opiniões que o jornalista externa. O nosso observador menciona a sua preferência filosófica: ‘religião teísta bíblica’, ‘texto naturalista tenta desconstruir a fé (como a Super vem fazendo com a fé bíblica – e praticamente só a bíblica, repito – já há alguns anos…)’, em oposição ao título de mau-gosto da capa sobre a morte de Deus. Na verdade, o deísmo não se opõe ao evolucionismo e nem mesmo o descarta. O que se opõe é o teísmo, corrente filosófica metafísica que atribui tudo o que ocorre à vontade de Deus e à sua constante intervenção. O deísmo, no qual acreditava Voltaire, por exemplo, reza que o universo e suas leis naturais foram criados por Deus no início, e dali tudo é conseqüência, sem mais intervenção ou preocupação do mesmo para com o que suas criaturas fariam, falariam, pensariam. Claro que tudo isto, para ficar claro – politeísmo, deuses, demiurgos, gnomos, anjos, diabos, guias e seres celestiais –, advém da imaginação e da experiência subjetiva dos seus criadores, e não da realidade. Não é científico atribuir a um ser improvável as explicações dos mecanismos naturais. E o fato de uma pessoa crer até a morte nas suas bíblias, no Corão ou na Torá se deve não pelas verdades que as mesmas encerram, mas pelo condicionamento a que a educação das crianças desde o nascimento são submetidas! Uma criança de uma família cristã trocada na maternidade por uma islâmica não morrerá pela fé de seus pais biológicos, mas de seus pais de criação. Juízos de valores impostos pela criação que o indivíduo não mais poderá se ver livre.

Assim, o que chamou a atenção do observador foi o título que o agrediu em seus valores, não em seus conhecimentos. Que Darwin poderia matar o seu Deus real (aquele que ele criou na imaginação pela educação desde o início da vida). Aliás, comenta nosso observador, ‘os elogios ao budismo nas páginas de Super não são de hoje…’ O que parece ser uma reprovação sobre a visão mística das outras pessoas. Nada de original, pois o próprio papa, que alega querer o ecumenismo, já disse que a única verdade é a sua. Ou seja, não aceita nem mesmo as outras interpretações do deísmo bíblico feita pelos judeus, seu criador, e nem dos islâmicos, que acreditam no deísmo revelado por Maomé, muito menos nos protestantes e evangélicos! Razão pela qual passaram dois milênios se matando, matando hereges e divergentes a não mais poder, em defesa de suas verdades singulares.

O fogo e a espada

Então, o ponto de vista do jornalista é a ‘sua’ verdade bíblica, e não uma alternativa científica da teoria da evolução. Nada de novo no cristianismo católico que já não tenha feito nestes dois mil anos, e que o próprio papa adverte contra a ciência e o conhecimento científico. O mesmo obscurantismo milenar que as religiões pregam no mundo.

A aparente unidade da fé bíblica foi construída com muito sangue, perseguições e queima de documentos divergentes das mais diversas origens ao redor do mundo. Foram vencidos pela espada e o fogo os gnósticos-docetas, ebionitas, gnósticos, maniqueos, monarquianistas, arianos, semiarianos, montanistas, pneumatómacas, monofisistas, arminianos. Devem exemplificar o que realmente é uma ‘guerra’ pela doutrina certa e o modo de construí-la com expurgos de sangue. Coisa vivenciada pelas oito cruzadas, inclusive contra os cátaros, exterminados pela fé. Depois sofreram judeus, luteranos, huguenotes, calvinistas, hereges, pensadores e cientistas.

Fugindo do debate da ‘razão’ ou científico, o observador quis traçar um paralelo de um parágrafo do Mein Kampf, de Hitler, para insinuar relação entre Darwin e a ideologia do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei). Claro que não se pode alegar que os trabalhadores, por serem trabalhadores, levaram a tentativa do extermínio dos judeus, como praticado pelos católicos na história, como não se pode atribuir ao conhecimento científico o mesmo. Não foi porque o homem descobriu o fogo e como dominá-lo que pode ser culpado o seu desenvolvimento pelas fogueiras da inquisição na defesa da visão teísta bíblica do catolicismo! Não foi por conhecimento científico que Santo Agostinho, bispo católico, teólogo e filósofo, defendeu a escravidão e a servidão humana como vontade de Deus. Nem por São Tomás de Aquino –, o santo e filósofo do catolicismo, ter referendado: ‘O homem foi criado livre, por Deus, e a escravidão é uma decorrência do pecado original.’ Não foi pela sabedoria e pela razão dos seguidores de Cristo que os índios da América foram trucidados e violentados nos seus direitos e crenças, tudo em nome da verdade contida na ‘religião teísta bíblica’. Como Deus não intervinha, o crente se encarregava de fazê-lo com fogo e espada.

Dogmas com erros crassos

O deísmo surgiu dentro do contexto dos primórdios do racionalismo sob a influência de Locke e Newton. Voltaire, um dos maiores contestadores da Bíblia daqueles tempos, era deísta. Mas a verdade é que ousar negar Deus era condenação de morte na certa, na época. A declaração de guerra era literal, e não acadêmica, como se queixa agora Michelson Borges.

Não podemos considerar que os criacionistas que queimaram Giordano Bruno fossem pessoas pacíficas com as quais podemos até hoje não usar a união para defesa do conhecimento. Ciência evolui, religião prima pela estagnação ‘reconfortante’. Ao se basear em falsos valores, não pode deles tirar conseqüências verdadeiras. Religião não se baseia em evidências, mas em autoridades, no caso abusado pelo seu uso na crítica (esperado por quem não tem outra coisa a dizer a não ser repetir que ‘foi Deus’ para todas as dúvidas científicas). Criacionismo não explica nada, apenas atribui a uma divindade todas as ações – o movimento do vento, a origem das montanhas, o movimento do sol, o correr dos rios, as doenças e as curas; tudo que a sua ignorância desconhece, foi Deus. Agora com a atribuição da complexidade da criação da vida ao ser improvável, o desenhista incompetente.

Papel aceita tudo, realmente, desde que o homem foi criado do barro até que a terra era o centro do universo. Não se pode é criar dogmas de fé por escritos primitivos e cheios de erros crassos.

As teorias de Darwin

A ciência não se baseia na autoria, mas na explicação dos fenômenos, o que para o criacionista não interessa, apenas o satisfaz saber que foi criado pela criatura não provada a existência. Crentes estão tão pouco interessados em verdades que aceitam aquela de que foram criados sem a mínima tranqüilidade emocional de averiguar as outras alegadas doutrinas para procurar o verdadeiro método de chegar mesmo ao céu. Basta acreditar no que lhe ensinaram na primeira infância. São completamente e ferreamente anticientíficos em qualquer nível.

Por que Deus deseja que as pessoas não façam sexo e não se reproduzam como ele mesmo quando teria criado a natureza? O que interessaria ao hipotético Deus do universo que você casasse com fulana, e não se reproduzisse com sicrana? Só ao marido da sicrana e a fulana, na verdade, se preocupam com isto.

A discussão feita pelo autor misturou tudo numa teoria. Ernest Mayr, em sua última obra, publicada postumamente, já lembra que Darwin, na verdade, desenvolvera uma que pode ser decomposta em pelo menos cinco outras:

1) Teoria do ascendente comum

Na viagem às ilhas Galápagos, Darwin verificou que o formato do bico de três espécies de pássaros locais sugeria serem eles descendentes de um ancestral que habitava o continente. Ciente de que a evolução não cria mecanismos particulares para qualquer espécie, entendeu que esse ancestral devia descender de outro: ‘Todas as nossas plantas e animais descendem de algum ser no qual a vida surgiu antes.’ Nenhuma das teorias de Darwin foi aceita com tanto entusiasmo como esta, porque dava sentido à semelhança entre os seres vivos, à distribuição geográfica de certas espécies e à anatomia comparada. Um século mais tarde, ao demonstrar que os genes das bactérias são quimicamente iguais aos das plantas, dos fungos ou dos vertebrados, a biologia molecular ofereceu a prova definitiva de que todos os organismos complexos descendem de seres unicelulares.

2) Teoria da evolução como tal

Segundo ela, o mundo não se encontra em equilíbrio estático e as espécies se transformam no decorrer do tempo. A existência dos fósseis e as diferenças entre o organismo dos dinossauros e o das aves, únicos dinossauros sobreviventes à extinção, ilustram com clareza o que chamamos de evolução das espécies.

3) Gradualismo

As transformações evolucionistas ocorrem gradualmente, nunca aos saltos. Para explicar como as espécies em nossa volta estão muito bem adaptadas às condições atuais, Darwin encontrou apenas duas alternativas: teriam sido obra da onipotência de um Criador ou evoluído gradualmente segundo um processo lento de adaptação: ‘Como a seleção natural age somente através do acúmulo de sucessivas variações favoráveis à sobrevivência, não pode produzir grandes nem súbitas modificações: ela deve exercer sua ação em passos lentos e vagarosos.’

4) Teoria da multiplicação das espécies

Calcula-se que existam de 5 a 10 milhões de espécies de animais e de 1 a 2 milhões de espécies de plantas. Darwin passou a vida atrás de uma explicação para tamanha biodiversidade e propôs, pela primeira vez, o conceito de que a localização geográfica seria responsável pelo surgimento das espécies. Embora mereça esse crédito, Darwin não foi capaz de perceber com clareza a importância do isolamento geográfico no aparecimento de espécies novas. Hoje, sabemos que indivíduos isolados por tempo suficiente da população que lhes deu origem podem acumular tantas mutações que passam a constituir uma espécie nova incapaz de acasalar-se com os ascendentes.

5) Teoria da seleção natura

Foi o conceito filosófico mais revolucionário desde a Grécia antiga. Segundo Darwin, a seleção natural é resultado da existência da variabilidade genética, que assegura não existirem dois indivíduos exatamente idênticos, em qualquer espécie. Como conseqüência da vida num planeta com recursos limitados, a competição pela sobrevivência se encarregará de eliminar os mais fracos.

A seleção natural varreu o determinismo que dominou a biologia desde a Antigüidade, segundo o qual cada espécie existiria para atender a determinada necessidade. Só então foi possível abandonar interpretações sobrenaturais para explicar o mundo orgânico.

A seleção natural é um mecanismo universal inexorável, alheio a qualquer finalidade, imprevisível como a própria vida.

Este resumo dos cinco itens foi tirado do site do doutor Dráuzio Varella. Como constatado, nem uma menção sobre a origem da vida. Mas é claro que ao regredir o mecanismo obrigatoriamente temos que encontrar a origem primeira da geração da vida. Atribuir, como os primitivos, tudo a um desenhista, criador ou ser sobrenatural, é o hábito mecânico do que ignorava ficar repetindo a tudo através dos tempos passados, foi Deus, foi Deus. Não mais podemos estagnar na ciência dando ouvidos para fanáticos fundamentalistas que tanto sangue e obscurantismo praticaram na história da humanidade. Que desenvolvam uma explicação melhor em vez de repetir a dos homens primitivos em volta das fogueiras assustados pela noite e pelo desconhecido que começavam a deslumbrar.

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Médico, Porto Alegre, RS