Estava no aeroporto de Porto Alegre, na fria manhã da segunda-feira (7/6), voltando para casa depois de um encontro histórico e arrebatador. Mais de 3 mil pessoas cultas e inteligentes, de mais de 20 países, haviam debatido e discutido, durante quatro dias e em mais de 460 encontros, os rumos e o futuro da maior criação intelectual colaborativa que a humanidade já foi capaz de produzir. A batalha técnica vencida, resta a jurídica. Enquanto aguardava o embarque, folheava um jornal local em busca de notícias sobre o 5º Fórum Internacional de Software Livre, encerrado dois dias antes, em 5/6. Queria resolver um enigma.
Por que a imprensa local não cobriu o evento além de lacônicas notinhas sociais, enquanto a Folha de S. Paulo dava, em duas páginas, destaque ao ponto alto do encontro, que foi o lançamento no Brasil (em 4/6) do projeto Creative Commons, pelo Centro de Direito e Cidadania da Faculdade de Direito da FGV-Rio?
A manchete da Folha citava o mentor do projeto, o jurista norte-americano Lawrence Lessig, que em entrevista dizia: ‘A esperança está no Brasil’. Zero de cobertura local, enquanto o New York Times citava, do outro lado, o presidente da subsidiária brasileira da maior empresa de informática do mundo, desdenhando desta esperança ao projetar como insignificante a iniciativa do governo que a justifica, aos olhos do consagrado jurista. Se insignificante, por que dela se ocupam aquele jornal e o tal presidente?
Folheando O Sul encontrei, na coluna de Diego Casagrande, uma valiosa pista para o enigma. O colunista citava a mesma fonte do New York Times, julgando como equivocada a decisão do governo de adotar software livre nos computadores do setor público. ‘Encontramos um discurso muito mais ideológico, sem base na área técnica’, teria dito o presidente da Microsoft no Brasil. ‘Eu sei que essa não é a melhor maneira de criar uma base de desenvolvimento para exportação, pois não se pode ter receita de uma coisa que é gratuita’, cita também a Folha Online.
O colunista do jornal gaúcho desperdiçou a oportunidade de aprender o que é software livre diretamente com quem o faz. Preferiu regurgitar press-releases globais, replicando a desvirtuação de fatos, tal qual a Folha Online. ‘Os software livres’, diz o colunista, ‘são programas de computador que podem ser copiados e distribuídos sem fins lucrativos.’ Parece surreal, mas há que se perguntar: será que esses jornalistas acreditam no que escrevem? Afinal, estão lidando com o paradoxo da liberdade.
Equilíbrio no meio
Liberdade, como disse Cecília Meireles, não há quem defina, e não há que não entenda. Tão ideológico quanto os ideais iluministas que nos trouxeram o Estado democrático de Direito. Tão ideológico quanto confundir coisa que é gratuita com coisa que pode ser. Tão ideológico quanto insistir em contrapor, em se tratando de software, liberdade a comércio, enquanto esquizofrênica ou hipocritamente se faz a apologia do livre-comércio na era dominada por softwares. Há software proprietário gratuito, e licenças comerciais de software livre.
Fosse tão simples como diz o colunista, os bilhões de dólares que a IBM já investiu em software livre, nos últimos seis anos, teriam sido a fundo perdido. Será que os acionistas da IBM sabem disso? Se tivesse presenciado os debates no 5º Fórum Internacional de Software Livre, o colunista poderia ter feito esta pergunta ao gerente de tecnologia Linux da IBM Brasil. E quem perdeu a oportunidade em Porto Alegre poderá fazê-lo em São Paulo, no painel sobre modelos de negócio com software livre no 10º Congresso de Informática Pública, em 23/6.
Um software será livre, de acordo com quem o produz, se seu modo de produção e licenciamento equilibra liberdades dos interessados. Usuário, programador e distribuidor. A gratuidade é uma dessas liberdades, não a sua definição. Usuário quer liberdade de uso, onde pode se incluir a gratuidade, mas esta liberdade pode conflitar com outras: o distribuidor há de querer a liberdade de lucrar com seu conhecimento do software, e o programador pode querer a liberdade de controlar a evolução da sua obra. O equilíbrio está no meio, não em extremos.
Ameaça é o monopólio
No software proprietário, o programador abdica da liberdade de controlar sua obra, em troca de salário e compromisso de sigilo, O distribuidor, fantasiado de ‘fabricante’, torna-se proprietário de tudo. Desde o código-fonte, tido como segredo de negócio, até as cópias executáveis, licenciadas ao usuário sob custódia e regime draconiano. Enquanto no software livre o programador abdica de um dos canais de receita pelo seu trabalho, em troca da preservação do controle dos termos de uso da sua obra. Em contrapartida, se a obra tiver qualidades, agregará eficiência aos empreendimentos em torno dela. Seu valor semiológico, conversível em receita com serviços, será proporcional à magnitude do esforço colaborativo onde se insere. O código-fonte é livre sob licença que preserva esta liberdade, enquanto a cópia executável é tida como propriedade do usuário.
Software livre, como água, só será gratuito para quem sabe beber na fonte, e será límpida para quem souber fazê-la jorrar. Como água do conhecimento, preenche naturalmente o caminho do menor esforço, em direção à demanda. É o modo de produção de software que, na era maciçamente conectada da internet, leva à melhor relação custo/benefício na produção e negócio do software. Só tem a perder com ele quem consegue galgar posições monopolistas no modelo proprietário. O problema é que a ganância faz muitos acreditarem que serão os eleitos pelo deus mercado, enquanto seguem correndo atrás da cenoura amarrada na ponta da vara que pende das suas carroças digitais, não se importando com os efeitos colaterais de se tratar conhecimento como bem escasso, ao considerarem software como mercadoria.
É um equívoco pintar o software livre como ameaça ao monopólio da Microsoft, como insinuam a matéria da Folha Online e a incongruente nota no New York Times. Quem o ameaça, na verdade, são as leis antitruste, além da lógica que motivou suas sansões. Pelas leis americanas e européias, o monopólio em si não é crime, mas o abuso do poder econômico a partir de posições monopolistas, sim. Mas a economia digital distorce antigos equilíbrios. A empresa foi condenada – nos EUA em última instância e na Europa em primeira – justamente por isso, mas as penas aplicadas não funcionam como desestímulo, por serem brandas em relação ao que ela pode lucrar violando-as. Haverá pois um custo social, que algum dia será cobrado.
Cada vez mais refém
Quanto ao software livre, seria melhor considerá-lo antes como uma reação a este estado de coisas. Tão ideológico quanto este. A Microsoft, se quisesse, poderia ganhar dinheiro com software livre, como fazem a IBM, a HP, a Novell, para ficar nas multinacionais que também fornecem software proprietário. Pelo que não seria legítimo considerar o modelo livre uma ameaça a empresa alguma, principalmente às que se dispõem a acompanhar a evolução do mundo.
O movimento do software livre pode ser considerado, em seu próprio mérito, como a fruição da mais nova etapa evolutiva das formas do saber e da propagação do conhecimento, possibilitadas pela revolução digital. Formas de se fazer software com eficiência, economia e autonomia dos interessados em seu uso. Penso, portanto, que tal insinuação está invertida, e invertida só serve ao sensacionalismo ou a motivos escusos. O monopólio da Microsoft é que deve ser considerado uma ameaça real. Não diretamente pelos seus negócios, mas pelo seu poder de lobby sobre Estados.
Pela forma como vem assim agindo, ela ameaça a liberdade do cidadão controlar as condições da sua própria comunicação digital, cada vez mais entranhada à sua identidade civil. Identidade esta cada vez mais refém, por isso, de um regime de propriedade intelectual cada vez mais radical, esotérico e dogmático, onde 60 mil dólares e um sofisticado discurso legalês patenteiam praticamente qualquer coisa. De idéias por trás de trechos de programas, inclusive publicadas há mais de 2 mil anos, a idéias simples e óbvias, tal qual o clique duplo em botões de software como sinal funcional.
Cuidado com grampos
Tal qual os indultos papais que antes vendiam proteção divina à alma contra riscos infernais, as patentes esotéricas de software hoje vendem proteção jurídica ao investimento especulativo, contra quem esteja no caminho dos seus lucros. Se a Microsoft prefere manter todos os seus ovos no cesto do modelo proprietário, e bancar uma luta titânica contra a marcha do tempo, ela mesma pode ser considerada uma ameaça ao seu próprio poder no futuro. Nada mais ideológico do que esta resistência evolutiva, ofuscada pelos dogmas do fundamentalismo de mercado.
Nossa Constituição Federal exige do governante zelo na defesa da soberania do Estado. Se um governante decide desqualificar o uso, nos computadores da máquina administrativa sob seu comando, de um sistema operacional proprietário contendo vários grampos, embutidos pelo fabricante sob a justificativa de ter que gerenciar seus direitos digitais, sob o precedente de suspeitas de compartilhamento de acesso com os serviços de inteligência imperialistas (http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/freesoft.htm), é razoável supor que o faz no exercício de tal zelo. Conforme estudo realizado e publicado pela empresa FuturePower, há pelo menos 16 dessas portas de fundo no sistema operacional windows XP, enquanto o usuário só pode desabilitar 11 delas (http://www.hevanet.com/peace/microsoft.htm).
Se, por outro lado, o modelo de licenciamento do software livre permite ao governante esquadrinhar o sistema operacional que venha a escolher, para se certificar inclusive de que não haverá grampos nele escondidos, podendo determinar exatamente com quais funções irá operar, a partir de uma distribuição de código executável por ele mesmo montada com o código-fonte livre, o zelo na defesa da soberania se qualifica como justificativa para o critério técnico de licenciamento que prescreve autonomia ao usuário para garantir por si ausência de grampos em tais sistemas.
O dever do alerta
Doutra feita, o que se tem dito acerca das licenças que a fornecedora do XP oferece a governos, à guisa de auditoria de software (Government Security Licence Program), não passa de tosco arremedo. Como uma nova eucaristia digital, baseia-se na crença de que o deitar d’olhos em tela onde se vê código-fonte, fa-lo-á transmutar-se, sob o poder da fé na marca, em código executável instalado no computador do crente. Como a hóstia, engolida, se transforma em corpo crístico. E para completar, a mácula do pecado original: caso esse governo venha algum dia a desenvolver software com funcionalidade semelhante, poderá cair sob suspeita do hediondo crime de pirataria de propriedade intelectual alheia. Chamar isso de auditoria, se não for ideológico, é místico. A dificuldade para se tirar a limpo esse sacramento pós-moderno é que tais licenças, como é de praxe na empresa, não são publicadas ou são tratadas sob compromisso de sigilo.
Quando da tragédia na base de Alcântara em 22 de agosto passado, alertei para o fato de que, caso o sistema de controle de lançamentos do VLS estivesse operando com base em sistema operacional proprietário inauditável, seria mais provável que a investigação do incidente resultasse inconclusiva, incapaz de determinar se o que houve foi acidente ou sabotagem (www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/alcantara.htm). E o relatório da comissão de investigação foi, de fato, inconclusivo. Assim, se alguém no governo especificar o windows XP, por exemplo, para o Sivam ou para a informatização do Poder Judiciário, deveria ser processado por traição se a Constituição for levada a sério. Enquanto o marketing do status quo, disfarçado de notícia, quer nos fazer acreditar, injuriosamente, que isto deveria ocorrer se a especificação técnica resultar noutra escolha.
Por que estou lançando aqui tão mirabolantes hipóteses e míticas metáforas? Porque, tendo sido nomeado pelo presidente da República para representar a sociedade civil junto ao órgão responsável pelos aspectos normativos fundamentais à segurança coletiva nas práticas sociais informatizadas – o comitê gestor da ICP-Brasil –, sinto-me no dever de alertar a opinião pública e as autoridades judiciárias sobre o que está verdadeiramente em jogo neste conflito de opiniões sobre ideologia e técnica.
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ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira. Site: www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.htm