Em artigo intitulado ‘Quem nasceu primeiro, a corrupção ou o corrupto?‘, neste Observatório da Imprensa, fiz esta observação:
‘Durante muitos anos, exigimos um basta! Cansamos de ver bandido pé-de-chinelo, peito de fora e bermudão surrado, entrando em camburão da polícia. Repetimos exaustivamente a frase ‘No Brasil só se prende ladrão de galinha’. Descobrimos que, do tráfico de drogas, só se prendem os chefões do terceiro escalão, aqueles que têm condições de melhorar a renda de policiais e agentes carcerários. São os que mantêm o tráfico nos presídios; consumidores em potencial, pagam bem por um celular e pelas visitas íntimas. A raia miudinha é massacrada, não tem direito a prisão, vai direto para o cemitério. Exceto alguns escolhidos para servir como material de referência da produtividade das delegacias e de laranja nos presídios.’
Na quarta-feira (27/6), as polícias militar e civil do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio da Força Nacional de Segurança Pública, realizaram uma operação de guerra no Complexo do Alemão, um conjunto de favelas situado na Zona Norte da cidade.
No mesmo dia da mega-operação policial, que mobilizou 1.350 homens e carros de combate (caveirões), os noticiários de TV e edições on line de grandes jornais, ainda no período da tarde, informavam que as 19 pessoas mortas durante o conflito eram bandidos, traficantes que controlam o tráfico de drogas naquela área. Delegados que participam da operação declararam, e os jornais noticiaram, que os mortos no confronto poderiam chegar a 22, provavelmente acreditando-se que alguns cadáveres ainda não teriam sido resgatados.
‘Ingênua’ imprensa
Por que, nessas ocasiões, a imprensa avia-se chamando, em garrafais manchetes, para o fato de que todos os mortos seriam bandidos? Certamente para ‘confortar’ mentes e corações das pessoas que estão distantes do inferno. De bandido ninguém tem dó.
O Complexo do Alemão é um conjunto de favelas localizadas entre os bairros da Penha e Bonsucesso, atravessando outras comunidades (Ramos, Olaria e Inhaúma), e tem uma população de aproximadamente 150 mil moradores, aglomerados em pequenas e precárias habitações. Praticamente a totalidade dos moradores é formada por trabalhadores da construção civil, ambulantes, empregadas domésticas, feirantes, porteiros, faxineiras, camelôs e empregados do comércio da região. Milhares desses trabalhadores são jovens negros, muitos morando em barracos de um só cômodo.
No momento de uma investida desse porte contra a organização criminosa local (um grupo mínimo, fortemente armado), dezenas de pessoas são gravemente feridas. Aquelas que conseguem chegar à base do morro e receber socorro para atendimento hospitalar podem ser identificadas. Naquele dia, além dos 19 mortos, mais de dez pessoas ficaram feridas e foram socorridas. Nas últimas semanas, as investidas da polícia fizeram mais de 50 cadáveres. Todos bandidos? E se eram realmente bandidos, de que forma tombaram? Todos enfrentando as forças policiais? Como é ‘ingênua’ essa imprensa! Como devem ser ‘ingênuos’ os leitores dessa imprensa!
Tudo será esquecido
Os órgãos de imprensa teriam obrigação de noticiar essas informações com reservas. Deveriam, no primeiro momento, falar apenas do número de vítimas. Deveriam se negar a aceitar a informação unilateral de que todos os mortos no confronto seriam ‘bandidos’; mesmo porque é praticamente impossível identificar todos os mortos a poucas horas do início da investida policial, no momento em que o conflito ainda está se desenvolvendo na área.
Na sexta-feira (29/6), o portal Estadão noticiou:
‘Rio – O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), que voltou da Europa na quinta, elogiou, nesta sexta-feira, 29, a megaoperação que envolveu 1.350 policiais no Complexo do Alemão na última quarta-feira, 27, e deixou 19 mortos e nove feridos.
Cabral disse confiar nas informações da polícia de que os 19 mortos no conflito eram traficantes que enfrentaram os policiais. Denúncias recebidas pela Organização dos Advogados do Brasil (OAB) indicam que pelo menos 11 dos 19 mortos seriam moradores que não teriam ligação com o tráfico de drogas.’
É sempre assim. Poucos dias depois desse tipo de operação policial, quando a comunidade chora e enterra seus mortos, inicia-se a polêmica: um lado garante que os mortos eram todos ‘bandidos’; entidades civis e militantes pela defesa dos direitos humanos acusam o massacre de inocentes. Mais algumas semanas e tudo será esquecido.
Valentes soldados do tráfico
Porém, independentemente dessa questão (bandidos ou simplesmente moradores da área sem qualquer envolvimento com o tráfico de drogas), pouco se especula sobre a operação em que nenhum policial morreu (fala-se em um policial ferido sem gravidade). Como se deram as mortes dos que são identificados como verdadeiros bandidos? Por que somente quatro gatos assustados foram presos, enquanto o restante tombou ‘em combate’?
Por que as populações faveladas não são ouvidas, de verdade, pela imprensa? Não falo de rápidas entrevistas, editando-se as falas de moradores assustados com os tiroteios. A imprensa sempre se refere à tal lei do silêncio imposta pelos bandidos e sempre edita longas e previsíveis declarações das autoridades, todas reiterando a qualificação de ‘bandidos’ a todos os mortos. Não estaria a própria imprensa promovendo o silêncio dos maiores interessados em esclarecer à população brasileira como acontecem essas operações?
Entretanto, o que se ouve dos moradores da região não corresponde ao que a população brasileira, distante do conflito, acompanhando a guerra pela tela de TV, acredita; ou seja, que os bandidos mortos lutaram até o último homem, como heróicos combatentes de guerra. Sim, porque a impressão que causa às pessoas que assistem a tudo através da imprensa é a de que os tombados em combate eram todos valentes soldados do tráfico, destemidos jovens que qualquer exército do mundo teria orgulho de ter em suas fileiras.
Secretário quer mais
Moradores do Complexo do Alemão estão ávidos de que os grandes órgãos de imprensa, principalmente as televisões, que noticiam em rede nacional, os entrevistem. Vejam as histórias que recebi de quem os entrevistou:
‘Ninguém aí morreu em combate, moço! Todos os mortos estavam rendidos, entregues, mãos na cabeça, outros até ajoelhados ou deitados no chão. Foram executados, alguns deles com requintes de crueldade. Se fizerem busca nos matos aqui próximo, vão encontrar outros mortos.’
‘Eu ouvi os traficantes gritando logo no início da invasão da polícia: ‘Vaza! Vaza! Num dá pra bater de frente, é muito polícia!’ Alguns escaparam pelo mato.’
‘Olha, moço, eu ouvi um policial rindo e dizendo que aquilo tava muito fácil, parecia até caçada de pato!’
Manchete de O Globo de sexta-feira (29/6) anuncia: ‘Polícia já planeja cerco à Rocinha e mais 4 favelas’. Na chamada da matéria, o secretário de (vá lá que formalmente seja!) Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, ‘…informou ontem que vai estender à Rocinha e a outras quatro favelas do Rio a mesma estratégia de uso da força empregada no Complexo do Alemão’.
As favelas visadas são: Rocinha, Cidade de Deus, Jacarezinho, Mangueira e Complexo da Maré. Creio que, somadas as populações, temos aí mais de um milhão de pessoas. Certamente, hoje, nenhum morador dessas favelas pode garantir que assistirá a qualquer competição dos Jogos Panamericanos, que terão início no próximo dia 13 de julho, na Cidade Maravilhosa.
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Escritor, Rio de Janeiro, RJ