‘Pense num absurdo. Na Bahia já houve um precedente.’ A frase, atribuída ao político antigetulista Otávio Mangabeira (1886-1960), ex-governador baiano, encaixa-se perfeitamente ao que acaba de acontecer nas entranhas da Universidade Federal da Bahia, especificamente em sua Faculdade de Comunicação (Facom).
Quem, em sã consciência, em qualquer lugar não-fundamentalista e sem ditadura do planeta Terra, poderia supor que uma escola de Jornalismo iria propor a instalação de um Conselho Censor, eufemisticamente denominado ‘Conselho Editorial’, cujo objetivo seria analisar o conteúdo do que deve ou não ser publicado no único produto laboratorial em funcionamento na referida escola, isto é, o seu jornal-laboratório? Já pensou se a moda pega?
O fato pode ser visto como coisa isolada, em uma faculdade localizada numa província remota do Nordeste brasileiro, na qual hoje somente circula um grande jornal digno do nome, A Tarde (tiragem média de 45.000 exemplares/dia, para uma população de mais de 10 milhões de habitantes). Poderia estar no Turquistão. Ou na Coréia. Na Albânia pré-queda do Muro de Berlim, ou mesmo nas regiões remotas do planeta onde o Estado de Direito, as idéias liberais e os ares da democracia constitucional são desconhecidos.
Sete vencem nove
Este episódio, ilustrativo, não é aqui relatado por simples capricho de um temperamento descordato ou recalcitrante. O é por questões de princípios: a defesa da transparência no uso da coisa pública, como são as instituições republicanas, tais como o ensino universitário. Foram esses princípios que a partir de setembro de 2006 colocaram este que vos escreve e o atual ‘governo’ que comanda a Facom em rota de colisão. Isso depois de, desde 2002, ser aprovado em concurso público e logo ser eleito para chefiar o colegiado de professores por dois mandatos consecutivos, tudo este missivista tem feito para equilibrar com serenidade as divergências naturais presentes no egocentrismo acadêmico (ver, a propósito, O Professor, de J. K. Galbraight).
Enquanto o senador Antonio Carlos Magalhães, tido nas preleções acadêmicas das escolas de Comunicação como truculento e arbitrário, caminha, como todo mortal, para o seu fim, a Facom, por escassa maioria dos seus professores (nenhum deles jornalista, na acepção carnal da palavra), avançou ainda mais em ‘criatividade’. Decidiu ‘cortar a cabeça’ do professor-editor do referido jornal de forma sumária e prévia, cassando-o da disciplina encarregada da produção do veículo já a partir deste mês de julho 2007.
Instalou-se então, na Facom/UFBA, uma espécie de mal-estar. Sete comunicólogos, semióticos ou teóricos da comunicação, venceram nove (5 contra e 4 abstenções) e votaram, no dia 18 de junho, véspera do recesso junino e das férias letivas – quando a universidade se esvazia, dificultando reações ou mobilizações – pela cassação. Mais da metade do colegiado de professores se ausentou.
Estratagema desmentido
A coisa se deu nas primeiras duas horas de uma reunião que lembrava um tribunal do Santo Ofício, ou um paredón. Perplexos, os raros estudantes que compareceram ficaram mudos o tempo todo. Parte dos professores também. A sugestão da cassação fora adredemente articulada pelo Torquemada da Facom, leia-se o diretor da faculdade, capixaba e ex-seminarista de fala mansa, e o chefe departamental, leia-se ‘Moreira César’ redivivo. Este propôs o corte de cabeça, alegando-se ‘ofendido’ por textos de repúdio ao tal ‘Conselho’ publicados em semanas recentes, inclusive por nota pública do Sindicato dos Jornalistas Profissionais da Bahia.
Em sua petição, feita no oportunismo da hora, citou o Corta Cabeças, explicitamente, um artigo que o site do Observatório da Imprensa postou em 29/5/07 [ver ‘Censura ronda jornal-laboratório‘]. Mas em nenhum momento, como docente de uma faculdade de Comunicação, se dispôs a replicar aqueles textos com outros, contrapondo argumentos que, verazes ou não, com toda a certeza seriam acolhidos pelo mesmo Observatório da Imprensa e demais veículos – assim vistos, pelos obscurantistas, como também suspeitos.
A ‘ofensa’, segundo o Chefe do Departamento, estaria configurada na medida em que a criação do tal ‘Conselho’ seria fruto da ‘imaginação’ do professor que protestou nos referidos artigos contra a excrescência. Entretanto, testemunhos de alguns professores e estudantes, presentes no momento em que o tema foi sugerido em uma reunião ocorrida em 21 de maio, desmentem o estratagema do chefe departamental.
Regularidade e periodicidade
Um desses estudantes acaba de circular mensagem, em listas públicas às quais a comunidade da Facom tem acesso, afirmando não apenas que o debate sobre a criação do ‘Conselho Editorial’ foi sugerido, mas também – já ali –, um dos comunicólogos presentes também cogitou abertamente da possibilidade de cassação do professor responsável pelo jornal, o que aconteceu na reunião do mês seguinte sem que este tema tivesse sido previamente pautado.
A ‘ofensa’ que motivou o chefe departamental a, de forma abrupta e sem chance de amplo contraditório, pedir a ‘cabeça’ do editor do Jornal da Facom, não se justifica mesmo à luz de atos do referido chefe desde aquela reunião de maio. Esse mesmo chefe incluiu na pauta de junho o item ‘produtos laboratoriais’ da faculdade, admitindo, explicitamente, que estariam em discussão medidas de regulamentação do funcionamento de tais produtos – o que não mais ocorreu porque a cassação antecipou e esvaziou essa medida. Mencionam-se produtos outros, assim, no plural, como se existissem em essência e abrangência, o que é falso. Fato comprovado é que o único produto laboratorial em funcionamento e visibilidade na Facom/UFBA é o seu jornal-laboratório.
Esse jornal, entretanto, apenas existe há três semestres, numa construção conjunta coordenada por este que vos escreve e os alunos matriculados a partir do início de 2006 na disciplina encarregada pelo mesmo. Nos 20 anos da Facom, comemorados em 2007, e nos mais de 30 anos do curso de Jornalismo da UFBA, é a primeira vez na história da habilitação que foram dadas regularidade, periodicidade e distribuição ampla em todo o município de Salvador e sua região metropolitana a um jornal-laboratório, de fato experimental e de reportagens. Isso pode ser visto aqui.
Discussões tensas
Antes, o que existiu foram arremedos de jornal, contrariando as exigências normativas do Ministério da Educação que regulamentam o funcionamento dos cursos de Comunicação com habilitação em Jornalismo no país. Em verdade, a grande maioria das faculdades no Brasil burla essas exigências. Os cursos foram assaltados por ‘comunicólogos’ – seja lá o que isso queira dizer – avessos ao Jornalismo, isto é, pela arte, pela técnica, pela ciência de se fazer e estudar a prática jornalística, sintetizada na frase ‘gastar a sola do sapato’.
Nos últimos três semestres, criamos um jornal que se tornou referência entre os produtos laboratoriais dos cursos de jornalismo das faculdades baianas. Além da versão impressa, atividade-fim da disciplina, com 32 páginas e com média de 8.000 exemplares mensais de distribuição gratuita, criamos também uma versão digitalizada para acesso além-fronteiras. Os estudantes se empolgaram com o projeto. Produziram e executaram pautas, viajaram, fotografaram, ganharam gosto pela prática – aliada à leitura de uma extensiva bibliografia que vai de livros completos de Samuel Wainer a Bernardo Kucinski, de Fernando Morais (Chatô) a Janet Malcolm, de Nilson Lage a Sérgio Mattos e mais, muito mais.
Doze números foram preparados e 11 publicados, com uma circulação total que ultrapassa as 90 mil cópias impressas. Para pagar a impressão, orçamentos foram negociados com a administração central da universidade, por vezes em discussões tensas entre o professor responsável, o diretor e a Pró-Reitoria que libera os recursos. Em torno de 50 mil reais para 2006 e 2007. Verba pública, diga-se de passagem.
Palavrório ininteligível
Portanto, o jornal-laboratório foi posicionado como autônomo tanto em relação à administração central da universidade, quanto à cúpula dirigente da Facom. Parece que a linha editorial pluralista, crítica, investigativa, de debate de idéias – algo nunca antes praticado nos jornais-laboratórios ‘faz-de-conta’ de outras ocasiões –, incomodou os que se acham acima e além da possibilidade da crítica. Avessos à troca de opiniões honesta e defensores da liberdade de expressão somente quando esta lhes é conveniente, aqueles que formam a casta conservadora da academia, utilizando-se de retórica das boas-intenções, decidiram ‘enquadrar’ ou o jornal ou o docente por ele responsável. Que assim seja.
Os números mais recentes do Censo do Ensino Superior (Inep/MEC), de 2005, mostram que hoje são 505 esses cursos de Comunicação (eram 260 no ano 2000), embora apenas 12 denominados estritamente de Jornalismo, para 485 de Comunicação Social, categoria em que a Facom/UFBA se enquadra. Nessa esmagadora maioria, pode-se especular, montou-se uma estrutura acadêmica de crítica ao Jornalismo, de semiologisês e ‘desconstrutivismo’ jornalístico. Há um ódio quase mortal pelo jornalismo. Abandona-se a formação do aluno de graduação e formam-se as castas nos programas de pós, melhor aquinhoadas com verbas e prestígio, voltados muitas vezes para o estudo do sexo dos anjos.
Isso tudo se reflete na pobreza da formação jornalística, na baixa auto-estima do formando e na desconfiança dos agentes contratadores de mão-de-obra diplomada nessas escolas. Passa-se, inclusive, a questionar, e com alguma razão, a validade do diploma como condição sine qua non para o exercício profissional. O que menos há nessas instituições de ensino são jornalistas ensinando o ofício. Pois quem agüenta o palavrório ininteligível e a perda de tempo, quando há tanto a fazer pela profissão?
Estudantes exigem revogação
Com os cursos ‘seqüestrados’ por filósofos frustrados, semiólogos de meia-tijela, culturalistas que abandonaram o economicismo marxista, e oportunistas de outros quadrantes, o ensino de Jornalismo transforma-se assim numa brincadeira de mau gosto. Embora em universidades públicas, como a UFBA, às expensas de toda a sociedade, que paga para professores fingirem que ensinam e alunos, grande parte seduzidos pela análise do discurso almodovariano, fingirem que aprendem.
É nesse contexto que se dá o debate na Facom, nesse caso um microcosmo de outros espaços vistos como circunscritos a um determinado (e periférico) lugar, mas referencial do que se passa em outras esferas institucionais, aqui e alhures. O ato arbitrário, espécie de ópera-bufa chavista no contexto provinciano de uma Bahia embebida de carlismo (mesmo em ambientes supostamente insuspeitos, como o é uma faculdade de Jornalismo), está sendo contestado.
Também pela primeira vez, o que é inédito, estudantes, seja por sua representação no Diretório Acadêmico, seja por iniciativa grupal, desde 18 de junho protestam exigindo a revogação daquele ato de cassação e abertura de debate amplo que permita sejam eles, os principais interessados, ouvidos. Em geral estudantes de Comunicação se ‘unem’ para exigir o contrário, ou seja, o afastamento de docentes fragilizados e vistos como relapsos. Se dessa vez os escutarão, quem sabe?
Assédio moral
A arrogância e auto-suficiência dos que se julgam paladinos da verdade única, portanto dotados da sapiência sem contraditório, depõem contra qualquer possibilidade de auscultar a ‘plebe’ – a menos que essa tome a si a responsabilidade de sacudir os lugares e saberes estabelecidos. Quem, nesses tempos de rebaixamento dos ideais e frouxidão dos espíritos, está disposto a ousar e desafiar aqueles que os amedrontam, brandindo suas cadernetas de notas ou suas relações com os escaninhos das estruturas de concessões de bolsas disso e daquilo?
‘Cartas abertas’ têm sido encaminhadas ao diretor da faculdade e seu lugar-tenente, isto é, o Chefe do Departamento (que nesse episódio tem atuado como um tzar), e divulgadas na internet. Professores de outras unidades da UFBA também têm se manifestado. Não se trata de exigir a permanência de um determinado professor à frente de uma determinada disciplina. A rotatividade é salutar e necessária – e disso convence-se quem, como eu, chefiou esse mesmo Departamento por dois mandatos consecutivos.
Mas o afastamento não pode ser por razões de opinião, nem por restrições morais e, quiçá, embora não abertamente admitidas, raciais. Se nada, pedagógica e metodologicamente (como invocam os próprios estudantes) há que desabone o trabalho do docente à frente do jornal-laboratório, a obsessão departamental deve ser vista como ato de perseguição a um colega que, divergindo, mas dentro do que assegura o regime de direito republicano, cumpre com suas obrigações.
O ato persecutório pode ser tipificado juridicamente como assédio moral. É o que a Justiça terá de analisar em breve, em processos cível e criminal com pedido de indenização, como orientam os advogados.
******
Jornalista, professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP; coordena o Grupo de Pesquisa Permanecer Milton Santos, no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA