Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os obituários mentem, acusa a Fair

Os ativistas da Fairness & Accuracy In Reporting (www.fair.org), como se intitulam os redatores deste importante sítio de crítica da mídia americana, criado em 1986, publicaram em 9 de junho um texto em formato ponto-a-ponto que desmonta uma série de mitos e exageros repetidos de costa a costa nos obituários da grande mídia dos Estados Unidos sobre Ronald Reagan. ‘Os jornalistas estão redesenhando a vida e as realizações do ex-presidente com uma enxurrada de hagiografias [biografias de santos] que freqüentemente distorcem os fatos e mascaram os escândalos e as críticas’, escreveram.

O colunista da Fair Norman Solomon afirmou em artigo no dia seguinte (10/6): ‘Se o jornalismo é o primeiro esboço da história, a morte de Ronald Reagan foi o primeiro salto para a produção em massa de história falsificada.’ (ver ‘Media: Mourning in America’ [em inglês], em www.fair.org/media-beat/040610.html).

A seguir, os pontos destacados no texto ‘Reagan: mito e realidade na mídia’:

** A popularidade de Reagan

‘Ronald Reagan foi o presidente com maior índice de popularidade ao deixar o cargo’, afirmou a apresentadora da rede ABC Elizabeth Vargas (6/6/04). ‘Seus índices de aprovação foram os mais altos da história ao fim de seu segundo mandato.’

Não é verdade, desmente a Fair. Os índices de Bill Clinton ao deixar o governo eram na verdade mais altos: 66%, contra os 63% de Reagan, segundo o Gallup. Também Franklin Delano Roosevelt superou Reagan, com 66% de aprovação ao morrer presidente, depois de quatro mandatos (o quarto, cumprido pela metade).

A popularidade de Reagan tende a ser exagerada, afirma a Fair. A matéria principal do Washington Post de 6 de junho o declarava ‘um dos mais populares presidentes do século 20’, enquanto Sam Donaldson, da ABC, anunciava: ‘Entre sátiras, triunfos e tragédias, o presidente conheceu popularidade inédita’. A Tribune (6/6/04) escreveu que sua popularidade com o eleitorado era profunda e pessoal… raramente caiu abaixo dos 50%; freqüentemente superou os 70%, marca extraordinariamente alta.’

Mas uma olhadela nos dados do Gallup mostra outra coisa. Ao longo da maior parte de seu mandato, Reagan não se distinguiu dos demais presidentes pós-Segunda Guerra Mundial. E nos dois primeiros anos de governo seus índices de aprovação eram na verdade bem baixos. Os 52% de aprovação que obteve nesse período o colocam em sexto lugar entre os 10 últimos presidentes, atrás de John Kennedy (70%), Dwight Eisenhower (66%), George H.W. Bush (61%), Bill Clinton (55%) e Lyndon Johnson (55%). Sua popularidade freqüentemente esteve abaixo dos 50% no primeiro mandato, chegando aos 46% durante o escândalo Irã-Contras, e nunca superou os 68%. O patamar máximo de Clinton, por exemplo, foi de 71%. No primeiro ano de governo, o índice de aprovação de Reagan era de 58% – abaixo, portanto, de Eisenhower (69%), Kennedy (75%), Richard Nixon (61%) e Jimmy Carter (62%).

Alguns enfatizaram a likeability (a ‘gostabilidade’ ou a simpatia) de Reagan. O apresentador da CBS Bob Schieffer afirmou: ‘Você podia detestar as políticas dele, mas não havia como não gostar de Ronald Reagan’ (6/6/04). Os números da ‘likeability’ de Reagan, porém, nunca foram muito maiores dos que os de outros presidentes recentes, incluindo Jimmy Carter.

Para mais detalhes em torno das pesquisas sobre Reagan, ver [em inglês] na Fair o artigo de Michael Benhoff a respeito, ‘More Gloss for the Gipper: The Myth of Reagan´s `Enormous Popularity´ (www.fair.org/extra/8903/reagan-popularity.html).

** Sem espaço para os críticos

A grande mídia apostou pesadamente nos republicanos e nos ex-funcionários de Reagan para contar a história do ex-presidente. Resultou que apenas um lado deu sua versão. Matéria de 7 de junho no New York Times sobre a influência do ex-presidente, por exemplo, alegava que Reagan ‘era quase sempre popular e, muitos o dizem agora, estava geralmente certo’. A matéria afirmava que ‘Reagan viveu o bastante para permitir que muitos de seus assessores, e igualmente analistas menos passionais, possam argumentar que ele estava certo em algumas importantes questões de seu tempo’.

Seis das oito fontes citadas na matéria eram de republicanos ou ex-funcionários de Reagan, a sétima era sua sempre devotada Margaret Thatcher e a última, o professor de Direito Cass Sunstein, da Universidade de Chicago, não ofereceu argumento algum sobre o fato de Reagan estar certo sobre coisa alguma. Nenhum ‘analista menos passional’ é citado. Deveriam os leitores se surpreender pelo fato de que amigos e colegas de Reagan ainda achem que ele estava certo?

A televisão abusou das entrevistas com admiradores de Reagan. Os noticiários da manhã do domingo 6/6 praticamente só apresentaram republicanos. James Baker, ex-chefe da Casa Civil de Reagan, apareceu nas três redes abertas, e ainda na Fox e na CNN. A Fox News, além de Baker, trouxe a atual conselheira de segurança de Bush, Condoleezza Rice, o ultraconservador Newt Gingrich, ex-presidente da Câmara de Representantes, e Sheila Tate, ex-assessora de imprensa de Nancy Reagan. As demais redes mostraram figuras semelhantes.

A Fair reconhece que entrevistas com ex-amigos dão um caráter mais íntimo ao retrato do ex-presidente, mas nada acrescentam sobre seus defeitos. Anderson Cooper, da CNN, perguntou em 6/6 ao ex-secretário de Estado Alexander Haig sobre as fraquezas e os fracassos de Reagan, e ouviu a seguinte resposta:

‘Não vou criticar o presidente. E mesmo que o fizesse nunca o faria numa ocasião como esta. Deveríamos ser gratos por ser o mundo um lugar melhor graças à presidência de Ronald Reagan.’

Mesmo vozes potencialmente críticas eram abrandadas. Na edição matinal da NPR de 7/6, Susan Stamberg entrevistou o deputado Dana Rohrabacher [na capa de seu site oficial, em www.house.gov/rohrabacher/, há três textos sobre Reagan e quatro fotos do deputado com o ex-presidente] e o estrategista democrata Paul Begala. Não era, porém, hora de discordâncias, como ficou claro quando a repórter dirigiu-se a Begala: ‘Uma vez o senhor disse que política é show business para gente feia. Ronald Reagan desmentiu o senhor. Ele era um homem extremamente bonito, atraente.’ A resposta de Begala: ‘Cara, se era…’

** O legado de Reagan

A revista Time com data de capa de 14/6 exaltou ‘os anos Reagan como um daqueles capítulos aos quais a história às vezes volta. De um lado, um ferido, mas ainda vigoroso liberalismo, com sua fé no governo como a resposta a quase todas as demandas. De outro, um livre mercado tão vitorioso – mesmo após o estouro da bolha tecnológica – que preferíamos o ‘crescimento’, não o governo, para resolver a maioria dos problemas’.

John Hockenberry, da NBC, disse em 5/6: ‘A revolução Reagan imaginou o inimaginável. Quando a pobreza e a seguridade social atingiram níveis críticos nos anos 1980, Reagan declarou guerra ao governo e deu as costas ao bem-estar social’. O impacto de longo prazo dos cortes nos gastos sociais, na proteção ambiental e em outras baixas da guerra de Reagan ao governo foi relegado a menções ocasionais, lembraram os ativistas da Fair.

Para eles, o fervoroso apoio de Reagan às ditaduras na América Central, marca de sua política externa, e o fato de que esquadrões da morte associados a esses governos assassinaram dezenas de milhares de civis certamente precisam ser incluídos em qualquer avaliação dos sucessos e fracassos de Reagan.

No banco de dados Nexis, uma busca da expressão ‘esquadrão da morte’ na grande mídia americana mostra apenas cinco resultados ligados a Reagan nos dias que se seguiram a sua morte: duas vezes em comentários no Philadelphia Inquirer (6/6/04), uma na Chicago Tribune (8/6) e em cartas de leitores ao San Francisco Chronicle e ao Los Angeles Times (8/6). Apenas uma matéria jornalística (do LATimes de 6/6) incluiu os esquadrões da morte como parte importante do legado de Reagan. As três grandes redes de TV, a CNN e a Fox News nem mencionaram tais commandos, segundo o Nexis.

Tampouco há referências ao fato de que o apoio de Reagan aos dissidentes islâmicos contra o regime soviético do Afeganistão levou ao poder o Talibã e a al-Qaeda. Impressiona saber que a mídia americana sequer mencionou, nos obituários, as relações amistosas do governo Reagan com Saddam Hussein. Nos anos Reagan, os Estados Unidos deram importante apoio ao Iraque, incluindo armas, informações militares e até ingredientes para a produção de armas biológicas, como o antraz (Newsweek, 23/9/02) – política, por sinal, seguida mais do que à risca pelo sucessor George Bush.

Os ativistas da Fair mantiveram a frieza ao comentar o trecho abaixo, no qual a Time de 14/6 consegue extrapolar o gênero literário da hagiografia:

‘Mesmo que suas posições fossem intransigentes a ponto de se perguntar em público se Martin Luther King Jr. não seria um comunista, ou de jamais pronunciar em seu governo a palavra Aids sequer uma única vez, Reagan deu ao reaganismo uma face humana’.

Caberia comentar que as vítimas do Estado mínimo, que perderam empregos em escala de milhões, hão de ranger os dentes à citação da Time atribuída ao conselheiro político de George W. Bush, Karl Rove: ‘Ele nos transformou em otimistas ensolarados. O dele era um conservadorismo da risada e da abertura (…).’ [Para quem não liga o nome à pessoa, Rove, apelidado de ‘Joseph Goebbels da América’ pela revista Counterpunch, é aquele mesmo que em fins de novembro de 2001 reuniu no Hotel Peninsula, em Beverly Hills, os tycoons de Hollywood para convocá-los ‘a servir à pátria’ contra o terror; ver remissão abaixo].

Dan Rather, no 60 Minutes (CBS) de 6/6, disse: ‘As mentes literais sempre se perturbaram com sua tendência a confundir às vezes a vida com o cinema. Mas ele entendeu, como poucos antes ou depois dele, o poder do mito e da arte de contar histórias. Em seus filmes e em sua vida política, Ronald Reagan perseguiu o encontro do sonho com a realidade e, com um piscar de olhos e uma frase de efeito, sempre defendeu a esperança no final feliz’.

No obituário da Time, até as contradições de Reagan viraram pontos altos. O equilíbrio do orçamento era uma de suas prioridades – pelo menos, retóricas. Mas, quando deixou a Casa Branca, a combinação de redução de impostos com os cada vez mais altos gastos com defesa elevou o déficit americano aos píncaros. O escândalo Irã-Contras, grande demais para ser ignorado, foi atomizado. ‘Hoje, analisando o passado, é apenas uma pinta em seus oito anos de presidência’, disse em 7/6 Judy Woodruff, da CNN [a primeira jornalista da rede a exigir resposta militar imediata do governo Bush após o 9/11; ver remissão abaixo].

Tim Russert, em seu Meet the Press, da NBC, mostrou em 6/6 o vídeo da cândida e hollywoodiana resposta de Reagan sobre o escândalo: ‘Há poucos meses eu disse aos americanos que não troquei armas por reféns. Meu coração e minhas melhores intenções ainda me dizem que isso é verdade. Mas os fatos e as provas me dizem que não’. Como bom americano, Russert descreveu este agônico dissimulação de Reagan como ‘very believable’. Ou digna de credibilidade. Para os jornalistas, o triunfo de Reagan nessa crise foi mais importante do que a própria crise.

O repórter da CBS Anthony Mason, em 6/6, disse: ‘O déficit dobrou nos anos Reagan. Seu segundo mandato foi marcado pelo escândalo Irã-Contras, mas ele jamais perdeu o carisma. Ronald Reagan tinha uma estranha habilidade para fazer o americano se sentir contente consigo mesmo’. Esta impressão era geral na mídia. Dan Rather, da CBS, disse em 5/6 que Reagan ‘era um grande comunicador, sim, mas também um mestre em comunicar ‘grandeza’. Ele acreditava que a história, como disse uma vez, ‘era uma fita em permanente desenrolar’, e conseguiu conduzir sua crença em termos simples e poéticos. E assim foi capaz de atuar como um canal que nos ligava ao que tínhamos sido e ao que poderíamos ser’.

** Reagan e a mídia

Em meio à avassaladora cobertura positiva sobre Reagan, alguns comentários ‘destoaram’. Howard Kurtz, crítico de mídia do Washington Post, observou em 6/7: ‘O tom apologético de alguns jornalistas obscurece um fato central dos oito anos do governo Reagan: ele tinha uma relação muito beligerante com a imprensa’. Alguns discordarão, ressalva a Fair: um livro de 1991, On Bended Knee: The Press & the Reagan Presidency [ao pé da letra, ‘De joelho dobrado: a imprensa e a presidência de Reagan’, não editado no Brasil], de Mark Heertsgaard, por exemplo, caracteriza a imprensa como basicamente acrítica nos anos Reagan.

A Fair diz que ninguém deveria argumentar, para explicar a presente onda de hagiografias, que a imprensa ainda esteja sujeita àqueles traumas. Na realidade, alguns repórteres acham até que a principal lição dos anos Reagan foi que a mídia não precisa mesmo ser crítica…

Para finalizar, o conhecido Tom Rosenstiel, do Project for Excellence in Journalism (USA Today, 7/6), opinou sobre a pasmaceira geral na cobertura da morte de Reagan: ‘Para as redes que vêm sendo acusadas de excessivamente liberais, foi uma forma de mostrar que são justas’.

A Fair encerra o texto dizendo torcer para que ninguém precise desta cobertura pífia para definir seu padrão de jornalismo ‘justo’. O OI também torce.