Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A fascinante história da meta única porém múltipla

Se rir é o melhor remédio, gargalhar será overdose? Alguém deveria entrevistar um especialista no assunto. As seções de Saúde complementariam as de Política e Economia, depois de uma semana com o discurso do senador Joaquim Roriz e as entrevistas sobre a reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN). Os leitores poderiam votar, nos sites com pesquisa de opinião, para eleger o evento mais cômico e a explicação mais atrapalhada. A escolha entre a bezerra do senador e a meta de inflação para 2009 pode parecer difícil, mas segunda leva uma vantagem. Para avacalhar a história da bezerra a imprensa recorreu a testemunhos e a recibos. A explicação da meta foi auto-avacalhante.

O noticiário dos jornais deu toda a informação necessária para o leitor perceber o tamanho da trapalhada. Colunistas e editorialistas só tiveram de realçar, com algumas pinceladas, a confusão armada pelo governo. Repórteres mais caridosos tentaram ainda mostrar alguma racionalidade na história. A decisão do CMN, segundo a versão mais amigável, deu novo sentido à política monetária, atribuindo maior importância ao intervalo do que ao centro da meta.

Segundo essa interpretação, o Banco Central ficaria mais livre para buscar uma inflação em qualquer ponto entre 2,5% e 6,5% , sem ter de mirar necessariamente no meio do alvo – 4,5%. A liberdade seria usada, naturalmente, para a autoridade trabalhar por um resultado abaixo do centro.

Essa explicação foi alimentada por autoridade monetária e pode ter algum vínculo com a verdade, mas não corresponde, oficialmente, à decisão do CMN. A história da trapalhada é tão evidente quanto simples. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, havia proposto publicamente a meta de 4% para 2009. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, havia defendido, também publicamente, 4,5% – número já escolhido para 2007 e 2008. Em seguida, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou-se favorável, numa entrevista ao Valor, à manutenção dos 4,5%. Estava armado o circo.

Tudo bem, mas…

A opinião do presidente do Banco Central, terceiro membro do CMN, não era nenhum mistério. Normalmente, votaria na meta mais ambiciosa, porque as projeções, tanto oficiais quanto do mercado financeiro, apontam para uma inflação em torno de 3,5% neste ano e de 4%, no próximo. Para que desperdiçar essa expectativa favorável se os mesmos conjuntos de projeções indicam juros em queda?

Mas o presidente da República havia falado. Pôr o assunto em votação no CMN seria criar um caso com o chefe. Mas o ministro Guido Mantega deve ter percebido, afinal, a armadilha criada por ele mesmo e pelo presidente. Não se podia escolher menos que 4,5%, mas também seria uma bobagem olímpica anunciar ao mundo o afrouxamento do combate à inflação. Isso não tem relação com ortodoxia ou heterodoxia, e desta vez a imprensa não perdeu tempo com essa conversa.

O ministro do Planejamento foi claro na entrevista depois da reunião – tanto quanto seria possível sem violar a disciplina funcional. Apresentou exatamente o raciocínio sobre as projeções, sobre o andamento da política antiinflacionária e sobre as expectativas. Quem se enrolou foi o ministro da Fazenda, tentando juntar cacos desconexos.

Como ninguém se convenceu, ele continuou tentando. Suas entrevistas publicadas no domingo (1/7), no Estado de S.Paulo e na Folha de S.Paulo, apenas confirmaram a confusão exibida na terça-feira (26/6) depois da reunião do CMN.

‘Quando a inflação está abaixo do centro da meta, o BC não tem de levar a inflação para 4,5%. Este é o equívoco de alguns. O centro da meta é um parâmetro.’ Mas qual deve ser a mira do BC e que diabo é esse parâmetro? ‘Ele [o Banco Central] tem de mirar em 4,5% (…) Ele tem de colocar 4,5% no modelo dele. Isso permite que continue reduzindo a taxa de juro.’ Estas são algumas das palavras ditas por Mantega ao Estado. Tudo bem, exceto por alguns detalhes: 1) que significa ‘mirar’? 2) se os 4,5% vão para o tal modelo, e se isso orienta a política de juros, para que servem o modelo e a política de juros? Nenhuma outra frase do ministro esclarece esses pontos.

Graças aos céus

As declarações à Folha não foram mais lógicas. ‘Essa meta (4,5%) evita que o Banco Central suba os juros, no caso de um pequeno aumento pontual da inflação, e interrompa o ciclo de crescimento. A meta que nós estabelecemos garante juros menores.’ Garante por quê? Porque o governo está disposto a aceitar 4,5% e, portanto, é essa a mensagem enviada ao setor privado? Talvez o ministro da Fazenda considere estrábico o pessoal do Conselho de Política Monetária (Copom). Isso explicaria a história de mirar num ponto para acertar noutro. Além do mais, não se pode acusar o pessoal do BC de ter elevado os juros por causa de um ‘aumento pontual’ da inflação.

Casos como esse justificam a publicação de entrevistas pingue-pongue, porque vale a pena reproduzir, em vez de resumir, as palavras do entrevistado. O pingue-pongue é em geral uma chatice e um desperdício de espaço. Segundo alguns, é também uma demonstração de preguiça, pois dispensa o redator de condensar num texto decente as declarações do entrevistado. Também isso é uma questão de bom senso.

Quando uma autoridade, como o ministro Guido Mantega, se dispõe a justificar o injustificável, o repórter e o editor só podem agradecer aos céus por mais essa história divertida – e aproveitar muito bem a preciosa matéria-prima.

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Jornalista