Durante os últimos dois meses, vimos três titãs da mídia nacional mirar na política de distribuição de terra e apoio à produção agrícola. O Globo retratou, em matéria do dia 07/05, ‘O desmatamento dos pequenos’, onde mostra como os agricultores vêm se virando ante aos problemas ambientais na Amazônia. Já a revista Veja (edição 2013, de 20/06, na seção ‘Contexto’) afirma haver ‘muita devastação (ambiental) para pouca renda’. Finalmente, a Folha de S.Paulo (25/6), fechou as cortinas do tema ao levar o leitor pela linha editorial da gastança com cada família assentada.
Nos três casos, a imagem dos assentamentos e da política de inclusão social – por meio da agricultura familiar – fica minimamente ‘rabiscada’. Claro que não por ela em si, mas como sua gestão vem sendo efetuada.
Por trás de qualquer reportagem sempre há pontos discordantes, mal-explicados ou mesmo polêmicos – o que pode gerar confusão e desinformação. Sabidamente, a reforma agrária não é vista com simpatia por boa parte da população: está associada a baderna, violência, invasões, pobreza, assistencialismo etc. Assim, estaria a um passo da vala comum onde jazem os desmandos políticos, mau uso do dinheiro público e impunidade. Fica, assim, a triste impressão de não valer a pena distribuir terra e créditos.
Crítica pela crítica?
Cabe a pergunta: até que ponto – para mais, ou mesmo para menos – as realidades publicadas nestas reportagens mostram o retrato fiel da reforma agrária no Brasil?
A verdade por trás dos dados:
1.
Caro demaisO valor (31 mil reais por família assentada) apontado pela Folha mostra, num primeiro momento, que há dinheiro escorrendo pelo ralo no programa de reforma agrária. A imagem piora quando o texto afirma que o valor é suficiente para manter um casal com três filhos por 27 anos no Bolsa-Família. Ora, tal afirmação é controversa – ainda que aritmeticamente verdadeira. Uma das principais críticas ao Bolsa-Família é exatamente o assistencialismo. A política de reforma agrária tem o diferencial de oferecer a possibilidade da produção como fruto do seu trabalho, e não a dependência eterna por uma ‘esmola’, dita por muitos.
Vale ressaltar que, desconsiderada a inadimplência, boa parte do valor investido em uma família retorna aos cofres; isto é, funciona como empréstimo, e não doação, e o fundo perdido é apenas a menor parte do montante. Portanto, o investimento feito em um agricultor que de fato cultive a terra é algo que precisa ser celebrado. Defender o uso equilibrado e econômico do erário é salutar, mas não esqueçamos que os assentamentos são chamados de ‘favelas rurais’, exatamente pelo abandono e falta de recursos. A lógica seria, então, a crítica pela crítica? (o governo acabou de estimular, em 27/06, mais críticas: noticiou em 20% as verbas adicionais para os pequenos produtores).
Matemática joga contra
O dado da Folha indica outro fato mais relevante. Numa comparação simples, observa-se que, na verdade, há uma otimização dos gastos do governo atual: nos anos FHC, uma família custava cerca de 40 mil reais (criticado abertamente, inclusive, pelo ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma (Incra) no governo tucano, Xico Graziano, em artigo de 2003).
Uma das explicações para esta redução é a priorização do uso das terras da própria União, o que, evidentemente, reduz os gastos com indenizações. Claramente, este argumento pode ser verificado no número de hectares distribuídos no país – com larga margem de vantagem na Amazônia –, onde a União é dona da maior parte das terras.
2.
ImprodutivoO quesito produtividade é sempre controverso. Neste aspecto, é bom que se frise, a agricultura familiar tem, em um dos seus pilares, a qualidade dos alimentos, e não somente a quantidade. Os textos disponíveis apontam que pelo menos mais da metade dos alimentos da mesa do brasileiro vêm da agricultura familiar. Ainda, pela alta diversificação, possui inserção fundamental na cadeia agroalimentar. Por outro lado, a matemática joga contra. Os números de Veja indicam que a quantidade de produtos por hectare está longe da média mínima esperada.
Foco preservacionista
Veja errou, exagerou? Não. Embora haja ilhas com bons índices de produção, os pequenos ainda produzem abaixo do esperado. O que precisa ser mudado é a idéia de que a agricultura familiar não combina com tecnologia de ponta. Sim, há opões sustentáveis e tecnologicamente avançadas.
3.
Devastação ambientalJá os problemas ambientais, mostrados em O Globo, são de fato verdadeiros. Há um nível relevante de desmatamento provocado pelos pequenos agricultores na Amazônia, já estimado em 15% da região. Outro aspecto real é a lentidão e baixo número de assentamentos que estão legalmente licenciados sob a ótica ambiental (O Globo e Veja).
Infelizmente, não são somente os agricultores os responsáveis pelos problemas ambientais. A falta de sintonia, ainda existente, entre os órgãos públicos estaduais de meio ambiente e o próprio Incra, põe pedras no caminho dos licenciamentos. Basta lembrar que há estados cobrando pelos trâmites administrativos do licenciamento valores similares a empreendimentos com alto nível de impacto ambiental (louvem-se outros estados em que a taxa é dispensada). Tal pensamento precisa ser reavaliado, pois há alguns anos a reforma agrária praticada na Amazônia tem um foco mais preservacionista.
Pauta semanal
Algo que precisa ficar bem claro é que, primeiramente, a reforma agrária é um programa totalmente diverso em cada canto do país. As condições de clima e solo, processo de colonização, cultura agrícola, dinâmica socioeconômica e perfil político de cada estado são totalmente diferentes (a Folha chama a atenção para este fato). Parece óbvio para quem passou nas aulas de geografia na 5a série, não é? Nem tanto. A notícia sobre a reforma agrária sempre soa como homogênea e verdade geral.
Infere-se dos textos que não foi intenção usarem do recurso comparativo. Ainda assim, confrontar os números da reforma agrária dos gaúchos e de Roraima, por exemplo, seria uma falta de bom senso sem tamanho. Portanto, cada caso deve ser visto com seus matizes e cenários – sem extrapolações.
Na última campanha eleitoral, o tema não foi pauta nem para mídia nem para os candidatos a presidente. Perdemos boa chance de expor idéias e colher do futuro chefe do Brasil o que fazer se eleito. A imprensa também comeu mosca.
Uma leitura atenta das mídias locais mostra que a reforma agrária aparece como ponto de pauta pelo menos uma vez na semana. Nos veículos nacionais, entretanto, sua veiculação é mais demorada. Algo especial agora?
Avanço para a sociedade
Para quem entende da matéria, fica fácil estabelecer um paralelo de importância. A reforma agrária é, sem dúvida, um dos assuntos de maior importância de um país com o perfil e origem como o nosso. Boa parte dos problemas estruturais da sociedade, como um todo, têm origem no meio rural; e como bem enfatiza José Graziano ‘… a equação agrária do século 21 requer um projeto de desenvolvimento legitimado por toda a sociedade’ – o que inclui a imprensa. Assim, a julgar pela massa de ‘sem-terras’ e disponibilidade de áreas para distribuir – é justificável que discorrer a respeito nunca soará desatualizado.
Por mais social e relevante que seja para o país, a agricultura dos pequenos não tem o peso que deveria – se comparado com o ‘outro (pesado) lado da balança’: a agricultura comercial. A exposição deste último é justificável (?), já que gera os famosos dividendos para o PIB brasileiro.
Em suma: o Brasil se interessa mais pelas toneladas de carne exportadas do que se há o mesmo produto no açougue ao lado para o almoço.
Fica a sugestão, para a imprensa, de que há farto material a ser explorado nos números da agricultura no Brasil – muito além do lugar-comum da grilagem e desvio de verbas públicas. Que tal averiguar a incompatibilidade entre agricultura familiar e agricultura de resultados? Há necessidade de se discutir a fundo os índices de produtividade, que ainda são da década de 70; pôr em xeque a questão qualidade versus quantidade dos alimentos; há um vasto campo de reportagens, também, a respeito da indústria das licenças ambientais; e mesmo discutir se há ou não latifúndio predominante no país e suas implicações para a agricultura nacional.
Finalmente, ainda que a reforma agrária não tenha seu espaço na grande imprensa nacional, sua inclusão nas discussões de O Globo, Veja e Folha indica um avanço para a sociedade: assunto de interesse de todos e não somente dos interioranos. Pena que, ainda, sob perfil negativo.
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Engenheiro agrônomo e mestre em Florestas Tropicais, Manaus, AM