Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalista tem lado

‘Como jornalista, você tem de estar do lado da justiça, do equilíbrio, da decência, tem de se posicionar. O Oriente Médio não é um jogo, onde você dá tempo equivalente para cada time. Não é um julgamento público, é uma imensa tragédia humana. Se estivéssemos cobrindo o tráfico de escravos no Brasil, daríamos o mesmo espaço ao escravo e ao traficante?’ [Robert Fisk, correspondente de guerra britânico do jornal The Independent, em entrevista concedida a Sérgio Dávila, da Folha de S. Paulo (25/06/07)]

A opinião de Fisk traz de volta a eterna discussão sobre a imparcialidade jornalística. Há pelo menos quatro anos venho defendendo, no ‘Fazendo Media’, uma posição muito clara: o texto jornalístico só poderá ser imparcial quando escrito por robôs. Pedir que um jornalista seja imparcial é o mesmo que exigir que ele deixe de amar, que abandone seus sentimentos, que se desumanize. O ser humano, enquanto humano, possui uma subjetividade, um histórico de vida que lhe confere um determinado vocabulário, este já repleto de significações e pontos de vista. No fundo, por mais que o jornalista ouça os dois ou mais lados de uma questão, ele tenderá a escrever ‘isso aconteceu, segundo fulano’ quando acreditar no tal fulano, ou ‘isso teria acontecido, segundo beltrano’, quando desconfiar do tal beltrano.

Há um outro aspecto extremamente relevante, porém nunca discutido em profundidade. Trata-se do modo pelo qual a estrutura da reportagem é construída. Muitas vezes, o contraponto apresentado não é o único ou o mais representativo. É preciso enfatizar que toda construção jornalística é pautada por subjetividades. E é justamente nesse ponto que a compreensão da história se faz notar, na mesma proporção em que a ignorância do jornalista se faz lamentar. De modo que é possível construir uma reportagem sobre um homem-bomba em Bagdá registrando apenas o número de mortos e ressaltando o fanatismo daquele sujeito que se matou, ou então esquadrinhar a questão de outra forma, perguntando, por exemplo, quais as razões que levam alguém a se explodir, ou criticando a invasão do Iraque pelos EUA. A partir daí, tudo muda. As fontes ouvidas serão outras, título e subtítulo serão completamente diferentes e até o conjunto de palavras utilizado deverá variar. Por que o termo ‘terrorista’ é usado para designar alguém que pega em armas para resistir à invasão estrangeira e não para intitular aqueles que invadem?

O triste, nisso tudo, é que essa falácia da imparcialidade jornalística vem sendo utilizada para a legitimação de toda sorte de crime contra a humanidade, cujo exemplo mais chocante tem sido a cobertura do massacre estadunidense no Iraque a partir de jornalistas embutidos na tropa invasora. As corporações de mídia brasileiras exibem esse material – devidamente monitorado pelo Departamento de Defesa dos EUA – ao mesmo tempo em que seus editores concedem entrevistas sobre os valores nobres da imparcialidade jornalística e criticam a não renovação da concessão da RCTV em nome da liberdade de imprensa.

Por fim, cabe comentar a pergunta que Robert Fisk devolve a Sérgio Dávila. ‘Se estivéssemos cobrindo o tráfico de escravos no Brasil, daríamos o mesmo espaço ao escravo e ao traficante?’ Fisk, como se sabe, vive no Oriente Médio há 40 anos e só esteve no Brasil em duas oportunidades. Porque se vivesse aqui certamente saberia que a resposta para sua pergunta é: ‘Claro que não’. No Brasil, as corporações de mídia dariam muito mais espaço para os traficantes de escravos, do mesmo modo que deram para os torturadores de outrora e assim como dão para os assassinos de hoje.

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Jornalista, editor do FazendoMedia