‘Você não vai gostar disto. Não se deve falar mal dos mortos. Mas, neste caso, alguém tem que fazê-lo. Ronald Reagan era um vigarista. Reagan era um covarde. Reagan era um assassino.’
É neste tom vociferante que Greg Palast, um dos mais importantes jornalistas investigativos da atualidade, dá início à sua diatribe contra o recém-falecido presidente Ronald Regan, em seu artigo ‘Killer, coward, conman – good riddance, Ronnie Reagan’ (disponível em www.gregpalast.com).
Palast é um velho crítico do poder nos Estados Unidos e parece seguir à risca o lema de outro grande jornalista, Walter Lippman, para quem o jornalismo serve para tirar o sono dos poderosos e consolar os injustiçados. Em seu livro A melhor democracia que o dinheiro pode comprar (publicado no Brasil pela W11), Palast escancara a fraude eleitoral ocorrida na Califórnia e que resultou na eleição de Bush Jr. Por sua postura antiestablishment, foi declarado persona non grata na mídia americana. Hoje seu raio de ação está basicamente circunscrito às páginas dos diários londrinos The Guardian e The Observer e de alguns alternativos americanos.
Destoando inteiramente do necrológio politicamente correto escrito sobre Reagan pela grande imprensa, Palast vergasta em seu artigo a imagem do ex-presidente. ‘Em 1987, eu estava numa pequena cidade miserável da Nicarágua chamada Chaguitillo. As pessoas eram muito amáveis, embora passassem muita fome. A exceção era um homem jovem e rude, cuja esposa acabara de morrer de tuberculose.’ Antibióticos poderiam salvá-la, mas a Nicarágua era vítima de um embargo decretado por Ronald Reagan, um ‘cara de grande coração’, ironiza Palast. Isto porque Reagan simplesmente não gostava do governante que o povo elegera. ‘Ronnie ria abertamente e contava piadas, enquanto os pulmões da jovem mulher se enchiam e a impediam de respirar’, escreve. ‘Reagan fazia brilhar um sorriso de filme B, enquanto eles enterravam a mãe de três filhos’, critica, numa alusão à carreira cinematográfica do ex-presidente.
O sorriso de Reagan representou uma bem-sucedida estratégia de marketing que procurou vender a imagem de um presidente cordial, defensor dos pobres e oprimidos dos Estados Unidos. Baudrillard, em seu livro América, uma série de flashes sobre sua visita àquele país na década de 1980, notou com sarcasmo que, no governo Reagan, o discurso político havia sido substituído por uma reluzente fileira de dentes.
Entre um sorriso e outro, Reagan fomentava sua política de violação dos direitos humanos na América Central, que custou a vida de milhares de civis. O escândalo Irã-Contras é o exemplo mais notório dessa ação em que a venda secreta de armas dos EUA ao Irã serviu para financiar os Contras da Nicarágua, manobra, aliás, proibida pelo Congresso americano.
Além disso, a Reaganomics, como ficou conhecida a política econômica conservadora dos oito anos do governo Reagan, desembocou no Consenso de Washington, cujo receituário foi seguido na década de 1990 pela maioria das economias capitalistas e cujas conseqüências os brasileiros sentiram na pele durante o governo FHC, com o festival de privatizações, a recessão e os ajustes fiscais draconianos. O Consenso levou ainda à crise argentina de 1990, à crise mexicana de 1994 e ao esfacelamento da economia da ex-União Soviética e demais países do Leste europeu.
‘Eu me lembro de Nancy, cérebro e ossos cruzados como num daqueles sinais de perigo, andando empertigada em vestidos de grife, alguns dos ‘presentes’ que iam parar nas mãos dos Reagans vindos de companheiros bem compensados pela pilhagem do governo’, atira Palast. O gosto pela ostentação, pelo exagero e pelo sucesso a qualquer preço pautou a mentalidade yuppie que prevaleceu na América nos anos 1980, como bem o demonstra Tom Wolfe em A fogueira das vaidades, e foi copiada por seus epígonos nas Manhattans tropicais, num jogo de cobiça ancorado na selvageria das livres forças de mercado defendidas à exaustão na era Reagan.
‘E, durante todo o tempo, o vovô dava sorrisos largos, o avô que balia sobre ‘valores familiares’, mas que não estava nem aí para os seus próprios netos’, alfineta Palast. Ele prossegue: ‘Em seu necrológio, o New York Times escreveu que Reagan projetava ‘fé na América das pequenas cidades’ e ‘nos valores dos velhos tempos’. Valores uma ova! Era a união sendo rompida e a declaração de guerra contra os pobres e contra qualquer um que não podia comprar roupas de grife. Era a Nova Miséria trazendo a fome de volta à América, de modo que cada milionário pudesse conseguir um novo milhão’.
Contraponto aos chapa-branca
E durante todo o tempo – argumenta Palast –, o último ato consciente de Reagan, antes que seu cérebro se evaporasse [numa alusão ao mal de Alzheimer] foi perdoar um golpe de estado contra o Congresso eleito, perpetrado pelo secretário da Defesa, Casper O Fantasma Weinberger (sic), juntamente com o ensandecido coronel Oliver North, que conspiraram para dar armas ao Monstro do Oriente Médio (sic), o aiatolá Khomeini.
Ao longo da noite, em Chaguitillo – conta Palast –, os agricultores permaneciam acordados para proteger seus filhos pequenos dos ataques dos contra-terroristas de Reagan. ‘Os agricultores sequer eram sandinistas, aqueles ‘comunas’ que o nosso presidente de cuca-fundida nos dizia que estavam a uma distância de 48 horas, de carro, do Texas. Mas o que diabos eles iam querer com o Texas?’, desdenha. ‘Contudo’, diz Palast, ‘os agricultores e suas famílias eram os alvos de Ronnie.’
Na escuridão deserta de Chaguitillo, continua Palast, uma TV permanecia ligada com o som alto. ‘Estranhamente, ela mostrava um filme de gângster de terceira categoria.’ O nome do filme: Irmão Rato. E o ator principal: Ronald Reagan. ‘Bem, meus amigos’, diz Palast, ‘vocês podem descansar sossegados esta noite, pois o Rato está morto.’
No mesmo tom esbravejante com que iniciou o artigo, Greg Palast o finaliza: ‘Assassino, covarde, vigarista. Ronald Reagan, adeus e boa viagem’. Na pátria que já gestou línguas tão ferinas como a de H. L. Mencken, um dos mais notáveis polemistas da imprensa norte-americana das décadas de 1920 e 1930, cuja retórica era comparada a um disparo de fuzil, Palast surge como um insólito contraponto ao jornalismo chapa-branca que tem acobertado as versões do Pentágono para as ações imperialistas de Bush Jr. e seus sicários.
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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)