A onda de repressão às rádios comunitárias em todo território brasileiro e a não renovação da licença da emissora golpista RCTV da Venezuela [A licença de funcionamento por mais 20 anos da Rádio Caracas Televisão – RCTV – não foi renovada pelo governo da Venezuela. Os grandes veículos de comunicação do Brasil, como Rede Globo e os jornais Folha e Estado de S. Paulo, estão em campanha explícita contra a figura do presidente Hugo Chávez, defendendo um suposto direito à liberdade de expressão que eles mesmo violam com a concentração intransigente dos meios de comunicação no Brasil] pelo presidente Hugo Chávez reacendeu o debate sobre o monopólio das telecomunicações e a direito à comunicação e à livre expressão. Os meios de comunicação no Brasil são altamente concentrados e o governo federal insiste em manter a política de repressão e não concessão de espaço às rádios comunitárias.
A Associação Comunitária do Jardim Esperança, ex-Vila Pluma, no Pinheirinho, zona sul de Curitiba, foi fundada em novembro de 1981, e um dos seus objetivos estatutários é a manutenção de uma rádio comunitária, nos termos da lei 9.612/98 [Art. 1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço. O parágrafo 1º define ‘por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado à comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros’] –, lei da radiodifusão comunitária. A Associação Comunitária do Jardim Esperança mantinha uma rádio genuinamente comunitária, com abrangência no bairro e adjacências, que era utilizada por diversas entidades sociais.
Apoio e solidariedade
No ano de 2004, diversas entidades sociais se reuniram e enviaram pedido de autorização de funcionamento para o Ministério das Comunicações em 18 de março. Passados três anos, não houve resposta do Ministério, sequer um aviso. Embora haja freqüência disponível para emissoras comunitárias na região, o Ministério não deferiu o pedido. Enquanto isto, a Associação comprou equipamentos para a rádio comunitária, homologados pela Agência Nacional das Telecomunicações – Anatel – com arrecadação de doações e campanhas. Como forma de exercício do direito à comunicação, a rádio foi colocada no ar temporariamente. Na faixa 89,7 FM, a rádio serviu de instrumento de divulgação para escolas, associações de moradores, agentes de saúde, igrejas e moradores de outros bairros que utilizavam o serviço. Pessoas e entidades que não têm lugar nas rádios convencionais. Com informação e diversão, a rádio se consolidou na região do Pinheirinho.
Porém, em 4 de março de 2005, de forma inconstitucional e ilegal, dois agentes da Anatel foram até a Associação, interromperam o funcionamento da rádio e lacraram os equipamentos. A Polícia Federal abriu inquérito policial e apreendeu a aparelhagem da Associação.
Diversas entidades, que utilizavam e apoiavam a rádio, manifestaram apoio à Associação Comunitária, como: Conselho Tutelar do Pinheirinho, Escola Etelvina Ribas, Colégio Estadual La Salle, Colégio Estadual Prof. Loyola, Escola Isabel Lopes Santos Souza (todos do Pinheirinho), Cefuria [Centro de Formação Urbana e Rural Irmã Araújo, entidade social que trabalha com assessoria, formação, comunicação e economia solidária], Igreja Evangélica Irmãos Menonitas da Vila Rio Negro, o Cecopam [Centro Comunitário e de Proteção Alimentar Padre Miguel, desenvolve projetos de alimentação natural, economia solidária e artes, em Curitiba], a Igreja Quadrangular do Jd. Pinheiros, a Associação de Moradores da Vila São Pedro, Conselho Regional de Serviço Social da 11ª Região – Paraná, a Associação Comercial da Macrorregião do Pinheirinho, o vereador Pedro Paulo Costa, Terra de Direitos, dentre outras.
As medidas de criminalização
A Associação de Moradores, representada pela Terra de Direitos, recorreu ao Judiciário requerendo a retirada do lacre da Anatel e a autorização de funcionamento em face da demora injustificada do Ministério das Comunicações em autorizar definitivamente, ou que fosse determinado prazo para decisão do Ministério. Os pedidos foram negados pelo juiz da 3ª Vara Federal do Paraná. A Associação de Moradores recorreu ao Tribunal Regional Federal, que manteve a sentença e também negou os pedidos da Associação, contrariando as decisões do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal que autorizam o funcionamento das rádios comunitárias nestes casos.
Para reprimir a iniciativa comunitária e social, assim como as lideranças que trabalhavam gratuitamente, o governo federal utiliza diversos instrumentos. Além de não se manifestar sobre o pedido de autorização de funcionamento, proposto em 2004, a Anatel iniciou a repressão. A rádio comunitária foi impedida de funcionar e a aparelhagem foi lacrada pela Anatel [A Ação Direta de Inconstitucionalidade 1668/DF determinou a suspensão dos efeitos do art. 19, XV, da Lei 9.612/98, portanto a Anatel não tem mais a prerrogativa de apreender ou lacrar os equipamentos das rádios comunitárias. Portanto, age contra a lei], que acionou a Polícia Federal para proceder à apreensão da aparelhagem – adquirida por meio de doações realizadas pela comunidade. Depois, foi aberto um processo administrativo pela Anatel, que, apesar da defesa da Associação e da Terra de Direitos, culminou na aplicação de multa no valor de R$1.700,00 pelo suposto crime de radiodifusão sem autorização da lei 9.612/98. A Associação recorrerá da multa aplicada.
Em seguida, a Polícia Federal ainda instaurou um inquérito policial, que estava em trâmite na 3ª Vara Federal Criminal de Curitiba, sob o n.º 2005.70.00.022258-6, para indiciar o presidente da Associação Comunitária do Jardim Esperança, Ronny Roque da Silva, por crimes contra as telecomunicações (art.183 da lei 9.472/97). No inquérito policial, houve a apreensão da aparelhagem.
A primeira vitória
Porém, após a manifestação do Ministério Público Federal [o procurador da República João Vicente Beraldo Romão assim se manifestou: ‘Desta feita, o Ministério Público Federal , diante da inexistência de fatos que possam caracterizar a potencialidade lesiva da conduta, manifesta-se pelo arquivamento do presente inquérito policial, com as ressalvas do artigo 18 do Código de Processo Penal.’] pedindo o arquivamento do inquérito policial federal por se tratar de um crime insignificante para o sistema penal, o juiz federal Nivaldo Brunoni, da 3ª Vara Federal Criminal, determinou o arquivamento do inquérito, tendo em vista que ‘o fato investigado não possui relevância penal’ e autorizou a devolução do aparelho transmissor apreendido em 30 dias. Trata-se de uma decisão importante para garantir a liberdade a centenas de pessoas que estão sendo processadas no Brasil pelo crime de comunicar sem autorização do Ministério.
Em vista disto, a Associação continuará pleiteando a autorização definitiva do Ministério das Comunicações.
A ação das rádios comunitárias é elementar para a democracia brasileira [a revista CartaCapital investigou os processos para concessão das rádios e o ‘clientelismo eletrônico’ ainda vigente no país, na matéria ‘Na onda da política’, do jornalista Phydia de Athayde, disponível em http://www.cartacapital.com.br/2006/08/5159/], na transição contra a monopolização dos meios de comunicação e a democratização do acesso à informação. [Sobre a experiência das rádios comunitárias brasileiras e a crescente criminalização, vide os relatórios ‘Querem calar a voz do povo’, da Rede ABRACO, disponível na página www.redeabraco.org.]
Direitos ratificados
O direito à comunicação é reconhecido pela Constituição Federal nos artigos 5º, incisos IV, IX e XIV, e 220 sendo, portanto, inconstitucional qualquer atitude ilegal que reprima a comunicação comunitária. [Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV. é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX. é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença; XIV. é assegurado a todos o acesso à informação (…) Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Parágrafo 1º – Nenhuma Lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observando o disposto no art. 5º, IV,V,X,VIII e XIV.]
O Brasil é signatário de diversos Tratados Internacionais que reconhecem o direito à comunicação, o que obriga o Estado Brasileiro a cumpri-la. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 19 garante a ‘liberdade de opinião e de expressão’, direito que compreende ‘liberdade de receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios’. As rádios comunitárias são uma alternativa à concentração dos meios de comunicação nas poucas famílias que detêm este ‘quarto poder’ na América Latina. E esta alternativa vem sendo utilizada por grupos sociais excluídos, desde índios, a camponeses a favelados. A Convenção Americana sobre os Direitos Humanos [Convenção Americana de Direitos Humanos: Art. 13. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.] – e o Pacto de San José da Costa Rica – ratificados pelo Brasil no Decreto Lei 678/1992, asseguram a existência destes meios alternativos de comunicação.
Um ‘espaço no rádio’
Os ouvintes da Rádio Comunitária do Jardim Esperança recebiam informações sobre os postos de saúde, sobre as escolas da região, discussões sociais e políticas e muitas outras informações de utilidades públicas que foram censuradas pela ação da Anatel e da Polícia Federal. Tratou-se, definitivamente, de violação do direito humano à informação e à livre comunicação prevista na Constituição e nos tratados internacionais. Os moradores do Jardim Esperança foram impedidos de receber e transmitir informações. Mas resistem para manter sua voz no ar.
A utilização de aparelhagem de baixa potência, até 25 watts EPF, não tem condições de atingir os sinais de rádios policiais ou de aeroportos. Os aparelhos utilizados pelas rádios comunitárias, têm, além de baixa potência, cobertura restrita a 1 quilômetro. O que tem causado acidentes é a demora injustificada na decisão dos pedidos de autorização e a legislação neoliberal aplicada pelo atual governo.
Apesar da violação permanente de seus direitos humanos, os moradores do Jardim Esperança e apoiadores de outras Vilas e entidades, manterão a resistência, pela vontade de conseguir um ‘espaço no rádio’.
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Advogado da Terra de Direitos, organização pelos direitos humanos, Curitiba, PR