Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Médicos formados em Cuba não conseguem revalidação

Determinados assuntos são por demais importantes e nem sempre a imprensa dá o devido destaque aos mesmos. Isso é compreensível, pois o noticiário de que se dispõe no mercado é muito amplo – agradeço por não ter que ser responsável por escolher o que ser noticiado ou, ainda pior, o que deve ser manchete.

Uma exceção a essa regra ocorreu na edição de O Estado de S. Paulo de 1º de junho de 2007. Em matéria assinada por Roldão Arruda, foi abordado o tema ‘Médicos do MST formados em Cuba não conseguem trabalhar no Brasil’.Comenta a reportagem que desde 2005 formam-se médicos na Escola Latino-Americana de Medicina de Cuba, a ELAM, e que os mesmos não conseguiram a revalidação automática de seus diplomas para exercer a profissão no Brasil. Uma entrevistada, dirigente do MST, considera o fato como ‘preconceito de classe’.O Ministério de Ensino Superior de Cuba aceita alunos indicados por partidos, instituições públicas e movimentos sociais; após essa indicação, prestam um exame na ilha e, se aprovados, cursam a ELAM. Voltando ao país, contudo, reclamam por não terem sua profissão regulamentada.A matéria bem demonstra que a legislação brasileira obriga, em qualquer área, a alguém formado no exterior, brasileiro ou não, ter que fazer um exame de revalidação do diploma para ter o direito de exigir sua inscrição no Conselho Regional de Medicina (CRM) de sua região.

Bilateralidade não existe

Os porta-vozes do MST e de alunos formados pela ELAM culpam o corporativismo e o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) como responsáveis pela situação. Alguns estão fazendo cursos de medicina em família e, segundo a reportagem, três médicos formados pela ELAM estariam sendo impedidos de fazer a residência médica no Rio Grande do Sul, mas conseguiram cursar as mesmas via ações judiciais. A matéria ainda informa que há projeto de lei que pretende tornar automática a validade dos diplomas emitidos pela ELAM no Brasil. O CFM se defende, dizendo ser o ‘alvo errado’ e que a questão é afeita ao Ministério da Educação. Contudo, se coloca a favor de um exame nacional unificado para revalidação de diplomas e contrário ao projeto de revalidação automática dos diplomas de Cuba.

Em 4 de junho saiu, no Fórum de Leitores do Estadão, carta minha a respeito do assunto: resumidamente, coloquei a questão jogando algumas similaridades com os médicos cubanos importados pela Venezuela e que o exame de revalidação, ou algo semelhante, é obrigatório aqui e em outros países: um brasileiro que queira ser médico na Europa terá que cumprir uma série de formalidades, do exame de proficiência no idioma local ao de conhecimentos, assim como nos Estados Unidos, Austrália, Argentina etc. Não há essa bilateralidade automática. E mesmo um brasileiro que tenha se graduado médico em Harvard, ao voltar ao Brasil também deverá passar pelo mesmo processo.

Bom padrão de qualidade

Bem, no mesmo dia em que saiu minha pequena carta, recebi uma enxurrada de e-mails de alunos formados pela ELAM e até de pais dos mesmos. Evidentemente, me colocaram como alguém elitizado, sem conhecer o povo oprimido e tampouco a medicina cubana. Com a tristeza e revolta com a situação, além de minha própria carta, como não poderia deixar de ser a ideologia entrou em campo: um dos e-mails agradecia ao ‘povo cubano por essa oportunidade e ao nosso grande comandante Fidel Castro’. Dizia, inclusive, que em sua formatura Fidel estava contente por estarem sendo formados médicos com ‘ciência e consciência’. E terminava o e-mail com um ‘Hasta la Victoria Siempre!’ Outro e-mail considera a notícia do Estadão ‘mentirosa e desrespeitosa’ e diz que ‘…são colegas, se é que posso dizer isso, como o senhor, que fazem que no Brasil a saúde seja baseada nesse modelo curativo e comercial’. Diz que ‘o preconceito que tenho contra o MST é muito feio’.

Em linhas gerais, foi esse o teor das mensagens que recebi. Respondi à maioria delas ressaltando meu espanto, inclusive pelo pré-julgamento do que eu acho da reforma agrária, do sistema de saúde brasileiro, da capacidade dos formados na ELAM e assim por diante.

Essa não é uma situação simples. Nos e-mails, eles ressaltam a excelência da medicina cubana. Sim, concordo com o que escreveram. No tempo em que a URSS suplementava os recursos para Cuba, a ilha possuía, sem dúvida, um dos melhores sistemas de saúde e de capacidade da América Latina. Mesmo após o desmantelamento do Leste europeu, a medicina cubana conseguiu manter um bom padrão de qualidade – um dos mais importantes neurologistas da atualidade, premiado nos Estados Unidos e conferencista em todo o mundo, é conhecido meu e por ele tenho o maior apreço – é o Dr. Calixto Machado, do Instituto de Neurologia de Havana, que com seus residentes, em congressos, demonstra sua sabedoria. Por outro lado, viajam com o mínimo possível e suas famílias ficam na ilha.

Medicina é elitizada

Esse mesmo médico descreveu uma inusitada situação, há alguns anos: após o colapso da URSS, começou uma epidemia de neuropatias periféricas em Cuba, confirmadas através de exames neurofisiológicos, área na qual é um dos experts internacionais. Sem causa aparente, foi mais a fundo e chegou à causa do problema: desnutrição. Sem o dinheiro de Moscou, os cubanos estavam passando fome e isso se manifestou como neuropatia carencial, tendo sido publicado o caso na revista Neurology, a mais importante publicação internacional da especialidade. Talvez caso único no mundo documentado dessa maneira, e ainda mais tratado corretamente: os suplementos vitamínicos necessários foram amplamente distribuídos pelo governo cubano e a situação normalizou-se. Não seria de modo algum espantoso encontrarmos uma situação semelhante, porém crônica, na África, na Ásia, na América Latina e – por que não ? – no próprio Brasil.

Creio que o Estadão ou outro órgão de imprensa – e não apenas os ligados às entidades médicas, ‘suspeitos’ pelos que se julgam lesados – deveria se dedicar mais a essa questão. Em primeiro lugar, creio que qualquer pessoa medianamente informada sabe que nossa reforma agrária está longe do ideal, daí ser cabível e compreensível o aparecimento de movimentos de sem-terra, sem-teto e assim por diante.E respondi também que acho que a medicina brasileira, salvo honrosas exceções, é elitizada: por haver grande concorrência no vestibular, mesmo com a abertura indecorosa de faculdades de medicina caça-níqueis e sem critério nos últimos tempos, acabam por passar nos exames candidatos que vêm de famílias mais abonadas que puderam cursar escolas particulares e cursinhos. Isso deve gerar uma visão diferente das coisas por parte dos alunos da ELAM, que se dizem filhos de trabalhadores rurais, de analfabetos etc. E se orgulham, com razão, dessa condição.

Incompatibilidades de currículo

Por outro lado, existe a questão da qualidade: os que me mandaram mensagens ficaram indignados com o fato de eu julgar que os mesmos estariam ‘brincando de fazer medicina’ (eu não usei essa frase) e que teriam melhores condições de atender nosso povo oprimido. Bem, qualificação e mérito são mensuráveis e, assim como no direito, onde há enormes taxas de reprovação nas provas da OAB, verifica-se uma queda na qualidade do ensino pela pletora de escolas médicas no Brasil, seja pelo exame de final de curso voluntário que o CRM de São Paulo está fazendo, seja pelo aumento de processos contra médicos mais jovens formados por essas novas escolas.

Os formados da ELAM julgam-se vítimas de uma conspiração das elites e, pelo que me escreverem, disseram que passaram em concursos rigorosos. Não tenho como rebater essas informações, portanto concordo com as mesmas. Contudo, colegas que aplicam provas de revalidação de diplomas em universidades públicas conceituadas me contam dos péssimos resultados obtidos pelos formados não apenas em Cuba, mas também na Bolívia e na Argentina, onde há um contingente de brasileiros estudando. Como conheço tais pessoas e sua seriedade e isenção, não posso concordar com afirmações de que as universidades brasileiras não querem fazer provas de revalidação ou já são propensas a reprovar os egressos de Cuba, por exemplo. Os exemplos que me foram mostrados revelam incompatibilidades de currículo (embora formalmente se diga que o da ELAM e o brasileiro são superponíveis) e falta de conhecimento.

Item de atrito

Não é novidade para ninguém que a saúde no Brasil é tratada como um cão sarnento. De nossa população, cerca de 35 milhões de pessoas têm acesso a algum tipo de plano de saúde e os demais dependem do SUS, que está muito longe de ser o ideal. E não há perspectivas, a curto ou médio prazo, de que isso seja revertido. Logicamente, também se observa a grande concentração de médicos no Sul e Sudeste, ficando as áreas menos favorecidas do país até sem um médico sequer. E não há programas governamentais para fixar médicos no Norte ou Nordeste e dar condições aos mesmos de exercer bem a profissão.A iniciativa privada não teria razão para dirigir recursos para essas áreas, pois há interesses financeiros, sim.Não há como escapar, no momento: a Constituição brasileira já reza que saúde é direito de todos e dever do Estado.

Mas isso também pode levar a outras conseqüências: se houver programas de revalidação automática, não meritocráticos, poderemos ter uma situação de extrema gravidade – uma medicina privada com certo nível de qualidade e um SUS de baixa categoria.Os brasileiros seriam divididos, ao menos, em cidadãos de primeira e segunda classe, e segundo esses parâmetros teriam direito ao tipo de assistência médica devida.

Para salvaguardar a boa prática médica é que os Conselhos de Medicina são contra escolas médicas caça-níqueis, revalidação automática de diplomas etc. O que se quer é qualidade na saúde, preventiva e curativa, nos níveis primário, secundário e terciário. Há condições para o Brasil melhor atender a seus habitantes no quesito saúde, mas não se pode deixar a questão sem avaliação de mérito e, a todo custo, tirar ranços ideológicos da questão – como já citei, em um dos e-mails houve a finalização com um ‘Hasta La Victoria’. Agindo dessa maneira, pode-se criar um clima para que no Brasil alguém decida ser La Pasionaria ao avesso: ‘No pasarán!’ E a saúde de nosso povo será mais um item de atrito, sem a solução necessária.

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Médico, mestre em neurologia, ex-conselheiro e ex-diretor do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo