Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cabo Anselmo, 34 anos depois

O periodismo, todo periodismo, procura fatos, busca fatos, relata fatos e, de fato, confunde fatos. Na fronteira tênue entre periodismo e outra coisa – e a outra coisa é um oceano escuro que o mundo conhece como literatura –, a verdade é o marco definidor. Até aqui, antes do marco, é periodismo, o fato e os fatos. Depois, a verdade, o fundo oceano, a literatura. Isso porque o reino das possibilidades de um homem, a realidade em seu livre curso, é um território muito além dos 5 W, who, what, when, where, why.

Essas coisas nos vêm em função do tratamento que tem recebido na imprensa o ex-senhor José Anselmo dos Santos, mais conhecido pelo apodo de Cabo Anselmo. Mais de uma vez ele foi entrevistado por repórteres que se submeteram às condições que o ‘cabo’ impôs e determinou. E não me refiro aqui às condições da mais absoluta segurança e sigilo que Anselmo define, sempre cercado por seguranças, policiais, por servidores do velho regime, que ainda não morreu. Cuidados que são naturais a um personagem responsável por assassinatos de muitos militantes socialistas e que por isso teme uma vingança, um justiçamento, como se estivéssemos ainda em 1973. Não. Eu me refiro às condições de tempo, lugar e versões que Anselmo dá, eu me refiro à transcrição absoluta de suas falas como uma expressão da verdade.

Essas falas, pela autoridade da palavra impressa, passam a ser a história e a História. Esse erro, esse crime, seria compreensível em repórteres iniciantes, em jovens que pensam o mundo como nascido hoje.

Cadáveres também falam

Mas o que dizer de repórteres, periodistas calejados, como, por exemplo, Percival de Souza? De passagem, anotemos que ele é autor de um livro ruim, péssimo, como entrevista, como trabalho e como documento para os leitores e para a História. Em Eu, cabo Anselmo, escreve o experimentado repórter:

‘Assim terminou o romance Anselmo-Soledad. Os dois saindo quase juntos do apartamento em Olinda, mas definitivamente separados. A morte mais forte do que o amor. Não fizeram juras de se amar para sempre, e havia chegado o momento da separação. Ela pensava que Anselmo morreria, cabisbaixa; sem saber que os últimos momentos de vida eram os seus e não os dele. Pauline, já amiga de Soledad, procurava dar apoio – sem palavras – à companheira da VPR. Nunca se saberá o que elas e os outros quatro membros da organização comentaram entre si no trajeto para Abreu e Lima, onde, em vez de sepultarem Anselmo, seus sonhos revolucionários é que iriam para a morte numa fuzilaria sangrenta e implacável.’

Além do tom meloso, que soa como antiga radionovela colgate-palmolive, há uma coisa pior que o acento remelento no parágrafo acima: isso jamais houve! Soledad Barret Viedma e Pauline Reichstul foram assaltadas em uma butique no Recife, de surpresa espancadas sob pistolas e seqüestradas. Entendam, isto é um pouco diferente do fim de um romance em uma reunião clandestina. Isso é muito diferente de uma saída em conjunto para uma granja onde seria assassinado Anselmo, por descoberta da sua traição. E, no entanto, Percival compra e assina essa versão, e a põe sem aspas ou sem comillas, como um ingênuo principiante que padecesse do mal da credulidade.

Poderia então ser perguntado: como retomar ações ocorridas há mais de 30 anos, se o único sobrevivente é um senhor de óculos escuros que fala ao repórter? Como é possível ouvir e escutar a fala dos mortos? E no mesmo tom, quem faz esse tipo de pergunta, poderia responder que os mortos só falam aos médicos-legistas. Portanto …. Resposta desonesta e ardilosa. Cadáveres também falam pelo testemunho do mundo, das pessoas que os cercavam.

Historinhas de resistência à prisão

Desse mal, o de não ouvir a voz dos mortos pelo depoimento dos que lhes foram contemporâneos, não padece o último Linha Direta, da Rede Globo de Televisão, na edição da última quinta-feira. Sob o título Cabo Anselmo, durante quase 50 minutos o programa conduziu uma trama que veio de 1964 a 1973, e até a voz de um senhor recuperado de todo e para sempre de qualquer ideologia de esquerda, que um dia professou. Aqui, no entanto, ainda aqui a pesquisa é modesta, pobre, pequena e míope. E não pensem que abusamos nos adjetivos de qualificação.

Mirem, por favor, mirem essa coisa elementar: o indivíduo que um dia se chamou José Anselmo dos Santos pertence à família dos agentes duplos, dos instrumentos de política que se chamam espiões. Isso quer dizer: ele é um mundo de mentiras. Ele é um sistema em que mentiras armam mentiras, que constroem mentiras, sempre. Ou como bem expressou John Le Carré, em O espião que saiu do frio:

‘A mentira não é particularmente difícil; trata-se de uma questão de prática, de perícia profissional, de uma habilidade, em suma, que muitos de nós podemos adquirir. Mas enquanto um vigarista, um ator ou um jogador profissional pode voltar da ribalta às fileiras dos seus admiradores, o agente secreto não goza dessa possibilidade. Para ele, o embuste é, antes de tudo, uma estratégia de autodefesa.’

Isso quer dizer, enfim, que tudo quanto esse instrumento disser, falar, deve ser posto sob absoluta desconfiança porque ele mente por sistema, por hábito, por defesa, por ataque e natureza. Não se pode acreditar em uma só das suas palavras. Quando ele diz eu amo, eu respeito, o bom senso deveria traduzir de imediato, ele odeia, ele despreza, até prova em contrário. Então, mais de um repórter tem creditado e acreditado que ele passou para o outro lado a partir da sua prisão. E, sem mais exame e sem mais pesquisa, passa a construir uma boa história sobre um homem que, depois da prisão, foi obrigado a sobreviver e por isso cometeu as maiores torpezas. Então o repórter, nessa boa história, desconhece e olvida que as pessoas têm uma coisa inescapável chamada conflito moral.

Indivíduos, por certo, ao longo da vida, mudam de convicção. Indivíduos, é claro, sob extremo sofrimento, entregam e delatam e levam outros à morte. Isso é mais comum do que se imagina. Mas indivíduos não passam com tamanha alegria, satisfação e competência para um papel exemplar de infiltração em menos de uma semana. Os atores, sabemos do teatro, têm um processo de ensaio e preparação que demanda mais tempo. Há qualquer coisa nessa transformação de Anselmo que nem Graham Greene e John Le Carré seriam capazes e ou teriam coragem de escrever. Porque é uma mentira, produzida com o mesmo talento das historinhas de resistência à prisão que nossa boa imprensa publicava, sempre que ‘terroristas’ eram mortos.

Caricatura de Hollywood

Daí que vimos uma vez mais, nesse último Linha Direta, a dramatização da passagem de Anselmo para o outro lado como se houvesse ocorrido em 1971. Ora, se a reportagem não desconfiou dessa metamorfose, isso não se deu por falta de alerta aos repórteres. Nem por falta de informações, como já demonstrou Fernando Soares Campos em ‘Cabo Anselmo e os neogolpistas‘. É que, se me perdoam a simplificação, uma passagem de revolucionário a traidor, a partir da tortura, tem mais conteúdo dramático, é mais facilmente imaginável na imagem… Este é um papel em que a cena já vem pronta, com imagens de grades de ferro, gritos e torturas, que possuem o mesmo clichê de som de violinos em melodramas de circo. E aqui, mais uma vez, sentimos a desinformação histórica como norma.

31 de março de 1964, em lugar de primeiro de abril de 1964, retorna. E aqui, uma vez mais, o desconhecimento humano da situação vivida é flagrante até o nível do ridículo. A saber, o encontro de Anselmo e Soledad, no intervalo de uma guerrilha, com os rostos sujos de tinta escura. A saber, o encontro romântico em um quarto, depois de uma garrafa de vinho, com o detalhe infernal da saia descida na cama, a exibir um ângulo de coxa apetitosa. A saber, enfim, a pior caricatura do cinema de Hollywood, que se tem tornado um estilo dramatúrgico da Rede Globo.

Alguém precisa avisar ao departamento de jornalismo que a dramatização de relatos deve ficar a cargo de criadores com o saber de experiência feito, e não de simples ilustradores do que um asno imagina do que poderia ter sido, talvez um dia, quem sabe.

Nem perdão, nem anistia

Então se chega ao fim do programa, ao Anselmo 2007, que se escuta ao telefone. E se ouve, enfim, uma voz que não acordou para o presente, ainda que recite as últimas receitas à direita. É estranho, mas aqui ocorreu a melhor parte do Linha Direta: a voz, distorcida, de quem um dia se chamou José Anselmo dos Santos. E percebemos: a sua retórica perdeu o vínculo com o real e ele ainda não se deu conta. A sua mentira perdeu a verossimilhança, o que é muito grave para um agente. Enquanto ele fala, não importa o que fale, o que diga, sentimos crescer em nós os crimes que cometeu, como um discurso pronunciado ao contrário.

Quem fala, quem escuta Anselmo, fala e escuta Soledad Barret. Ainda que não queira, o ‘cabo’ Anselmo parece estar condenado a rever, a recordar, a tornar a ver suas façanhas, sempre. Ele não tem outro nome nem outra face. Jonas, Daniel, José, com barba, sem barba, magro, gordo, com novos olhos, novas orelhas, novo nariz, nova boca, até nova língua, com câmbios de voz, não importa. Ele será sempre para onde for, até o túmulo, Cabo Anselmo, aquele que gerou a morte da sua companheira, que trazia um filho no ventre.

‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade que estava. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas porque era uma quantidade grande e o feto estava lá aos pés dela, não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror.’ Palavras de Mércia Albuquerque, advogada, ao recordar a companheira do Cabo Anselmo em 1973.

Não há solução jurídica, perdão ou anistia que mais o alcance.

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Jornalista e escritor, Recife, PE