Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vilanias de Brasília

O Brasil é certamente o único o país do mundo onde a palavra mordomia jamais é dita em função do seu significado erudito, no espaço semântico do raramente usado verbo mordomar – administrar como mordomo, o criado maior da casa, aquele que administra os bens de uma casa, de uma irmandade, de uma confraria. Hoje, para os brasileiros, a palavra significa outra coisa: vantagens, bem-estar, conforto, regalias como moradia, transporte, criadagem, alimentação, viagens…


Pois, nas novas gerações, poucos sabem que foi o jornalista Ricardo Kotscho quem deu à palavra o seu atual significado, e a dimensão popular que o novo significado rapidamente adquiriu, como denominação de prazeres pagos com o dinheiro público.


E essa é uma história que vale a pena contar.


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‘Vilanias de Brasília’ – essa foi a definição que de Ricardo Kotscho ouvi em 1990, quando, numa entrevista, me falava da memorável reportagem que fez e assinou em 1976, graças à qual a palavra ‘mordomia’ ingressou definitivamente no glossário político brasileiro, com o sentido conotativo que hoje tem, de designação de vantagens ilícitas ou imorais no serviço público. Vantagens que acabam representando aumentos sub-reptícios de salário, sem o pagamento de tributos.


Ou seja: a pervertida cultura das mordomias lesa duplamente o erário público.


Mas voltemos à história da reportagem feita por Kotscho, sobre a boa vida dos superfuncionários. 


Na verdade, trabalharam na reportagem cerca de 40 repórteres, em vários centros políticos brasileiros, cabendo a Ricardo Kotscho a coordenação jornalística da investigação e o texto final da matéria. 


Ao vasculhar papéis escondidos, Ricardo Kotscho descobriu que a palavra ‘mordomia’ estava lá, numa das normas oficiais que regiam as licitações. Servia para designar os produtos e serviços relacionados com os pequenos prazeres dos cargos. Kotscho a usou na reportagem com criativa carga conotativa. E a enorme repercussão alcançada pelo trabalho jornalístico incorporou definitivamente o termo à cultura política brasileira, como designação de vantagens ilícitas ou imorais no serviço público. 


As tais vilanias de que Kotscho me falava em 1990.


Mais recentemente, ao assinar um dos capítulos do livro Repórteres (que Audálio Dantas organizou para a editora Senac, em 2004), Ricardo Kotscho revela outros detalhes da histórica reportagem, que ele considera ‘a primeira visita aos porões da corrupção’. Ficamos sabendo, por esse depoimento, que a iniciativa da reportagem foi de Fernando Pedreira, então diretor de redação do Estadão. E que o trabalho envolveu as sucursais e os correspondentes do jornal, nas várias capitais de estado do país.


Escreve Kotscho, em seu depoimento:




‘Várias vezes pensei em desistir, tantas eram as dificuldades em obter documentos e tamanho o medo das pessoas de contar o que sabiam. Mas, ao final de dois meses, conseguimos reunir um material tão explosivo sobre a bandalha dos guardiões das moral e dos bons costumes, que a reportagem dormiu um bom tempo na gaveta, até ser publicada.’


O medo de que houvesse vazamento das informações e que o governo viesse a impedir a sua publicação levaram Kotscho a se refugiar em casa durante semanas, para escrever o texto. Depois de pronto o texto, a direção do jornal amadureceu, durante um mês, a decisão de publicar ou não publicar a reportagem. Que finalmente ganhou o espaço público dia 1º de agosto de 19765, com a publicação da primeira reportagem da série de três matérias, sob o título ‘Assim vivem nossos superfuncionários’.


O pior viria depois, segundo o próprio Ricardo Kotscho:




‘Com a ampla repercussão alcançada pela série (escrever sobre corrupção era uma novidade) irritou profundamente os generais e deixou todo mundo da redação muito assustado. A direção do jornal sofreu fortes pressões de Brasília, leia-se Ernesto Geisel, e recebi tantos recados para me cuidar que achei melhor aceitar um convite do Jornal do Brasil para ser seu correspondente na Alemanha.’


Mas tudo valeu a pena: a reportagem marcou simbolicamente o fim da censura prévia, que oficialmente só seria extinta a 8 de julho de 1978: ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo daquele ano; e os parâmetros críticos da discussão sobre a realidade política brasileira foram enriquecidos com os novos sentidos ganhos pela palavra ‘mordomia’.


Cartões corporativos, moldura nova em quadro antigo


Na essência, a vida dos nossos superfuncionários não mudou tanto assim, desde a reportagem de Ricardo Kotscho. Mas as formas e as práticas da mordomia sofisticaram-se.


Como demonstração do ‘progresso’, aí está o escândalo dos cartões de crédito corporativo, a nos revelar que os políticos brasileiros são tão criativos na invenção de formas de gastar o dinheiro público quanto nas explicações que às vezes são forçados a dar, para justificar gastanças. 


No que se refere à inventividade nas formas de gastar, essa do cartão de crédito corporativo é de fato uma solução genial – moderna, sofisticada, prática, com a devida carga de solenidade e pompa. Uma senhora ferramenta de poder e prazer! E uma porta generosamente porosa para se atravessar o curto espaço que, na cultura das mordomias, separa a legalidade do peculato e da corrupção. 


A invenção não é nova. Vem de anos, de governos anteriores. Porém, justiça seja feita, ganhou aperfeiçoamentos recentes, inclusive na ‘argumentação ética’ para as justificativas públicas e/ou a discreta acomodação das consciências. 


Por exemplo, a desavergonhada ‘argumentação ética’ de fazer comparações de gastos com o governo FHC – como se a ética e a moral fossem uma questão classificatória de números e não uma questão de princípios e valores. Ou como a desculpa de dizer que alguns gastos (caso da tal tapioca que o ministro Orlando Silva pagou com dinheiro público, via cartão) são tão insignificantes que soa ridículo falar deles. Como se a noção de peculato devesse estar condicionada ao valor da fraude.


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Mas deixemos que a imprensa cuide do escândalo. Descobertas novas certamente não faltarão, ainda por algum tempo. Os jornais de hoje revelam, por exemplo, que as agências reguladoras, em 2007, sangraram os cofres públicos em um milhão de reais, pela generosa torneira dos cartões de crédito corporativo. Pode até ser sido tudo legal, inclusive os saques em dinheiro, que pelo menos na Anatel corresponderam a mais de 50% dos gastos feitos. Mas, nessa história dos cartões de crédito, mesmo o legal tem de ser bem explicado, por causa das porosidades da porta que faz interface com o peculato e a corrupção.


A verdade é que o fio da meada começou a ser puxado – e põe meada nisso! É o que se deduz da reportagem que a jornalista Vera Rosa assinou na quarta-feira (6/2) no Estado de S.Paulo, e que começa assim:




‘Surpreendido com a continuidade da agenda negativa em torno dos gastos da Presidência da República, mesmo depois da demissão da ministra da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, o governo tentará barrar a abertura de uma CPI para investigar compras irregulares com cartões corporativos, adoçando a boca da base aliada. Depois de um duelo interminável por diretorias da Eletrobrás, da Eletronorte e da Eletrosul, o Palácio do Planalto vai acelerar as discussões sobre as partilhas de cargos no setor elétrico, para terminar a semana sem nenhuma pendência com o PMDB. A estratégia foi autorizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma conversa por telefone com a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (…).’


Enfim, formas lamentáveis de governar, na concepção e nas práticas. 


É certo que tudo isso têm raízes lá atrás, bem atrás, no passado antigo e recente da política brasileira. Mas raízes que, infelizmente, o governo Lula tem irrigado, e bem, em vez de as arrancar. 


E porque as raízes daninhas persistem, haja mordomias! – que vão bem além dos usos e abusos com cartões corporativos. Seria interessante, por exemplo, fazer um levantamento de quantas esposas de funcionários do alto escalão têm carro oficial à disposição, com direito a gasolina e a motorista. 


Claro, tudo, ou quase tudo, dentro das legalidades criadas pelo próprio governo. Mas legalidade não quer dizer moralidade. E esses usos e abusos dos cartões corporativos são práticas vergonhosas de desgoverno, num país onde, ainda recentemente, por falta de verba para pagar o serviço de caminhões-pipa, o Exército teve de suspender a distribuição de água potável às pobres famílias nordestinas atingidas pela seca implacável.


Ditos e feitos do escândalo


** ‘Não estou arrependida’ – disse Matilde Ribeiro, ao se demitir do cargo de ministra da Igualdade Racial, depois do escândalo dos cartões de crédito corporativo. O que significa dizer que repetiria todos os abusos, se o governo e a Nação permitissem.


Ela gastou R$ 171 mil reais em coisas que incluíram vários gastos pessoais, no uso ‘distraído’ dessa gostosa ferramenta de gastar o dinheiro público, chamada Cartão de Crédito Corporativo.


** ‘Não é fácil gastar R$ 171 mil em um ano com alimentação e aluguel de veículos, como alega (Matilde) Ribeiro. Dá algo em torno de R$ 14 mil por mês. Alimenta-se bem a nossa ex-ministra, não? Ou roda bastante com carro alugado. Ou faz a duas coisas ao mesmo tempo’ – escreveu Clóvis Rossi, em sua coluna na Folha de S. Paulo, dia 2 de fevereiro.


** ‘A compra da tapioca foi um gasto feito por engano. Eu trouxe até os dois cartões, o corporativo e o pessoal, para mostrar que é possível confundi-los’ – de Orlando Silva, ministro dos Esportes, na entrevista coletiva em que anunciou ter devolvido aos cofres públicos R$ 30.780,38 gastos no cartão de crédito corporativo, em 2007, apesar da convicção de que todos os gastos foram feitos dentro da legalidade. 


A entrevista coletiva, realizada no luxuoso hotel Renaissance, em São Paulo, custou R$ 2.154,50 – pagos com recursos particulares do ministro, segundo sua assessoria.


O homem é mesmo um gastador…


** ‘Tudo o que precisa de muita explicação é ruim de usar’ – de José Múcio Monteiro, ministro das Relações Institucionais , em entrevista ao Estadão de domingo (3/2), sobre o uso de cartões de crédito corporativo por ministros e funcionários de alto escalão do governo federal. Em tempo: o ministro não é usuário do cartão.


** ‘Outra frase do ministro José Múcio, na mesma entrevista, sobre os descaminhos no uso do cartão de crédito corporativo: ‘Não é o instrumento que toca; é o músico’.


** ‘Para finalizar, uma frase que hoje ouvi de um fanático e triste torcedor da Lusa: ‘A situação financeira do clube está tão ruim, que só vejo solução se conseguirmos um cartãozinho corporativo.’

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Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo