Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Corpo-coisa ao pé do morro

Em um prazo de 30 dias, Rocinha e Morro do Zinco receberam a seus pés dois corpos igualmente estraçalhados, que promovem um diálogo imagético de horror. O primeiro foi transportado por policial numa carrinho de mão usado na construção civil: o corpo pardo espalhava-se rijo, qual cimento endurecido pela frieza da indigência. O segundo estampava o cortejo do pai, que conduziu o corpo do seu filho de 14 anos dentro de um carrinho de supermercado até a saída da favela, posto que a polícia achou temerário subir as ruelas para a retirada do cadáver. Sob o peso de todas as ausências, a figura do menino-mercadoria vulcaniza o grau de barbárie a que chegamos e sangra publicamente o estandarte do abandono, cuja sonata perversa embala um país embecado.

O adolescente que possivelmente poucas vezes teve chance de conduzir um carrinho de compras e passear pelos corredores iluminados e coloridos de produtos novos dos megamercados se transforma, ele mesmo, em produto a ser exibido. O guri, no caso sem ‘vendas nos olhos nem as iniciais’, passa a ser a mercadoria consumida, com seu corpo virado de bruços, olhos inertes dirigidos ao chão e pés amarrados, nem lindo, nem rindo, nem ‘de papo pro ar’. Do alto do morro, a descida tem como companheira o triunfal silêncio da falência múltipla do Estado brasileiro, até mesmo em recolher o lixo que gerou, incapaz até de coletar o corpo mutilado e morto de um adolescente.

Já não nos choca mais que uma criança ou adolescente seja vitimada precocemente, esse parece ser um sentido naturalizado pela conjuntura de violência estufada pela periferização das cidades, desemprego e fome, impossibilidade da educação e saúde para a maioria etc. A morte dos infanto-miseráveis não comove mais, é certo. Mas, no caso do pai que empurra o carrinho de compras com o corpo do próprio filho, o que petrifica é o fato de o corpo descer embalsamado como objeto sem serventia, como fetiche capitalista às avessas, pois a coisa não é desejada para o consumo e apresenta-se imprópria como um pacote sem remetente nem destinatário.

Tragédia apagada

Corpo-coisa sem a marca indelével de um rosto, corpo-coisa que se transmuta na metáfora fotográfica de pés amarrados. Ainda que morto e principalmente porque morto, os pés estão presos aos ferros do carrinho por fios de nylon, como se não o tivessem sido presos desde o berço pelas condições materiais deformantes, quiçá indigentes da vida no morro onde ‘Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ cada ribancheira é uma nação/ À sua maneira/ Com ladrão/ Lavadeiras, honra, tradição/ fronteiras, munição pesada’. Pés aprisionados pelas algemas da dor. Contenção de movimentos combinada com a inércia das impossibilidades, quiçá a ausência total dos horizontes no predatório movimento de imobilizar os sentidos do humano e transfigurá-los em características da mercadoria e do (super) mercado.

Nesse anônimo cortejo bem poderiam entrar em cena tantos outros pais que tiveram contato com o corpo de seus filhos mortos. O tom de dramaticidade descrito por Homero, quando o rei de Tróia implora à Aquiles a devolução do corpo de seu filho Heitor, bem o representa. Mas nenhum deles apresenta-se tão atroz, pungente e bárbaro como este, em que a interdição do colo e sua substituição pelo carrinho de compras se materializa. Não foi possível estar ao lado do corpo filial, desenhá-lo em sua geografia de lembranças, tocá-lo em sinal de reverenciada despedida. Em vez do abraço foi imposto o carregamento da mercadoria, a destinação do objeto inerte e a tentativa absurda de atribuir um valor àquilo que já não serve para nada.

Nas páginas dos jornais impressos e eletrônicos, a notícia foi dada. Não houve registro de depoimentos de amigos, entrevistas notórias, choro de mãe, tristeza de parentes, lembranças de vida, tampouco jornais para a cobertura do dorso ensangüentado. Não apareceu nem mesmo a gaveta putrefata do IML como rastro pífio da presença de algum poder constituído. A tragédia foi apagada, embora imensa. Os sentidos de indignação também o foram. Apareceu apenas o corpo no carrinho do supermercado, em cujo traço não se vê rosto nem nome: apenas o anonimato a encher alguns de vergonha, poucos de indignação, os mais ingênuos de medo, e tantos outros, nem isso!

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Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo