Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A incapacidade de comunicação do Estado

A cobertura jornalística dos casos de febre amarela silvestre, identificados no início de janeiro, no Centro-Oeste do país, esconde uma questão que não pode ser ignorada: a incapacidade do Estado de disseminar informação contrária àquela dominante na grande mídia privada – no caso, a informação correta – servindo ao interesse público e evitando o pânico que chegou a tomar conta de segmentos significativos da população ao longo de várias semanas.


A grande mídia não soube distinguir um problema de saúde pública da cobertura política que sistematicamente vem fazendo das ações de governo, ou seja, mostrou seu despreparo em lidar com informações suprapartidárias de interesse coletivo. Além disso, revelou desconhecer (ou menosprezar) as enormes conseqüências que a divulgação reiterada de informações incorretas (exageradas e/ou alarmistas) pode provocar no comportamento da população.


Essa não foi a primeira vez que distorções graves na cobertura jornalística ocorrem entre nós. E certamente não será a última.


O pronunciamento do ministro da Saúde em rede nacional de rádio e televisão, as entrevistas de autoridades do governo e as notas oficiais não foram suficientes para alterar a percepção dominante sobre a ameaça iminente de uma epidemia de febre amarela que já havia sido criada na opinião pública. Aparentemente, só a possibilidade de ação do Ministério Público – que não se confirmou – fez com que se diminuísse o fluxo de informações incorretas. Mas, já era tarde: o número de casos graves provocados por vacinação desnecessária era equivalente (ou maior) àquele provocado pela ação direta do mosquito transmissor.


Em resumo: o Estado brasileiro não dispõe de um sistema de mídia alternativo capaz de equilibrar fluxos de informação de interesse público divulgados de forma incorreta pela mídia privada dominante.


Setor estratégico


No debate sobre a privatização das comunicações ocorrido nos anos 1990, uma das questões levantadas referia-se às implicações estratégicas para a segurança nacional da privatização da antiga Telebrás. Durante o processo, o então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, já falecido, advertiu que:




‘A Embratel vai ter que ser uma privatização cautelosa, porque envolve a banda X, que é de segurança nacional. (…) Você precisa garantir um controle societário tal, que seja independente em relação aos utilizadores da infra-estrutura da Embratel’ (Correio Braziliense, 30/5/1998, pág. 1-24).


Não é necessário chamar a atenção aqui para a gravidade de uma situação em que o próprio Estado não tenha controle (nem acesso) a um sistema de comunicações. Uma Nota Oficial do Estado Maior das Forças Armadas, divulgada à época (19/6/1998), garantia que:




‘No processo de privatização da Telebrás estão incluídos todos os instrumentos que asseguram de forma ampla e eficaz todos os interesses e necessidades ligadas à área de Segurança Nacional, o que inclui, naturalmente, os sistemas operados pelas Forças Armadas e da estrutura básica do governo’.


A privatização da Telebrás foi efetivada e não se tem notícia de que o assunto tenha sido tratado novamente, pelo menos de forma pública. Dez anos depois, um problema de saúde coletiva recoloca – agora, por um novo ângulo – a questão estratégica do controle e do acesso do Estado a um sistema próprio de comunicações.


Complementaridade dos sistemas


No momento em que se discute no Congresso Nacional a MP 398/07, que cria a Empresa Brasil de Comunicação, talvez os senhores deputados e senadores seus opositores devessem levar em conta, acima de interesses partidários transitórios, a necessidade de um sistema de comunicação alternativo ao sistema privado que tenha o compromisso permanente de servir, em primeiro lugar, ao interesse público.


Vale constatar, ainda mais uma vez, a sabedoria dos constituintes de 1987-88 que incluíram na Constituição o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de radiodifusão (Artigo 223). A cobertura jornalística recente dos casos de febre amarela silvestre não deixa dúvida sobre a necessidade estratégica dessa complementaridade.

******

Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)