Aquele que aborda um tema, em tom crítico, sobre algo tão enraizado na tradição da cultura popular, corre sério risco de ser confundido com um irremediável saudosista, próprio do observador que congelou seu olhar em algum ponto maravilhoso do passado, ou, ainda pior, a postura elitista, disposta a desprezar o que emana da força comunitária. Não, definitivamente, se este articulista tem alguma convicção é a de que em nada se faz habitar por saudosismo, melancolia ou depressão. Menos ainda, tocado por uma caduca e criticamente frágil oposição entre a ‘criação erudita’ e a ‘expressão popular’. Até porque, se o propósito for o de ‘entortar cérebros’, poder-se-ia abrir uma discussão entre as variantes, geradoras tanto de ‘criação popular’ quanto de ‘expressão erudita’, sutilezas que os teóricos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, por desconhecerem o que pulsava em outros pontos do mundo, não poderiam imaginar. Ao contrário, sempre fui (e sou) motivado por tudo que acena o dinamismo das transformações, a despeito de algumas necessárias e severas restrições.
O que me causa profundo tédio no ‘carnaval’, há anos, oferecido à população brasileira é exatamente o fato de ser uma festa reduzida a ‘pacotes’ amarrados a ‘formatos’ imutáveis. Talvez, para não passar por inflexível, reconheça sobreviverem manifestações, em cidades interioranas, movidas pela espontaneidade de seus ‘habitantes-foliões’ cujo compromisso é com a expressão da pura alegria, sem contaminação de ‘venda’ de espetáculo. Em grandes centros, porém, até onde conheço, salvam-se, ainda, a festa de Recife, a alegria das cidades de Olinda (também, em Pernambuco) e Ouro Preto, em Minas. Quando, contudo, o olhar se desloca para as cidades do Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, o cenário se torna insuportável, seja para os olhos, seja para os ouvidos. O tédio da mesmice é o ponto de união. Tudo se repete, com a ‘promessa publicitária’ do ‘novo exuberante’.
Fluxos nipônicos em São Gonçalo
Somente a neurose pode suportar desfiles de Escolas de Samba! O registro vale tanto para quem freqüenta o ‘sambódromo’ quanto (e ainda pior) para quem se planta diante de uma tela de TV (plana, plasma, digital, ‘redonda ou triangular’). É difícil suportar-se, horas a fio, a voz de taquara rachada dos tais ‘puxadores’ de samba, rivalizando com aquele agudo de cavaquinho e sobrecarregado por um incessante ‘baticum’, semelhante a um trem desgovernado, em alta velocidade, a exemplo do que várias Escolas, no estilo ‘empolgação’, passaram a adotar. Bem, à neurose que tudo repete, somem-se comentários de locutores e ‘especialistas’. Como ilustração, o narrador da Globo, durante o desfile da ‘Porto da Pedra’ (Escola de São Gonçalo), cujo enredo, a exemplo do que se deu no desfile de São Paulo, foi sobre o centenário da migração japonesa, fez a seguinte declaração: ‘Os primeiros emigrantes japoneses chegaram ao Brasil em navios’. Sim, como teriam alcançado os trópicos? Por trem? Ônibus? Avião? Em cavalos? Não dá…
Por outro lado, até se compreende que alguma agremiação de São Paulo prestasse homenagem aos primeiros emigrantes japoneses. O fato faz parte da história da cidade. Contudo, é crível que a comunidade de São Gonçalo, município do Estado do Rio de Janeiro, fosse escolher igual tema? Terá sido o município de São Gonçalo contemplado com fluxos nipônicos, nos idos de 1908? É claro que não.
Propostas didáticas, não!
Como é hábito – faz parte da ‘polêmica’ – houve o fato do veto ao carro alegórico do ‘holocausto’. A respeito dessa ocorrência, bastam os três artigos publicados na edição anterior do OI (‘Holocausto, dá samba?‘, de Alberto Dines; ‘Holocausto, A vida é bela e a Viradouro‘, de Mário Augusto Jakobskind, e ‘Babau, teoria da recepção‘, de Maria Luiza Franco Busse). Se alguma contribuição crítica ainda possa prestar à questão, seria no sentido de acusar certo desconforto. Alguém precisa, em ritmo de samba e euforia, ser lembrado a respeito de um dos capítulos mais abomináveis da civilização? Agregar hipocrisia a projeto de edificação ética e educacional é forçar demais. Não se trata de ‘censura’. É apenas uma questão de ‘bom senso’ que o próprio artista tem (ou deveria ter).
O leitor recorda-se do amplo painel pintado por Picasso (Guernica)? Sim, certamente. Pois é, o artista (quando efetivamente o é) não expõe; apenas sugere. O painel citado, até hoje, é o emblema estético do horror que a parceria franco-hitlerista gerou, na Espanha, durante a guerra civil (1936-1939). Por outro lado, o tal carro alegórico não tem a ver com o filme A vida é bela. No filme de Benini, independentemente do fato de, como estética fílmica, me haver agradado ou não, o que estava posto era o olhar de um menino que, pela imaginação e fantasia, pôde sobreviver ao horror. No filme, ainda se salva certa atmosfera lírica que, na Sapucaí, não tem como resistir.
A questão, pois, é simples: à sensibilidade do artista, cabe a percepção do que escolhe e de como codifica. Em matéria de ‘desfile de Escola de Samba’, por favor, vamos admitir que o foco é produzir ‘empolgação’, ‘excitação’, ‘êxtase visual’, ‘devaneio egóico’, ‘delírio da imaginação’, ‘viagem onírica’, ‘exaltação à carne’ e sei lá mais o quê. Apenas, carnavalescos, não me venham com propostas ‘didáticas’. Vocês, bem mais do que eu, sabem que, terminado o desfile da Escola, o ‘arquibaldo’, se entendeu, já esqueceu. Se não compreendeu, é nada mesmo. Nele, apenas fica o impacto de um devaneio, com a duração de 80 minutos. E só!
A relação custo-benefício
Na contrapartida, dado curioso é que nenhum ‘atento carnavalesco’ do Rio de Janeiro, ou de São Paulo, tenha lembrado do centenário da morte de Machado de Assis. Igualmente, nenhum recordou o quarto centenário da chegada, ao Brasil, de Pe. Antonio Vieira. Paciência! Quem ‘bancaria’ essas homenagens literárias? Bem, e o centenário de nascimento de Cartola, totalmente ignorado pela Mangueira? Ao menos, a Viradouro dedicou breve registro ao fato. Enfim, é tudo deplorável. Respeite-se, porém, quem gosta.
A liberdade supõe ambientes e gostos plurais. Algo, porém, me causa inquietação: o que leva um cidadão a pagar alto preço por uma fantasia, sabendo que ele, por 700m, atravessará a Marquês de Sapucaí, vestido de aranha e, em vários trechos, andando de quatro? Trata-se da ‘ala das aranhas’, da Viradouro. Cantar o samba agachado? Não dá. Expressar a euforia de quatro? Bem, é melhor não comentar. Então, como explicar o fato? Se eu fosse jornalista – claro, não pertencendo às Organizações Globo –, teria enorme curiosidade em entrevistar um componente dessa ala. O leitor também não teria igual interesse? É, como se vê, a mesma liberdade também assegura o direito para manifestações daqueles que não suportam o que cheira a delírios de carnavalescos, somados a business, fórmula com a qual narradores da TV Globo insistem em classificar como ‘o maior espetáculo da Terra’.
Em tempo, saúdo todos aqueles cidadãos que, nos mais longínquos redutos, vivem, apenas impulsionados pela alegria espontânea, os dias dedicados à expressão plena de suas vontades, emoções e devaneios. Estes, ainda, estão a salvo das injunções agressivas dos interesses que fazem de uma ‘festa popular’ um evento no qual interesses inconfessáveis, há décadas, fazem do ‘carnaval’ imensa ‘máquina de lavar coisa suja’, em nome de, nos ‘sambódromos’, disseminados pelas capitais, entregarem à população ‘imagens de encantamento’. O problema será quando os componentes que, até agora, a tudo se submetem, perceberem a relação custo / benefício. Nessa hora, vocês precisarão de amplo contingente de ‘população-escrava’, recrutada, quem sabe, à força!
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)