Vamos imaginar que o presidente Lula, no Brasil, diante de uma tremenda pressão inflacionária e de inevitável recessão, reunisse os ministros e baixasse o sarrafo: a taxa selic seria reduzida dos 11,25% atuais para 5%.
Tudo em nome da sustentação da dinâmica do consumo, para realizar a produção, já que, segundo Marx, no capitalismo, produção é consumo, consumo é produção, interagem dialeticamente e não mecanicamente, como é entendido pela grande mídia nacional. O pressuposto básico do capitalismo, segundo Ricardo, é que as mercadorias sejam destruídas no consumo. Fora disso, é a crise de superacumulação.
O que diriam os editoriais em geral, e a Miriam Leitão, a dama do cenário econômico midiático? Alguém duvidaria que poderiam até chamar a grande esquadra norte-americana para cercar o litoral e despachar o sapo barbudo?
Heresia total, certamente, diriam todos. E o que fez o presidente W. Bush, merecendo aplausos generalizados dos editorialistas e dos comentaristas que se equilibram entre aqueles? Palmas. A ortodoxia, tão aplaudida até há pouco, foi ultrapassada pelos fatos.
De solução passou a problema
Por que, então, a grande mídia não acompanha esses fatos, abrindo-se à criatividade relativamente aos seus desdobramentos, dinamicamente, e não resistindo a posições ultra-conservadoras, cercadas por um círculo de giz?
Não há, por enquanto, qualquer avaliação racional da crise financeira em curso por parte das inteligências que pontificam nos editoriais da grande mídia. Ficam naquilo que pediu, em Davos, Condoleezza Rice, ou seja, que acreditem, piamente, que a grande economia capitalista sempre sairá de suas dificuldades. Antônio Maria diria que o mundo – e não apenas o Brasil – teria adotado a esperança como profissão.
As desconfianças generalizadas desmentem Miriam Leitão, que destaca, chateada, sobranceira, que os candidatos norte-americanos à sucessão de W. Bush, em matéria de economia, somente olham para as soluções do passado.
Como não olhar para o passado, se o presente deixou de ser solução para se transformar em problema, e o futuro desperta medo, pois ninguém sabe o que vem por aí, nem sequer ousa prescrutar?
A gastança de Tio Sam
Talvez, muito razoavelmente, os banqueiros centrais, em nome dos seus governos, sugiram – com amplo apoio midiático, pois os editorialistas e comentaristas da periferia aplaudidos por Washington estão aí mesmo para isso – que o FMI dê um crédito aos Estados Unidos, submetendo-os a uma terapia adequada – não tão rígida, naturalmente, quanto as que mandou ver contra os países pobres. Não foi feito ele para regular as economias fragilizadas da periferia capitalista, conforme combinado em Bretton Woods, em 1944?
Na semana passada, sofregamente, O Estado de S.Paulo adiantou-se em defesa da nova posição do FMI, de propor expansão dos gastos públicos, por parte dos países ricos, enquanto continuaria, sob pressão, os pobres gastadores. Posição tipicamente colonialista, previamente estabelecida, como se os editorialistas do grande jornal fossem os próprios ditadores da nova ordem monetária internacional, tomada de cima para baixo.
Teriam consultado os russos, como perguntaria Garrincha? Afinal, não falariam mais alto as divergências entre os bancos centrais de que não há consenso sobre quem vai pagar o prejuízo pela inflação norte-americana tocada a juro baixo como arma para combater a onda recessiva em marcha?
Ou os ricos sovinas estariam se negando a salvar a si próprios do incêndio monetário, sem antes chamar outros parceiros, para engordar o coro dos prejudicados pela gastança de Tio Sam em nome da sustentação do sistema por intermédio de medidas nas quais não acreditam?
Quem bota a mão no bolso?
A novidade, agora, seria que se antes o FMI era entendido como salvador dos pobres, passaria também a ser dos ricos, ampliando para uma ação mais geral de regulador da economia global, sob aval, quem sabe, de um conjunto de moedas que emergirão para dar sustentação ao dólar?
Inconscientemente, o Estadão estaria, desde já, prestando um valoroso serviço de submissão aos interesses externos, ao defender ortodoxia para dentro e heterodoxia para fora, antes mesmo do fenômeno ganhar cores mais firmes?
Os presidentes dos bancos centrais, ao que tudo indica, estariam se rendendo ao pensamento de Keynes, quando, em Bretton Wodds, propôs moeda escritural, bankor, para regular os desajustes decorrentes da deterioração dos termos de trocas, impostos pela política cambial produzida, necessariamente, pelos ricos?
Afinal, como ninguém acredita que dará certo atiçar a inflação via juro baixo para conter recessão, como fazem os Estados Unidos, os banqueiros, naturalmente, querem, desde já, fazer o socialismo deles, isto é, distribuir os prejuízos para uma platéia mais ampla. Nesse socialismo, a grande mídia embarcaria de olho fechado.
O Banco Central europeu, experiente, historicamente, com base nos desastres monetários ocorridos no século 20 – cujas conseqüências sempre foram violentas crises ideológicas –, estão sendo cautelosos, enquanto cuidam de se desgarrar do companheiro incômodo, jogando Tio Sam às feras. A pregação do Estadão está, entre os banqueiros, relativamente ao FMI, sendo tratada com realismo, isto é, não querem meter a mão no bolso. Quem vai botar? E se não botarem, como reagirá Tio Sam?
Corrida armamentista
Não seria, justamente, esse um dos motivos capazes de levar W. Bush à radicalização e incitar uma guerra para fazer renascer disputas ideológicas que alinhassem aliados e adversários, de lado a lado, tensionando a situação internacional, como fuga-disfarce do estado industrial militar relativamente à desmoralização que é imposta ao império pela desconfiança sobre sua própria moeda contra a qual resolve agir, fragilizando-a ainda mais? Em vez de jogar na defesa, passaria ao ataque.
Tio Sam toca fogo às próprias vestes e Miriam Leitão e os editorialistas da grande mídia correm para soprar. Os bancos centrais, mais humildes, preferem buscar mais aliados a fim de encherem os baldes d’água salvadores.
Que as tensões nucleares – como produto geral das tensões guerreiras em ação – estão se formando cada vez mais intensamente provam-no o discurso do presidente da Rússia, Vladimir Putin, no parlamento russo, na sexta, 09/02. Destacou que seu país voltou a investir fortemente em armamentos nucleares porque a corrida armamentista foi intensificada pelos Estados Unidos e a Otan, para militarizar o Leste, na terra e no espaço, neste instalando o escudo anti-míssil.
A corrida armamentista se intensifica, sendo a guerra uma forma transformada de fazer política em nome do aquecimento da demanda global, como ocorreu sempre no século 20?
Gorbachev acreditou nas palavras do ex-presidente Reagan, de desarmamentismo, e decidiu desarmar a extinta União Soviética, lamenta hoje Putin. Como o estado industrial militar norte-americano requer a guerra como oxigênio da economia de guerra, bancada pela moeda estatal inconversível há sessenta anos, à moda keynesiana, Putin destacou que apenas um lado cumpriu o acordo, a Rússia, enquanto o outro lado, os EUA, continuaram se armando em companhia da Europa ocidental.
Divergência entre Bancos Centrais
FHC, durante o penúltimo encontro dos tucanos, em Brasília, disse que um dos males do excesso de informação impulsionado pela tecnologia on line é a escassez de contextualização. As mentes, segundo ele, estão, nesse ambiente de inundação midiática descontextualizada, amplamente, alienadas. Não ligam um fato com o outro e, naturalmente, são ultrapassadas pelos próprios fatos, enquanto viajam na maionese.
Em meio ao rearmamentismo, eventual desestruturação da moeda norte-americana, talvez, impulsionada pelo próprio governo, que fragiliza o dólar, apostando na inflação, representaria motivo para nova guerra. Ou não? Conspiração? Mas os conspiradores não conspiram o tempo todo, assim como caruncho caruncha ininterruptamente?
Seria – como diria o jornalista canadense Naomi Klein, no site La Haine – tradução do Cepat – prática do ‘capitalismo de desastre’, para despistar e estimular especulações que gerariam lucros e mais lucros em face do aumento das reversões de expectativas?
O fato é que a divergência entre o Banco Central europeu e o Banco Central norte-americano sinaliza um novo tempo que foi, certamente, discutido, em Tóquio, no domingo de carnaval, para ver o que se faz com a contradição elementar relativamente à saída norte-americana para a crise que jogou o modelo neoliberal na lata de lixo e a mídia na confusão total, já que a solução por ela pregada virou problema.
Neo-solução, meia trava
Socialismo ou capitalismo? Nacionalismo ou neoliberalismo? Ortodoxia ou heterodoxia? Keynesianismo ou monetarismo? Ou a soma das duas partes, interativas, reagentes, dialéticas, dividida por dois, como sugere o consultor econômico e político do Senado, Almir Hockembach, um dos maiores especialistas em dívida pública do país?
A gestação de um novo modelo monetário está em curso, mas os segredos em torno do assunto são imensos – e a grande mídia , sem partir para reportagens abrangentes, deixa de cumprir papel histórico.
Gordon Brown, primeiro-ministro inglês, deu a dica do que pode vir por aí em matéria de novidade, talvez não satisfatória para os países mais pobres. Sua sugestão, como homem do capitalismo cêntrico, é a de que o FMI pode ser uma neo-solução, uma meia trava, para que os ricos não paguem, sozinhos, a conta do desastre monetário desencadeado pela falência do setor imobiliário norte-americano, intensificada pelo engessamento do crédito bancário, que exige ação governamental de Washington, cuja credibilidade, para tal tarefa, se esgotou, em termos unilaterais.
Reportagens, mais reportagens
Brown, sabedoria inglesa bicentenária em ação, pediu, na Índia, recentemente, ampliação do fórum do FMI, do Banco Mundial e da própria ONU para os capitalistas emergentes Brasil, Índia, China, Rússia e México. O presidente Lula mandou recado que somente sentará entre os grandes se, também, for tratado como grande. É o novo tempo do multilateralismo em ação.
Quem vai pagar o prejuízo de se ter que elevar a oferta da quantidade de moeda em circulação – a única variável econômica verdadeiramente independente sob o capitalismo, segundo Keynes – para salvar o capitalismo norte-americano da deflação, se Tio Sam, como antigamente, não pode mais, sozinho, lançar mão dessa estratégia neokeynesiana?
A proposta de Brown, sendo ele o que é, seria uma tentativa de socializar o prejuízo ou um senso sincero do reconhecimento dos ricos de que alguns remediados adquiriram o direito de sentar à mesa para usufruir de um banquete cuja comida pode estar estragada? Olha a diarréia!
Luz, mais luz, disse Goethe, em seus últimos momentos. A grande mídia brasileira, enquanto corre para soprar suas próprias ilusões, vai se perdendo completamente na discussão da atual crise monetária porque se recusa a abrir para o novo, cujo alcance seria possível por meio de reportagens. Reportagens, mais reportagens.
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Jornalista, Brasília, DF