Um dos artigos mais importantes publicados pela imprensa nos últimos tempos saiu na edição da Folha de S. Paulo (terça-feira, 8/06) reproduzindo o que originalmente foi escrito para o jornal inglês Independent por James Lovelock, cientista autônomo britânico e criador da Hipótese Gaia.
O texto de Lovelock, ao que tudo indica, dividiu opiniões como seria de se esperar levando em conta a dimensão do tema que tratou: o aquecimento da atmosfera da Terra produzida pelo efeito-estufa de origem antrópica e a necessidade, urgente, de se repensar o uso da energia nuclear.
Uma passada de olhos pela internet revela uma montanha de asneiras levantada por ‘ambientalistas’ que, como papagaios de piratas do passado, repetem frases feitas, restritas às suas monótonas sonoridades.
Mas gente que sabe do que fala também se posicionou em relação às considerações de Lovelock. É o caso de Washington Novaes, intelectual comprometido com o ambientalismo e colunista do Estado de S. Paulo.
Vou me permitir a um diálogo com Novaes, a quem respeito e estimo, não para dizer que não tem razão nas considerações que fez em artigo publicado na sexta-feira (O Estado de S.Paulo, 11/6, pág. A2). Mas para algumas reflexões que, eventualmente, possam ajudar na compreensão da questão entre nós.
Essa é uma obrigação tanto formal quanto ética de quem podemos chamar de ‘trabalhadores-intelectuais’: ajudar a fornecer inteligibilidade possível a temas que devam ser compreendidos pelo conjunto da sociedade com forma de mudança de posição e avanço em relação a perspectivas relacionadas ao bem-estar social. Neste caso do aquecimento global/alternativa nuclear, sem nenhum exagero, comprometido com a sobrevivência da humanidade, embora à primeira vista esta consideração possa parecer obra de ficção.
Núcleo da questão
Lovelock partiu das constatações do conselheiro-chefe de ciência do governo britânico, sir David King, para ratificar a idéia de que ‘o aquecimento global é uma ameaça mais séria que o terrorismo’. Em seguida, inicia a construção do argumento que defende na segunda metade de seu escrito. Sustenta que ‘a oposição à energia nuclear está baseada em medo irracional, alimentado pela ficção de estilo hollywoodiano, pelo lobby verde e pela mídia’. Esses receios, adiciona, ‘são injustificados e a energia nuclear tem provado, desde seu início em 1952, ser a mais segura das fontes de energia’.
Lovelock, certamente, poderia ter acrescentado a discussão envolvendo transgenia, perpassado pelo mesmo medo irracional e, certamente, com um pano de fundo religioso, que boa parte de seus críticos não quer admitir.
Toco na transgenia porque, juntamente com a energia nuclear e outros assuntos polêmicos envolvendo ciência/sociedade, são discussões inevitáveis da época em que vivemos.
Isso significa dizer que não podemos, sob risco de omissão, com todas a conseqüências da negligência, nos furtarmos a uma análise mais aprofundada com o compromisso de oferecer inteligibilidade possível.
Para não nos desviarmos do tema nuclear, tratado por Lovelock, convém dizer, em poucas palavras, que esses, de fato, são temas que abrigam complexidade. Exigem reflexões responsáveis e devem conduzir a uma tomada efetiva de posição considerando que, sempre que ganhamos alguma coisa, perdemos outra. E isso é parte das regras da vida.
Vivemos mais tempo, formamos uma população maior e com isso pressionamos o ambiente – eis um exemplo do jogo ganhar/perder que a vida nos impõe.
Washington Novaes contrapõe às recomendações de James Lovelock as cenas mostradas recentemente no VI Festival de Cinema e Vídeo Ambiental em Goiás, especialmente o documentário Chernobyl Heart.
Com uma sensibilidade nada freqüente na mídia, Novaes fala de ‘cérebros de crianças que não cabem nas caixas cranianas e por isso mesmo se alojam a algo parecido a uma bola de futebol, presa à parte posterior da cabeça’, resultado do acidente de Chernobyl, a usina nuclear que, há 18 anos, teve seu núcleo derretido por um acidente, na então União Soviética.
Novaes poderia, em benefício das dúvidas que levanta quanto à ampliação do uso da energia nuclear defendido por Lovelock, acrescentar o acidente do césio 137, liberado pela violação de um equipamento de raios-X abandonado num ferro velho em Goiânia, em setembro de 1987.
A questão, no entanto, e isto altera radicalmente a situação, é que o acidente de Chernobyl foi provocado pela absoluta negligência na forma de se operar uma energia nuclear.
Da mesma forma que o acidente com césio 137 foi pura negligência.
O paralelo que se pode fazer neste caso é que um acidente com avião, por mais dramático, nunca levou alguém cogitar a possibilidade de que os aviões deixem de voar.
De maneira parecida, o acidente com a câmara de raios-X não significou recomendações para abandonado de radiografias. E esse parece ser o núcleo da questão: responsabilidade efetiva por parte dos envolvidos.
Padrão predatório
Evidentemente que é difícil evocar responsabilidade de envolvidos quando boa parte da população do planeta não tem comida suficiente para se nutrir, nem água com qualidade mínima para matar a sede, ou um abrigo digno de humanos para se proteger das intempéries.
É difícil ainda falar disso frente à recusa dos governos americanos, republicanos e democratas, em relação às necessidade de se limitar as emissões de dióxido de carbono, entre os gases que produzem o efeito-estufa.
Mas cientistas do porte de Lovelock não têm outra escolha. Como Charles Darwin também não teve quando publicou Origem das Espécies, em 1859, explodindo com o criacionismo que até então explicava a criação do mundo.
Novaes argumenta, aparentemente em desacordo com Lovelock, que no Brasil, neste momento, há sobra de energia, o que não justificaria, por exemplo, a construção da usina nuclear de Angra-3.
O problema é que esta situação brasileira é meramente conjuntural. E é desejável que seja apenas conjuntural.
A economia brasileira está desaquecida e milhões de pessoas não desfrutam, como teriam direito numa sociedade verdadeiramente democrática, de bem-estar social que implique um consumo mínimo de energia.
Energia e desenvolvimento são relações indissociáveis em qualquer abordagem mais consistente.
Um ensaio nas fronteiras da ciência, envolvendo exobiologia, pressupõe a existência de três tipos de civilização possíveis, distribuídas em três classes de consumo de energia.
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O nível I, em que estamos inseridos, utiliza combustíveis fósseis e lenha.**
O nível II consome a energia de seu Sol.**
O nível III sugaria a energia de uma galáxia inteira.Assim, o crescimento no consumo de energia, em termos nacionais e globais, é absolutamente desejável. O que não significa, evidentemente, desperdício.
E quanto às fontes?
Novaes fala, entre outras, em energia eólica, mais barata que a nuclear. O problema, neste caso, é que a energia eólica não é obtida aleatoriamente. Investigações no Brasil demonstram que ela não é tão promissora quanto seria desejável.
Em relação à energia solar, promissora no Brasil, há a restrição de uma taxa de conversão ainda insatisfatória. O que não significa, claro, que não possa nem deva ser estimulada. Ao contrário, não podemos nos acomodar a qualquer alternativa pontual.
Alguém pode dizer que o Brasil tem o recurso das hidrelétricas de que outros países não dispõem.
A questão é que também as hidrelétricas cobram seus tributos e se essa questão não chega a ser relevante no Brasil é porque estamos, historicamente, habituados a um padrão predatório no uso dos recursos naturais. O que nos remete de volta às preocupações ambientais.
E como ficam os países, como o Japão, que não dispõem de rios caudalosos, mas precisam de energia para movimentar sua produção e abastecer sua população?
Obrigatoriamente esses países devem recorrer à energia nuclear.
A história toda
O aquecimento global, além da destruição de fauna e flora, pela extinção rápida, ameaça com cenários, no mínimo, muito preocupantes. Um efeito disso pode estar ocorrendo no Atlântico Sul, afetando as regiões costeiras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, sob a forma de furacões destruidores.
A teoria meteorológica diz que furacões nessa área são desestimulados pela baixa temperatura das águas do Atlântico Sul pelo Mar de Weddel, na porção leste da Península Antártica. Mas, ao que tudo indica, o aquecimento dessas águas pode estar gerando as formações destruidoras dos últimos tempos.
Apenas a dissolução da calota flutuante de gelo do Ártico, incomparavelmente mais modesta que a calota sobre terra firme da Antártida, faria o mar subir sete metros, argumenta Lovelock. Isso seria o fim para um grande número de ilhas e cidades costeiras: Londres, Nova York, Veneza, Tóquio e Rio de Janeiro entre elas.
Apostar em fontes alternativas de energia limpa seria o caminho promissor se tivéssemos tempo para isso. E o que Lovelock aponta é que esse tempo não existe mais.
Se pudéssemos restringir, agora mesmo, toda a produção de gases do efeito-estufa, o retrocesso em termos de elevação global de temperatura demoraria mil anos para ocorrer.
O efeito-estufa foi antecipado, entre outros, por John Tyndall, na Inglaterra, em 1863 – ou seja, há 141 anos.
Em 1896 o físico-quimico e prêmio Nobel sueco Svante Arrhenius também chamou a atenção para seus efeitos, mas a civilização tecnológica voraz consumidora de energia não levou essas considerações em conta. O pragmatismo de mercado, entre outros, se sobrepôs a uma prospecção de futuro.
Lovelock, é preciso dizer, não é nenhum troglodita tecnológico. Criador da Hipótese Gaia, idéia de que a Terra é um imenso organismo vivo e nós, humanos, somos uma parte dela, é um cientista renomado – daí o impacto do artigo que escreveu.
Nos anos 1970, Lovelock foi consultor da agência espacial dos Estados Unidos, a Nasa, para o lançamento do projeto Viking, de enviar duas sondas a Marte.
Antes que os lançamentos ocorressem, por análise do perfil atmosférico marciano, Lovelock antecipou que a vida, se existir, é bastante embrionária nesse planeta. Vida mais abundante implicaria maior quantidade de oxigênio atmosférico, defendeu ele, dando suporte a um recurso de análise de planetas extra-solares, outra das fronteiras da ciência.
Retirado em uma pequena fazenda no interior da Inglaterra, Lovelock escapou de certo convencionalismo acadêmico a que está submetida a comunidade científica.
O alerta que faz neste artigo é para ser levado a sério. Mesmo com eventuais considerações em contrário, como fazem comentadores com a responsabilidade, talento e a inteligência de Washington Novaes.
Aqui, poderíamos evocar a presença de Loren Eisley e a consideração que ele faz de que ‘nenhum homem, sozinho, é capaz de contar toda a história’.