Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bilac, um jornalista bom de briga

I

O poeta Olavo Bilac (1865-1918), a exemplo de outros parnasianos, foi condenado ao ostracismo depois que as idéias que redundaram na Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, insufladas pelos ventos que vinham da Europa, afirmaram-se na sociedade brasileira. Seu nome passou mesmo por sinônimo de passadismo, formalismo, oficialismo e alienação. E seus versos tornaram-se alvo de chacotas, tal como a produção de outros poetas que, ao seu tempo, o tiveram como paradigma. De fato, os versos bilaqueanos, hoje, são velharias que só atraem estudiosos e um ou outro leitor interessado em conhecer a história da Literatura Brasileira.

Mas o que, geralmente, não se sabe é que, além de autor de versos grandiloqüentes e enxundiosos, o ‘príncipe dos poetas brasileiros’ foi cronista de excepcionais qualidades. Basta ver que, a partir de março de 1897, foi quem teve a responsabilidade de substituir o genial Machado de Assis (1839-1908) nas páginas da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. E o fez com igual brilho, a tal ponto que muitas de suas crônicas parecem mesmo saídas da pena do bruxo do Cosme Velho.

Quem tiver dúvidas já pode compará-las sem ter de remexer papéis velhos nos arquivos, pois o professor Antonio Dimas, da Universidade de São Paulo, acaba de lançar Bilac, o jornalista no qual reuniu em dois extensos volumes a maior parte das crônicas bilaqueanas saídas em jornais e revistas do final do século 19 e início do 20. Num terceiro volume, o de menor extensão, com prefácio do professor Alfredo Bosi, o organizador reuniu dez excepcionais ensaios em que mostra que o Bilac cronista pouco tinha do poeta indiferente às necessidades cotidianas, imagem que ficou por conta da revisão histórica comandada pelos modernistas.

Ainda que seus versos possam dar a falsa impressão de que viveria romanticamente nas nuvens, Bilac sempre usou a tribuna de que dispôs na imprensa para expor suas idéias (às vezes, equivocadas) e combater o que entendia que poderia representar entraves ao desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, e do Brasil.

II

Lembra Dimas que seu objetivo não foi o de atribuir a Bilac múltiplas personalidades profissionais ou versatilidade inesgotável, aumentando-lhe a importância, mas mostrar outras facetas hoje praticamente desconhecidas de quem a história estigmatizara como poeta oficial tão-somente.

De fato, depois de começar a carreira como poeta parnasiano, Bilac, como homem público, terminaria seus dias como baluarte de causas cívicas de interesse nacional, como a defesa do serviço militar obrigatório e a da reurbanização do Rio de Janeiro e da renovação de hábitos sociais e comportamentos políticos.

Chegou ao ponto, como empreendedor, de criar em Paris uma agência para a divulgação de produtos brasileiros na Europa. Nessa tarefa, aliás, teve a colaboração do médico e também poeta parnasiano Martins Fontes (1884-1937). Depois, magoado com acusações de que se teria valido de recursos públicos para essa tarefa, fechou as portas da agência e retornou ao Rio de Janeiro.

Solidário com seus pares, Bilac nunca deixou de defender o escritor como categoria profissional. Se hoje ainda é comum a existência de pequenos editores que escamoteiam números e adiam o quanto podem a prestação de contas, imaginem o que seria há mais de um século.

A essa época, era famoso no Rio de Janeiro o editor Baptiste Louis Garnier (1823-1893), ou apenas B.L. Garnier, não só pela qualidade dos autores que publicava, mas também porque teria explorado descaradamente escritores como Gonçalves Dias (1823-1864), José de Alencar (1829-1877), Casimiro de Abreu (1839-1860), Álvares de Azevedo (1831-1852) e Aluísio Azevedo (1857-1913), entre outros, a tal ponto que era mais conhecido como o Bom Ladrão Garnier.

Bilac não deixaria de assinalar que a outra editora famosa da época, a Laemmert, não ficava atrás na arte de esbulhar escritores. Estabelecidos no Rio de Janeiro, esses editores europeus, supostamente, passavam-se por beneméritos do ainda incipiente mercado editorial brasileiro.

Numa crônica publicada na revista A Bruxa, em janeiro de 1897, exumada por Dimas, Bilac lembrava que, se outros profissionais – como o sapateiro, o advogado, o médico e o alfaiate – dispunham de leis que lhes asseguravam a plena posse dos seus direitos, não havia sentido em que o escritor continuasse à mercê da vontade ilimitada do capitalista que adquirira, geralmente, por uma ninharia, o direito de publicar em primeira mão a sua produção intelectual, fazendo-o depois indefinidamente à revelia do autor.

Bilac sabia cobrar por seu trabalho para a imprensa à base de colaborações, tornando aquilo uma atividade profissional por quase duas décadas, que se não o tornaria rico, pelo menos servia para cobrir despesas mais prementes, a exemplo do que fizera décadas antes Camilo Castelo Branco (1825-1890) no Porto.

III

Observa o professor Dimas que, das muitas crônicas que Bilac deixou sobre o teatro, a grande maioria incide sobre aspectos práticos, e não estéticos, lembrando que o cronista ia quase todos os anos a Paris, de onde trazia como referência o que via nos teatros franceses, cujas companhias, vez por outra, aportavam ao Rio de Janeiro.

Homem prático, porém, Bilac sabia que, antes de exibir um teatro de primeiro mundo, o Brasil precisava de obras de infra-estrutura que o colocasse nos trilhos do desenvolvimento. E não exigia do incipiente teatro carioca o que vira no teatro francês. Antes, fazia sugestões para que melhorasse de nível. ‘Dir-me-ão os regeneradores que o povo da América do Norte, tendo a nossa idade, já tem teatro e autores. Mas o povo da América do Norte, por circunstâncias que não vêm agora ao caso, desenvolveu-se prodigiosamente e fabulosamente e, antes de ter teatro, teve indústria, teve comércio, teve administração, teve estradas de ferro, teve navegação, teve autonomia’, escreveu em crônica publicada na revista A Bruxa, em 21/2/1896. Nesse texto, lembrava que ninguém pode querer que ‘o nosso pobre povo tenha teatro, antes de ter as outras cousas que está muito longe de ter e que, valha a verdade, são infinitamente mais necessárias que teatro’.

E não deixava de ter razão porque o centro do Rio de Janeiro desse tempo, antes da abertura da Avenida Central (hoje Rio Branco) e da demolição do Morro do Castelo, era uma cidade suja, cheia de trapiches, estaleiros, depósitos, pardieiros e tavernas suspeitas em que formigava ‘uma população macilenta e triste’, como observou o próprio cronista num texto de 23/6/1901 publicado na Gazeta de Notícias.

IV

Diz Dimas que, a par de sua poesia ao gosto da época e de sua oratória impecável, a extraordinária popularidade de Bilac talvez se explique também pela sua capacidade de embaralhar, com delicadeza, detalhes de sua vida pessoal com sua atividade pública e externa de jornalista, estabelecendo uma intimidade implícita com o leitor. Como prova, o professor reproduz trecho de uma crônica publicada na Gazeta de Notícias, de 16/2/1908:

Já lá se vão vinte anos… Nesse tempo, Zola era o autor da moda. Todos nós, rapazolas que começávamos a escrever, poetas incipientes, que já nos julgávamos gênios e prosadores bisonhos, que já nos considerávamos glórias nacionais — todos nós tínhamos a mania do ‘naturalismo’, do ‘documento humano’, da ‘tranche de vie‘. E, alta noite, enquanto os ‘burgueses ignóbeis’ dormiam, saíamos a correr estalagens, baiúcas, alforjas. Às vezes, chegávamos ao extremo do disfarce espetaculoso: saíamos de casa, sem gravata, vestindo blusas de zuarte desbotado e fumando cachimbos que nos davam náuseas. Quase todas essas excursões, que eram verdadeiramente de pândega, mas que nós solenemente afirmávamos serem de severa documentação psicológica, iam acabar no Mercado, à hora em que os botes e as catraias chegavam, trazendo os peixes, as frutas, os legumes… Apanhávamos ali, muitas vezes, furiosas indigestões de documentos humanos e de ostras cruas! Mas a ilusão era magnífica: estávamos realizando e estudando praticamente as cenas do Ventre de Paris

V

Nem sempre Bilac soube se desprender de seus preconceitos de classe, olhando para o resto do Brasil com a soberba de quem vivia no aristocrático bairro de Botafogo com os olhos voltados para o Atlântico e para a Europa. Talvez por isso não teve a clarividência para perceber no massacre perpetrado pelo Exército brasileiro contra famélicos camponeses do arraial de Canudos ‘o conflito entre a cultura oficial dominante e o messianismo sertanejo encarnado pela figura de Antônio Conselheiro’, como observa o professor Alfredo Bosi no prefácio. E fez coro com os jornalistas mal informados da época, que viam nos jagunços de Canudos uma ameaça monarquista (?) à jovem República nascida de uma quartelada.

Bilac, aliás, foi sempre um poeta oficial, privando do convívio com presidentes da República, ministros e magnatas. Em troca, foi indicado várias vezes para representar oficialmente o Brasil em visitas a outras nações. No auge de seu prestígio, foi recebido em Lisboa, em 1916, pelo presidente Bernardino Machado (1851-1944) e homenageado pela Academia das Ciências de Lisboa, tendo pronunciado conferência no Teatro da República e dado longas entrevistas aos jornais A Capital, O Século e A Opinião.

A essa época, era um nome conhecido em todo o mundo lusófono que já nada lembrava o jovem de 25 anos que, em 1890, atravessara pela primeira vez o Atlântico só para, apresentado por Eduardo Prado (1860-1901) e Domício da Gama (1862-1925), apertar a mão do grande Eça de Queirós (1845-1900) em sua ‘pequena casa do bairro dos Campos Elíseos’, em Paris.

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Doutor em Literatura Portuguesa e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)