O agir comunicativo de um jornalista se dá dentro de um espaço estruturado e tenso que Pierre Bourdieu (1930-2002) analisou a partir da noção de campo. No caso brasileiro, sempre é bom lembrar que, mantendo suas especificidades e lógica interna, o jornalismo reproduz as virtudes e os vícios da formação social em que está inserido. E, nesse ponto, os vícios ganham com folga.
A docilidade da grande imprensa no trato com forças políticas conservadoras, em especial com o consórcio neoliberal que esteve à frente do Estado por oito anos, acabou por configurar a internalização de disposições que lhe moldaram tanto a fisionomia quanto a prática. Em outras palavras: o uso do cachimbo deixou a pauta torta, como se pode observar no enfoque do noticiário, bem como na relação com autoridades políticas.
Assim, dependendo da matriz político-ideológica do interlocutor, o tratamento vai da rispidez, quando não agressividade, à reverência que, no limite, vira servilismo. No primeiro caso, se estabelece a estrutura discursiva direcionada para o campo democrático-popular, com destaque para o presidente Lula. No segundo, a mediação simbólica elaborada para representar (e legitimar) os atores do bloco liberal-conservador. A relevância disso é que estamos tratando de práxis social, de tessitura de hegemonia. E o papel da mídia é de uma centralidade inequívoca.
A entrevista na TV
Nesse sentido, qualquer registro que assinale uma breve ruptura deve não só merecer destaque como elogios. Quem assistiu ao programa Entrevista Record News – Brasil atualidade‘ de quinta-feira (14/2) teve oportunidade de aprender como se produz um jornalismo competente: aquele que combina habilidade técnica com princípios ou valores éticos.
Entrevistado pela jornalista Adriana Araújo, o secretário da Casa Civil do governo estado de São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira Filho, certamente tomou um susto. Diante de uma profissional que estava em busca de informação de boa qualidade, não encontrou as mesuras habituais que são dispensadas ao tucanato. Muito menos viu os espaços habituais para tergiversação. Adriana mostrou que é possível ser assertiva, mantendo a polidez, que a condução de uma entrevista não segue a lógica de um debate. Não cabe ao profissional de imprensa assumir o papel de inquisidor, quando seu objetivo é obter material de interesse público.
Como já observou o jornalista e professor Nilson Lage…
‘…mais do que em qualquer outro veículo, a entrevista televisiva devassa a intimidade do entrevistado, a partir de dados como sua roupa, seus gestos, seu olhar, a expressão facial e o ambiente. A produção, nos talk shows televisivos, é geralmente mais cuidada e o entrevistador, violando um dos preceitos básicos da entrevista jornalística, pode tornar-se a estrela do programa, com todo prejuízo que isso traz para a informação – não necessariamente para o espetáculo’.
Mais transparência
E, sem temer constrangimentos, Adriana mostrou eficiência profissional, explorando habilmente as potencialidades do veículo. Inicialmente descontraído, como demonstravam a fisionomia sóbria e as pernas cruzadas, o secretário do governador José Serra ficou visivelmente abalado quando foi apresentada uma reportagem sobre os cartões corporativos do governo de São Paulo. A imagem de volta ao estúdio da emissora mostrava um homem tenso e pouco à vontade. Afinal, ambientes televisivos sempre apresentaram condições ideais de pressão e temperatura para aves de alta plumagem.
Certeira como uma atiradora de elite, a entrevistadora perguntou ao secretário: ‘Já que o senhor e o seu partido defendem com tamanha veemência a instalação de uma CPI para investigar o uso dos cartões corporativos do governo federal, por que, então, não reivindicam tratamento semelhante em relação a este mesmo dispositivo utilizado no governo de São Paulo, do qual o senhor faz parte?’ Aloysio acusou o golpe, inclinou o corpo a frente e gaguejou pela primeira vez.
Segura, com absoluto controle do tema, Adriana deu o tiro de misericórdia. Deixou claro que o governo do estado de São Paulo disponibiliza os dados relativos ao uso dos cartões corporativos, informando apenas o montante utilizado nas operações, omitindo os nomes dos detentores dos cartões e o número do CNPJ das empresas contratantes. Diferentemente, o governo federal divulga os dados discriminando o nome do servidor, a quantia despendida e o número do CNPJ da empresa. Estava claro onde mais transparência.
A serviço da cidadania
Outras perguntas se seguiram, mas a que seguramente irritou o secretário foi feita no início do primeiro bloco e dizia respeito saques feitos por um motorista que serve ao governo estadual.
Como justificar o fato de um simples motorista, lotado na sede do governo estadual, ter sacado cerca de 1 milhão de reais utilizando cartão corporativo? Perguntas incisivas não dão margem a tentativas de escape do entrevistado. Deslocar o foco para o governo federal, como ele pretendeu, é um expediente inútil.
No site da emissora, consta que a entrevistadora concluiu a faculdade de Jornalismo pela PUC de Belo Horizonte no ano de 1993. Sua primeira experiência profissional foi como repórter de economia do jornal Diário do Comércio. Falta acrescentar que naquela quinta-feira, infelizmente para poucos, escreveu um belo capítulo do jornalismo brasileiro.
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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ