Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O professorado e a ‘baboseira ideológica’

A edição nº 2047 (de 13/2/2008) da revista Veja dedicou um espaço considerável ao tema da educação nacional. A entrevista com a secretária estadual de Educação em São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro, e os artigos dos economistas Claudio de Moura Castro e Gustavo Ioschpe compõem uma espécie de concepção ‘vejiana’ da educação.

A secretária Maria Helena enfatiza que um dos maiores problemas da deplorável situação da educação em São Paulo (leia-se, por exemplo, matéria da Folha, publicada faz um ano) é o insatisfatório nível profissional dos professores. Os professores seriam incapazes de dar boas aulas. Quando a jornalista Monica Weinberg lhe pergunta qual o caminho para melhorar esse nível, a resposta da secretária é, digamos, corajosa: ‘Num mundo ideal, eu fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, até mesmo as mais conceituadas, como a da USP e a da Unicamp, e recomeçaria tudo do zero.’ Essas faculdades apenas perpetuariam ‘baboseira ideológica’.

Maria Helena é socióloga, mestre em Ciência Política pela Unicamp e, segundo informações oficiais, está concluindo doutorado na USP em Ciências Sociais. Sua crítica, portanto, é de quem se sente apta a julgar como totalmente ineficazes os professores que ao longo das últimas décadas deram o tom da formação pedagógica brasileira. Pensemos nas aulas, conferências e escritos de Dermeval Saviani (Unicamp) e Antonio Joaquim Severino (USP), para mencionar, entre tantos outros, dois acadêmicos de prestígio.

O modelo da gincana

Seriam os doutores em pedagogia os principais responsáveis por fomentar vários mitos que atrapalham a educação pública. Para Maria Helena, é um mito afirmar que o aumento salarial dos professores ou um plano de carreira influenciariam a melhoria do ensino. Na sua opinião, dinheiro (para falar curto e grosso) não resolve. A menos que esteja vinculado a uma ‘política de reconhecimento do mérito’. Por isso, a secretária pretende pagar bônus a todos os que, numa escola – funcionários, professores e diretor – ‘levarem’ os alunos a alcançar determinadas metas de bom desempenho. Os bônus poderão chegar a três salários por ano.

Imagina Maria Helena que os professores, motivados pela perspectiva de um prêmio pecuniário, insuflados pela súbita adoção da meritocracia (como se esta existisse no plano político…), realizarão o milagre de transformar a realidade educacional. Essa metodologia do burro atrás da cenoura sussurra aos ouvidos do professor: ‘Quer mais dinheiro? Então trabalhe mais!’ Não leva em conta os problemas reais que tornam a boa vontade e o esforço do docente, por maiores que sejam, fonte de mais estresse. Contudo, e vai aqui simplória sugestão — uma vez que os bônus estarão condicionados ao desempenho dos alunos, por que não prometer também aos estudantes uma participação? Uns 5% poderiam incentivá-los a colaborar com essa escola de resultados!

A idéia simplista de que a repetência, o abandono escolar (vale a pena ler matéria do Correio Braziliense), o desinteresse crônico, a indisciplina, o fraco rendimento etc. devem-se sobretudo à falta de bons ‘dadores de aula’ demonstra que o estilo ‘PSDB’ de governar não tem condições de analisar a realidade educacional e oferecer soluções melhores do que o modelo da gincana. Quem correr mais, quem tiver sorte e/ou for mais criativo, atinge os objetivos, ganha pontos e arrebata o prêmio.

Formação humanística

Não poucos alunos enfrentam problemas fora da escola (famílias desestruturadas, ambiente social adverso, falta de valores, de referências, carências alimentares e de saúde) e esses problemas geram novas e complexas dificuldades na sala de aula, associadas a outros mil problemas que independem de uma boa aula. Aliás, impedem a boa aula que o bom professor porventura preparou. Como poderá a cenoura bonificadora fazer professores e diretores deterem o tráfico de drogas que invade as escolas, consertarem móveis quebrados, reformarem os banheiros, transformarem salas sem ventilação em paraísos didáticos, evitarem a violência entre os alunos?

Há professores despreparados? Há. Escolheram o magistério por idealismo (acreditaram na pedagogia do amor à la Gabriel Chalita, ex-secretário da Educação no tempo de Geraldo Alckmin) ou por falta de alternativas. São sobreviventes de um ensino básico sofrível, de um ensino médio deficiente, falta-lhes até mesmo estrutura física e emocional para dar conta da sobrecarga de classes, expediente necessário na luta por somar salários.

Há professores que faltam muito? Sim. Os que faltam, não raro, fogem das condições de trabalho: indisciplina incontrolável, humilhações e arbitrariedades que usurpam sua autonomia, falta de recursos materiais, falta de tempo e de saúde por excesso de atividades. Lembrando que a maioria feminina entre os docentes põe em jogo outra questão para além da sala de aula. São as mulheres que, professoras com 30 a 40 horas/aula por semana, estão sobrecarregadas também pelas tarefas domésticas.

E não só isso. Educar, ensinar, é tão ou mais exigente do que outras exigentes profissões. Requer a prática da comunicação, o dom da invenção, a capacidade de avaliar (intuitiva e objetivamente) o comportamento humano (de crianças e adolescentes!), forte autonomia profissional, virtudes que só se desenvolvem com formação humanística prévia e auto-aprendizagem contínua. Estas, por sua vez, implicam leitura, reflexão, acesso à cultura no sentido amplo, apoio profissional (bons cursos, boas oficinas, orientação didática, ajuda psicológica) e tranqüilidade econômica.

Salário não é tudo, mas…

Como uma espécie de comprovação das opiniões da secretária, Claudio de Moura Castro escreve na mesma edição da Veja um artigo igualmente curto e grosso: ‘Salário de professor‘. Baseado em que, segundo as sempre infalíveis estatísticas, os docentes brasileiros possuem remuneração compatível com a realidade empregatícia nacional, o articulista conclui que os sistemas públicos se tornariam mais eficazes se ‘conseguissem criar um ambiente mais positivo e estimulante’. O exemplo estaria nas escolas privadas, em que os professores, com ‘níveis salariais parecidos’, estão contentes.

O mais estimulante seria então a tal cenoura tentadora do bônus? Moura Castro não afirma nem nega. Menciona outro tema: o da gestão. ‘Como a escola tem a cara do diretor’, dependeria então desse gerente do ensino, digamos assim, valorizar os professores, motivá-los, com bônus ou sem bônus. Mas se, na prática, os diretores são indicados pelo clientelismo dos governos locais ou, mediante concurso, estão politicamente compromissados de modo mais ou menos velado com estes mesmos governos, a escola desse diretor dificilmente terá a cara dos professores nem dos alunos que lá estão.

A propósito, recomendo que economistas e sociólogos que se autoproclamam especialistas em educação leiam outro uspiano (antes de se fecharem as faculdades de Educação): o pesquisador Vitor Henrique Paro, sobre a eleição de diretores em escola pública como experiência democrática de grande valor.

Nenhuma palavra da secretária e do articulista sobre a iniciativa do governo federal de estipular o salário mínimo dos professores em 850 reais, o que significará um aumento de quase 50%. Não concordam eles com o ministro Fernando Haddad? Salário, concordo eu com eles, não é tudo, mas, sem cuidar dos salários, tornando-os, inclusive, atrativos para melhores profissionais, o governo poderá jogar no sistema o dinheiro que bem quiser (contratar consultorias, investir em computadores, instalar câmeras para monitorar os alunos etc.), mas os problemas continuarão a se perpetuar.

Finlândia, o paradigma

O terceiro capítulo educacional dessa edição da Veja é assinado por Gustavo Ioschpe: ‘Pelo direito à ruindade‘. Gustavo critica o MEC pela iniciativa, que considera ‘antiliberal’, de averiguar melhor a qualidade do ensino superior (em particular as faculdades de direito e pedagogia), sob pena de fazer reduzir a oferta de vagas ou mesmo fechar o curso. Ora, não dissera a secretária de Educação que, se fosse possível, fecharia todas as faculdades de pedagogia, mesmo as que têm a melhor avaliação? Não são essas faculdades que prejudicam a escola, transmitindo baboseiras ideológicas em lugar de ensinar os professores a serem professores?

A contradição é só aparente. No momento em que as faculdades de pedagogia estivessem todas fechadas, sobretudo as públicas, mais críticas, menos dóceis ao mando, tudo recomeçaria do zero. Ou ficaria tudo na estaca zero. Quem quisesse abrir fábricas de diplomas pedagógicos teria amplo direito de fazê-lo, sem maiores impedimentos ou muitas cobranças, como em outros tempos, e os professores formados nessas faculdades teriam o dever de superar sua posterior ‘ruindade’, rezando pela cartilha da ‘pedagogia do bônus’.

Estaria assim o mercado controlando as coisas ao seu modo: o famoso ‘salve-se quem puder’.

Mas o espírito ‘vejiano’ continua a dar lições sobre a arte de lecionar… Na edição desta semana (nº 2048, de 20/2/2008), a revista Veja publica a matéria ‘A melhor escola do mundo’. Thomas Favoro, diretamente da Finlândia (país com características idênticas às do Brasil), revela o que podemos aprender em termos educacionais.

No quesito ‘salário’, os professores finlandeses, infinitamente melhores do que nós, recebem cerca de 2.500 dólares/mês; nós embolsamos algo em torno de mil dólares/mês. Esclarece a matéria, em letras minúsculas, que se trata de professores do ensino fundamental com 15 anos de experiência.

Segundo o texto, e deve ser verdade, 100% dos professores finlandeses possuem o mestrado. Já no Brasil, somente 2%. Mas se depender da gestão do governador José Serra, essa disparidade continuará. Em meados do mês de janeiro de 2008, suspendeu-se o programa ‘Bolsa Mestrado’ para os professores estaduais. O intuito deve ser viabilizar o tal bônus que aí vem!

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br