Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A vida pelas tabelas

A divulgação, nos jornais de terça-feira (19/2), dos números da mais recente pesquisa do Instituto Sensus, encomendada pela Confederação Nacional dos Transportes, a já tradicional ‘CNT/Sensus’, vem abastecer a obsessão nacional pela popularidade das figuras públicas e, mais que isso, pelo monitoramento minucioso dos indicadores que atestam a força ou a fraqueza dessa popularidade. Temos aí um dos traços que distinguem nossa era das que a precederam: a mania por indicadores. Eles ganharam o estatuto de critério da verdade – na política, na economia, em qualquer setor.


Na economia, nem se fala (só se conta, com o perdão do trocadilho). Analistas de investimentos transnacionais avaliam o nível de reservas cambiais, a taxa de inflação, a política de juros e mais dezenas, centenas, milhares de numerozinhos antes de recomendar compras de papéis deste ou daquele país. Da mesma forma, os que compram e vendem ações na Bolsa de Valores se divertem ao acompanhar balanços, projeções e performance das empresas.


Em atividades bem mais comezinhas, como dirigir um automóvel, dá-se o mesmo. Nos carros, há ponteiros para cada oscilação do motor, da suspensão, da temperatura externa, da pressão dos pneus, cabendo ao motorista supervisionar aquilo tudo com a fleuma de um comandante de Boeing – profissão, aliás, que se resume à administração de um painel digital repleto de indicadores.


A popularidade dos homens públicos


Também no cuidado do corpo miserável de cada um de nós, o acompanhamento dos indicadores tornou-se uma febre epidêmica, a ponto de as neuroses da gestão corporativa terem se transferido sem a menor adaptação para o que eu poderia chamar aqui de gestão do corpo saudável.


As principais vítimas da nova febre são os executivos, os pobres executivos. Nas empresas, submetem-se a doutrinações que tentam ferozmente convencê-los da necessidade de que – a expressão é boa – gerenciem a própria saúde. Em pouco tempo, eles passam a olhar os índices de açúcares e gorduras no sangue, os ácidos, a cronometragem da caminhada diária como se olhassem para as planilhas de fluxo de caixa, de margem operacional, do ‘yibítida’, como dizem.


Os operários das minas de carvão do século 19 tinham os pulmões abatidos pela fuligem; os executivos do século 21 têm a alma calcinada pelos indicadores numéricos. Vão ao médico religiosamente e este, mais do que apalpar-lhes o corpo, analisam os algarismos. Regularmente, com ar de reprovação, passam-lhes pitos e novas tarefas – novas metas, novas metas, sempre – aos ansiosos executivos. Para eles, a doença pesa como vergonha: é um erro de gestão que cometeram. O bem-estar, a felicidade, essas coisas não importam: o que conta são os indicadores.


É, portanto, culturalmente natural que, na era, ou melhor, na civilização da imagem, tenhamos nos tornado obcecados pelos indicadores de saúde também da imagem. Da imagem dos outros, de preferência, mas também da nossa, uma vez que nossos movimentos tendem a conformar ou a estragar a nossa imagem. Pois bem, se o que mais importa é a imagem, como se pode gerenciá-la? A boa imagem dos homens públicos, ou seja, a sua popularidade – que, evidentemente, vale muito mais que sua reputação –, é acompanhada periodicamente, mais ou menos como se fosse um reality show. É isso, essa apetitosa atração, que a CNT/Sensus vem nos trazer.


Então tudo seria um truque de comunicação?


Os reis de Tebas, na Grécia mítica, quando se punham em dúvida, mandavam chamar Tirésias, o adivinho, que, embora cego, sabia dizer do passado, do presente e do futuro. Sabia o que tinha acontecido nas gerações anteriores – conhecia mesmo os segredos de morte, aquelas terríveis histórias que ninguém jamais contava para ninguém – e tinha o dom de prever perfeitamente o que estava para acontecer.


No século 18, os revolucionários franceses, quando em dúvida, chamavam os filósofos ou, melhor ainda, invocavam o melhor da filosofia para ilustrar o povo e acender a bola de cristal da opinião pública. Aí, olhando com atenção para o seu brilho fatídico – a luz sem sombras da opinião pública – concebiam o melhor caminho a seguir.


Os bolcheviques, quando em dúvida (embora para os bolcheviques a dúvida fosse um sintoma grave de menchevismo atroz), mandavam vir o ideólogo que havia dentro de cada um. Sapecavam uma análise de conjuntura pelo método de que dispunham e então extraíam a melhor direção para conduzir as massas.


Na política hodierna – o adjetivo, aqui, é imperativo, com o que ele tem de moderno e de odioso –, o protagonista, o observador ou o financiador do jogo do poder, habitualmente, manda contratar o marqueteiro – e este, por sua vez, cuida de providenciar uma pesquisa. Às vezes uma ‘quali’. Outras vezes, uma ‘quanti’, com sói ser o caso da CNT/Sensus.


O retrato da pesquisa é absolutamente favorável ao presidente Lula. Ele tem 66,8% de aprovação e seu governo conta com 52,7% avaliação positiva, os melhores índices desde o início de 2003. Há uma profusão de indicadores, para todo tipo de ilação. Quantos votariam no candidato indicado pelo presidente, agora, nas próximas eleições das prefeituras? A quantas anda a cotação dos possíveis candidatos para 2010? O escândalo dos cartões corporativos vai prejudicar a popularidade presidencial?


Claro que não vou fazer aqui interpretação da ‘quanti’ (o objetivo desta coluna não é comentar pesquisa). O meu foco reside em explorar um pouco mais o fascínio que a imagem, a construção e a gestão da imagem e, acima de tudo, essa intrigante possibilidade de a imagem se mover exercem no noticiário político.


Uma marca, uma grife


A dificuldade dos interpretadores – tanto os governistas como os oposicionistas – em lidar com o fato de que a alta popularidade do presidente parece passar ao largo das críticas veiculadas pela imprensa indica que, no senso comum da nossa cultura política, a imagem de um político é pensada, ainda, como um produto que se constrói com técnicas de comunicação.


A ilusão de que a ação consciente do sujeito-manipulador tudo pode, a presunção da onipotência, ainda habita o imaginário político. Mesmo aqueles que embasam na economia – ‘é a economia, estúpido’ – as explicações para o bom ‘desempenho’ de Lula, falam em ‘blindagem’ para justificar o que parece contrariar as leis dessa ciência exata que é a avançadíssima gestão privada das imagens públicas dos outros. Sugerem que a economia foi e vai tão bem que a figura do presidente paira, inatingível, sobre o plano conturbado em que os políticos mortais se estapeiam com denúncias de prevaricação de todo tipo. Nesse sentido, a explicação de matiz econômico não desautoriza a crença de que a imagem é algo que se fabrica por meio da propaganda massiva, mas identifica, no caso de Lula, uma exceção que confirma a regra.


É como se dissessem: o caso do presidente é uma exceção, pois tem carisma e, além de carisma, tem a sorte de estar blindado pela economia; caso ele não fosse exceção, hoje a sua popularidade estaria bastante abalada. Nesse sentido, a ideologia da pesquisa, se é que se pode falar aqui em uma ‘ideologia’ de pesquisa, seria aquela de, ao apresentar o diagnóstico, vender o remédio, qual seja, uma boa e permanente assessoria de comunicação. O governante, enfim, recebe as análises que uma marca de calçados receberia – ele é uma marca, alguns chegam a dizer, é uma grife –, e sua imagem, portanto, carece de ser administrada como tal.


A opinião pública não tem que obedecer a opinião de articulistas – nem estes precisam dizer amém às preferências da massa: a imprensa é boa quando é lugar de dissenso, não de regência do pensamento alheio


O vínculo direto, um tanto linear, que alguns estabelecem entre a opinião média dos articulistas de jornais e a opinião dos eleitores já deveria ter caído há mais tempo. Não se trata de um vínculo necessário: a formação da opinião e da vontade admite outros ingredientes além daqueles fornecidos pelos meios de comunicação convencionais – e isso há muito, muito tempo.


A formação da opinião e da vontade vem de experiências e vivências, o que envolve mecanismos imaginários, até narrativos (o modo como cada um descreve e narra sua própria condição), mas envolve também percepções menos verbais e mais palpáveis como alterações no padrão material de vida e, sobretudo, de perspectivas de vida.


Vendo o mesmo fenômeno por outro ângulo, o fato de a opinião dos articulistas não ser corroborada pela opinião dos eleitores – em pesquisas, ou mesmo nas eleições – não significa que eles estejam errados, pois as razões que movem suas convicções são absolutamente outras – e igualmente legítimas.


As páginas dos jornais abrigam – e é bom que abriguem – questionamentos e críticas; noticiam temas que, na maior parte das vezes, o poder gostaria que ficassem ignorados. Se houvesse – e talvez devesse existir – uma listinha dos indicadores da qualidade nos jornais, veríamos que, por mais que isso incomode, a saúde deles é dada pelo bom tratamento – objetivo, crítico, apartidário, aprofundado – de assuntos que, nos gabinetes de governo, seriam chamados de pauta negativa.


Ora, não é porque os jornais cumprem o seu dever de problematizar o que parece pacífico que um governo passará a ser mal avaliado. Ele será mal avaliado quando, na sua vivência prática, os cidadãos tiverem contato com os malefícios materiais trazidos pelos problemas apontados pelos articulistas. Em suma, o entrevistado pela pesquisa diz, a seu modo, que, se o assunto da pergunta não mudou sua rotina, ou, mais exatamente, não piorou sua vida, é um assunto para o qual ele não está nem aí.


Isto posto, deixo isso pra lá. Como tenho avisado em artigos anteriores, o meu objeto é a imagem e seus desígnios – nada a ver com o jornalismo político. A política, a exemplo de quase todos os outros territórios da nossa vida, tem sido governada pela imagem – e esta, como o resto, é obsessivamente acompanhada pelo público por meio dos indicadores que inventamos e nos quais acreditamos como os reis de Tebas acreditavam nos oráculos. Vamos assim, com a vida esquadrinhada pelas tabelas.


Os gráficos das enquetes de opinião mostram como a imagem fixa pode se mover. Como ela está prestes a se mover. A de Lula, é bem verdade, vem se movendo cada vez mais para o alto, mas até ela poderá cair. E isso, como se fosse novela, captura a audiência. É uma questão de crença, mais que de ciência. No país onde todo mundo dá palpite sobre futebol, novela de televisão e economia, agora todo mundo é especialista em imagem, ou melhor, em monitoramento de imagem. Um fetiche, provavelmente, mas um fetiche que diz mais sobre como vivemos do que a pesquisa CNT/Sensus diz sobre a imagem do presidente da República.

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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007