O código de ética que rege o funcionamento de uma mídia na internet deve ser diferente da ética de um órgão impresso? Em outras palavras, um jornal ou revista pode na sua versão online publicar notícias que não publicaria na sua versão impressa?
A respeitada e considerada revista de esquerda Le Nouvel Observateur – mesmo que seja acusada por muitos de ser ‘gauche caviar’, o que corresponde mais ou menos à nossa ‘esquerda festiva’ – transformou-se em revista people, como a classifica Carla Bruni em sua primeira entrevista exclusiva (dada à L’Express) depois de se tornar Madame Sarkozy?
A publicação na semana passada de uma notícia no site da revista Le Nouvel Observateur desencadeou um debate novo em torno da ética na internet. Uma pequena matéria informava que o presidente Nicolas Sarkozy teria enviado uma mensagem por celular (um SMS, abreviatura de short message service) à sua ex-mulher Cécilia uma semana antes do seu casamento com Carla Bruni. O texto da mensagem: ‘Si tu reviens, j’annule tout’ (Se você voltar, anulo tudo). Assinatura da matéria: A. R. (iniciais do jornalista Airy Routier).
Essa notícia suscitou a ira presidencial e um processo penal foi imediatamente instaurado por seu advogado Thierry Herzog, por ‘alteração fraudulenta da verdade, com conseqüente prejuízo’. A organização Repórteres sem Fronteiras, publicou um comunicado condenando o processo e assinalando que ‘nos últimos trinta anos nenhum chefe de Estado em exercício processou um órgão de imprensa’.
Popularidade em queda
Sarkozy, que trata com familiaridade alguns jornalistas com quem conviveu mais assiduamente durante o tempo em que foi ministro, e durante a campanha presidencial, inaugurou uma proximidade nunca antes vista entre os presidentes da República e os profissionais da imprensa. Além disso, ele é amigo de quase todos os grandes patrões da imprensa francesa.
O presidente já foi acusado de pedir a cabeça de Alain Genestar, ex-diretor-geral da Paris Match, por ter a revista publicado a foto de Cécilia com seu namorado, quando esteve separada por uns meses do marido, então ministro do Interior. Acontece que o dono da Paris Match é Arnaud Lagardère, apresentado em um comício como um ‘irmão’ do então candidato a presidente.
Um jornal ou revista sério deve tratar da vida privada dos políticos? Essa discussão tomou conta das redações e de programas de debates no rádio e na televisão.
‘Se esse gênero de sites existisse durante a guerra, o que não teria sido a campanha de denúncias contra os judeus’, observou a senhora Sarkozy na entrevista, afirmando que o processo de seu marido contra o site do Nouvel Observateur ‘é justo pois não é feito contra um órgão de imprensa mas contra `os novos meios de desinformação´’.
O jornalista político Alain Duhamel escreveu em artigo no jornal Libération que se instala um mal-estar no fato de se saber que Nicolas Sarkozy goza de imunidade total civil e penal enquanto exerce o mandato de presidente, mas ao mesmo tempo pode processar um órgão de imprensa.
Essa mesma contradição entre imunidade de um lado e capacidade de fazer um processo contra órgãos de imprensa foi lembrada por Guillaume Malaurie, co-diretor da redação do Nouvel Observateur, em entrevista à agência France Presse. ‘As dificuldades de Nicolas Sarkozy o levam a buscar bodes expiatórios’, acrescentou o jornalista.
O último número da revista tinha dedicado uma capa à vertiginosa queda de popularidade do presidente. Malaurie atribui a responsabilidade da mistura de gêneros – privado e público – ao próprio presidente.
Esfera privada
O advogado Richard Malka, especializado no direito da imprensa, qualificou esse processo de ‘gravíssimo’. Segundo ele, somente nas sociedades ditatoriais se aplicam os delitos de direito comum aos jornalistas.
O chefe da redação de Libération, Didier Pourquery, publicou uma pequena nota em que dizia que tanto os jornalistas quanto os leitores passaram a semana a debater sobre a conveniência de publicar esse tipo de notícia com base em short message service. Ele escreveu:
‘No Libération, nós não investigamos a vida íntima dos indivíduos, sejam eles celebridades [people] ou mesmo presidente da República. Existe uma esfera da intimidade da vida privada que não cobrimos, da qual faz parte a correspondência privada. Logo, Libération não teria publicado uma notícia sobre esse SMS’.
O observador da mídia Daniel Schneidermann escreveu em sua coluna ‘Médiatiques’ no Libération:
‘E se esse SMS fosse mesmo verdade? Ele não dá uma informação importante sobre a psicologia do presidente que deve ser levada ao conhecimento dos cidadãos’?
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Jornalista