Santo Agostinho acreditava estar o mal na ausência de ordem e que o principal objetivo do diabo era criar desordem. É bem possível que o diabo de Santo Agostinho esteja em plena atividade nos dias de hoje, a julgar pelo uso indiscriminado de conceitos da ciência com significados totalmente diversos do original, muitas vezes para fins pouco ou nada científicos.
No final de 2007, por exemplo, a matéria de capa de uma revista semanal brasileira de grande circulação foi, mais uma vez, o aquecimento global. Ao longo da reportagem, elaborou-se uma síntese das informações apresentadas pelo Painel Inter-governamental de Mudanças Climáticas. Conhecido pela sigla em inglês IPCC, esse órgão divulgou previsões que encontram forte oposição em uma parcela significativa de cientistas – denominados ‘céticos’ por aquela reportagem.
O trabalho jornalístico foi severamente prejudicado, quase ao seu final, por um grave deslize de seus autores. Lamentavelmente, ao elaborarem uma matriz com as contrastantes visões do IPCC e dos ‘céticos’ acerca dos principais efeitos das mudanças climáticas sobre o planeta, os jornalistas acrescentaram uma coluna ao conjunto, na qual determinavam ‘quem está certo’ nesse conflito.
Uma combinação balanceada
Não fica clara naquela matéria a origem de tamanha clarividência e capacidade analítica. Mas restou evidente que aqueles jornalistas se julgam capacitados para definir o lado que tem razão em uma batalha na qual estão envolvidos, em ambos os lados, centenas de doutores e pós-doutores em climatologia. Ainda pior é o fato de, nas semanas seguintes, a seção de cartas da revista não registrar um comentário sequer a respeito desta desmedida pretensão científica dos autores da reportagem.
Infelizmente, não se trata de um fato isolado. As questões ambientais globais vêm se transformando em matéria de crenças e seitas. Todo mundo se acha no direito de opinar – com a convicção dos convertidos. Não há, no inconsciente coletivo, uma distinção clara entre as mudanças climáticas e o chamado aquecimento global. Não existe uma compreensão do rigor com que a ciência estuda aquelas mudanças, em contraponto ao fenômeno midiático do aquecimento global – que parece resultar do conhecido movimento pendular da história. A nova posição do pêndulo, a rigor, compensa o mito do resfriamento global, da nova era glacial e do inverno nuclear, surgido na década de 1970.
Evidentemente, não são poucos os motivos para preocupação. O planeta realmente parece dar sinais de estresse, causado por um modelo capitalista perdulário e devorador de recursos naturais que se acreditam finitos. Mas esses problemas não devem ser enfrentados com base na fé e, sim, por uma bem balanceada combinação de ciência e política, baseada na cooperação honesta e idealista entre as partes.
Oportunistas e profetas
Muito se tem falado sobre o fim das utopias. Vivemos um início de século que se fundamenta em um pragmatismo de mercado, em contraponto ao idealismo libertário que marcou várias gerações. Nesse contexto, uma nova realidade vem sendo construída, com a convicção de que o mercado é capaz de ‘salvar o planeta’. Tanto assim que a tese do aquecimento global se converteu em um catalisador de ponderáveis forças políticas e da formação de atraentes unidades de negócios. Esse mercado abrange um amplo espectro da sociedade, que inclui, em seus limites, organizações bem intencionadas e oportunistas clássicos. Como o mercado não se sustenta sem fetiches, proliferam congressos, seminários, viagens internacionais, contratos de consultoria, produções audiovisuais – e muita, muita, exposição à mídia. O pano de fundo é a repetição farsesca da história, pontuada pela intermitente visão apocalíptica do fim dos tempos.
Nem por um segundo se deve duvidar da possibilidade de, em um futuro não tão distante, os pavorosos cenários desenhados pelo IPCC se tornarem realidade. Mas não por uma questão de fé. Essas análises devem ser avaliadas pela ciência. Ocorre que esta não é baseada em princípios sustentados pela fé e, sim, em uma busca constante de processos confiáveis de intervenção no mundo material. A fé e a ciência podem convergir, dialogar e coexistir pacificamente. Entretanto, o verdadeiro cientista deve ter a humildade de aceitar que a natureza é caótica, confusa e imprevisível.
O clima talvez seja o mais complexo e o mais caótico dos sistemas com que um cientista pode se deparar. Por isso, as construções bem arrumadas e elegantes são criações dos cientistas para poder enfrentar esse caos. Jamais serão imutáveis ou proféticas. Para enfrentar os graves problemas previstos por modelos probabilísticos da ciência, precisamos de governantes com uma visão idealística e humanitária, mas, acima de tudo, dependemos de cientistas honestos e competentes. Já temos oportunistas e profetas demais.
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Doutor em Política, Planejamento e Gestão Ambiental, consultor legislativo do Senado Federal na área de meio ambiente; texto publicado originalmente no Globo (24/1/08) e Correio Braziliense (26/1/08)