A internet vem ressuscitando alguns hábitos milenares.
Antigamente, quando escrever não era profissão nem gerava benefícios concretos, era praxe atribuir textos a autores mais famosos. Nem Moisés escreveu o Gênese nem Salomão, o Cântico dos Cânticos. Mas seus autores acharam que o trabalho seria levado mais a sério se ‘endossado’ por personalidades de prestígio.
A estratégia não poderia ter sido mais bem-sucedida: ambos são textos canônicos para boa parte da humanidade. Naquela época, aliás, o próprio processo de disseminação dos escritos era caótico e irregular: cada obra tinha que ser copiada individualmente e sabe-se lá as distorções que cada copista acrescentava.
Com o advento da imprensa, tudo mudou. Cervantes começou a escrever Dom Quixote enquanto estava preso por seus credores. Ele seguiu todos os trâmites da lei para registrar a autoria da obra e, graças a isso, viveu seus últimos anos em conforto – e sem dívidas. Na nossa época de produção em massa de livros, os autores fazem questão de se identificar e amealhar os frutos pecuniários do seu trabalho.
E lá veio a internet mudar tudo mais uma vez. Pessoas que jamais teriam acesso a uma editora – ou a um copista medieval – agora podem disseminar livremente seus textos. E como tornar aquela sua crônica bobinha sobre uma família classe média em algo respeitável? Simples: assine Luis Fernando Verissimo.
Essas fraudes, apesar de dolorosamente óbvias, acabam sendo aceitas pela maioria dos leitores. Não é de se surpreender, como exposto em outra coluna, que matérias de sites humorísticos como o Cocadaboa sejam retransmitidas sem menção da fonte e tomadas como a mais sacramentada verdade.
Entretanto, esse fenômeno antigo, devidamente ressuscitado pela internet, está ameaçando arrastar aos tribunais brasileiros o nome de uma de nossas maiores autoras: Clarice Lispector.
Uma história mal contada
Em 2001, a agência publicitária Leo Burnett criou uma campanha para comemorar os 25 anos da Fiat no Brasil. Um dos pontos altos do comercial era um belíssimo poema sendo narrado em off. Em release divulgado pela agência, o poema é atribuído à Clarice Lispector. Uma matéria no Estado de S.Paulo chegava a dizer: ‘O publicitário Alexandre Skaff mergulhou na obra de Clarice Lispector e achou inspiração nos versos de ‘Mude’ para criar o filme de 25 anos da Fiat’.
Entretanto, o poema ‘Mude’, de larga circulação na internet, já foi atribuído, além de Clarice, também a Paulo Coelho e a Cecília Meireles. Paulo Coelho, com integridade, elogiou o poema mas não o reconheceu como seu. Cecília e Clarice, falecidas, não tiveram chance de fazer o mesmo.
O poeta Edson Marques afirma ser o autor do poema, registrado por ele na Biblioteca Nacional. Além disso, ‘Mude’ também já foi interpretada por Antonio Abujamra, na peça Mefistófeles, e por Pedro Bial, no CD Filtro Solar, da Sony Music, sempre creditada a Edson Marques. Matéria da Veja, de julho de 2003, também cita a poesia ‘Mude’ como sendo de Edson, apesar de comumente atribuída a Clarice.
Talvez tudo seria mais fácil se Edson fosse um autor à moda antiga. Mas ‘Mude’ nunca foi publicada em meio impresso. A poesia existe na internet, nos sites de Edson e em diversos outros sites que a atribuem a ele.
Conversei longamente com Edson Marques. Ele diz não querer dinheiro de ninguém. Só deseja que a Leo Burnett faça uma retratação pública do release onde afirma que ‘Mude’ é obra de Clarice.
A Leo Burnett não quis comentar o assunto. Sua posição oficial é que comprou legalmente os direitos de uso do poema do herdeiro de Clarice Lispector. Ponto.
O herdeiro de Clarice Lispector, seu filho, Paulo Gurgel Valente, da empresa Profit Projetos & Consultoria, se recusou a falar comigo. Sua secretária avisou que ele nunca fala para a imprensa sobre Clarice Lispector, a não ser via fax ou e-mail. Todos meus vários e-mails não foram respondidos.
Cadê o contrato?
A Rocco, editora de Clarice Lispector, também tirou o corpo fora: disse ser somente responsável pelos direitos de publicação da obra da autora. Uma agência que desejasse direitos de licenciamento para um comercial teria que negociar diretamente com o herdeiro.
Edson está oferecendo 10 mil dólares para quem provar que ‘Mude’ é de Clarice. Nenhum voluntário se apresentou. Na obra completa da autora, não há livros de poesia. Além disso, fontes extra-oficiais da Leo Burnett me confirmaram que Alexandre Skaff realmente encontrou a poesia enquanto navegava na internet. Mais uma vez, a internet. Será ela a culpada de tudo?
A história está excessivamente mal-contada. Temos três cenários hipotéticos, cada um com um mentiroso diferente:
1.
Edson Marques está mentindo. A poesia é de Clarice e seus direitos foram legalmente cedidos por seu herdeiro à Leo Burnett. Pergunta: onde está essa poesia na obra de Clarice?2.
A Leo Burnett está mentindo. Encontraram a poesia na internet com atribuição indevida, usaram sem pedir autorização e, quando Edson reclamou, inventaram ter comprado os direitos do herdeiro. Pergunta: por que o herdeiro não está fazendo um escândalo? Eu não iria gostar se dissessem que eu vendi algo que não vendi, ainda mais se esse algo não for meu para vender.3.
O herdeiro de Clarice está mentindo. Quando foi procurado pela Leo Burnett, vendeu a eles o direito de uso de uma obra que não possuía. Pergunta: por que a Leo Burnett não reconhece o inocente erro inicial (afinal, muitas outras pessoas também atribuíram esse poema a Clarice) e não faz um escândalo contra o herdeiro, no mínimo, exigindo seu dinheiro de volta?Por fim, no mês passado, Edson Marques enviou uma notificação extrajudicial à Leo Burnett. Exige ver o tal contrato de licenciamento. Afinal, se ele não existe, a briga de Edson é com a Leo Burnett; se existe, é com o herdeiro.
Infelizmente, parece que a história mal começou.
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Colunista de internet da Tribuna da Imprensa, editor do Guia de Blog SobreSites (http://www.sobresites.com/blog) e mantém o blog Liberal Libertário Libertino (http://www.liberallibertariolibertino.blogspot.com/); e-mail (cruzalmeida@sobresites.com)