Os setores artístico, intelectual, acadêmico e de comunicação, entre outros, tiveram importante papel na oposição ao regime autoritário pós-64. Assim, com justiça, são sempre lembrados o teatro, o cinema, a música, a literatura, as artes plásticas, a universidade, a SBPC, a OAB, a ABI, os jornais alternativos e alguns da grande imprensa, que assumiram posições de denúncia da ditadura e sofreram as conseqüências dessa atitude – pressões, prisões, censura, intimidações etc.
Todavia, há um ramo ligado a estas áreas que também desempenhou papel de relevo e quase sempre é esquecido: trata-se do ramo da edição de livros. Desenvolveu-se, a partir de meados da década de 1970, um segmento que podemos chamar de livros de oposição ao regime: livros de denúncias contra o governo, obras de parlamentares de oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, livros-reportagem, memórias, romances políticos, clássicos do pensamento socialista. Eram livros que tratavam de temas que punham em questão a ideologia, os objetivos e os procedimentos do regime de 1964. Este segmento ganhou maior impulso a partir de 1977-78, com o retorno à cena pública do movimento estudantil e do movimento sindical, e com a campanha da anistia.
Livros de políticos
Estes livros eram publicados por editoras de oposição – editoras com perfil marcadamente político e ideológico de oposição ao governo civil-militar. Algumas dessas editoras mantinham vínculos estreitos com partidos ou grupos políticos, inclusive clandestinos, ou foram criadas por esses grupos. Outras não estabeleciam vinculações políticas orgânicas ou explícitas, mas representaram iniciativas políticas de oposição. [Desenvolvi o estudo deste tema em ‘Editoras de oposição no período da abertura (1974-1985): Negócio e política’. São Paulo, dissertação de mestrado em História, FFLCH-Universidade de São Paulo, 2006]. Editoras como Civilização Brasileira, Brasiliense, Vozes, Paz e Terra, Alfa-Ômega, Global, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Codecri, Vega e Livramento, entre muitas outras, destacavam-se na edição dos livros de oposição.
Como um significativo retrato desse quadro, a revista Veja, em sua primeira edição do ano de 1978, intitulava a matéria de balanço de sua seção de literatura do anterior como ‘Ano político’: ‘A grande marca de 1977 […] foi, e não por acaso, a viva floração de livros políticos – memórias, ensaios, depoimentos, artigos, teses e discursos. Livros de políticos, em especial: Marcos Freire (Nação oprimida [Paz e Terra]), Paulo Brossard (É hora de mudar [L&PM]), Alencar Furtado (Salgando a terra [Paz e Terra]), Roberto Saturnino Braga (Discurso aos democratas [Artenova]), todos eles parlamentares do MDB – ex, no caso de Alencar Furtado –, freqüentaram as listas dos mais vendidos, ao lado do arenista Teotônio Vilela (A pregação da liberdade [L&PM])’ [‘Ano político’. Veja, nº 487, 4/1/1978, p. 82].
‘Brasileiro lê de tudo’
Relembrando os últimos anos da década de 1970, quando os livros de oposição ocupavam lugar de destaque nas listas de livros de maior sucesso, o jornal Leia Livros registrava que ‘nas livrarias, o governo Geisel, então encalacrado numa crise política profunda, perdia em toda a linha para a oposição. A Lei Falcão, que garantia escassa e escusa maioria no Congresso, nada podia diante da lista dos [livros] mais vendidos’ [‘A rouca resenha de Lula’. Leia, São Paulo, nº 114, abr. 1988, p. 10].
A revista IstoÉ, em 1980, falava em um ‘boom dos livros de esquerda’. O auge desse movimento editorial parece ter sido a VII Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 1980, chamada de ‘a Bienal da Abertura’ por Mário Fitipaldi, então presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). De acordo com a revista, ‘Ernesto ‘Che’ Guevara, Leon Trotski, Lênin, Mao Tse-tung, Ho Chi Minh e outros temíveis senhores têm um encontro póstumo marcado no tranqüilo Parque do Ibirapuera, em São Paulo’, onde se realizava a Bienal do Livro. Lá estariam presentes por meio de suas obras, ‘editadas à maneira das avalanches de um ano para cá […] obras que há bem pouco tempo não podiam sequer ser adquiridas’ [FANTINI, Flamínio e MEDEIROS, Benício. ‘O brasileiro lê de tudo, enfim. Desde que tenha dinheiro’. IstoÉ, São Paulo, Editora Três, 13/8/1980, p. 52-54].
O subgrupo das engajadas
A partir dessas constatações, considero que, diante da desarticulação dos canais institucionais de participação política e social enquanto partidos, sindicatos, movimentos políticos, sociais e culturais etc., a atividade editorial, mediante a edição de livros cujo conteúdo se caracterizava pela oposição ao governo da época, passou a ser uma alternativa para aqueles grupos e pessoas que tentavam atuar e influir politicamente de forma pública, mesmo sob um regime ditatorial. [Essa idéia se baseia em grande medida na obra de Bernardo Kucinski, Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa (São Paulo, ed. Scritta, 1991; reeditada em 2003 pela Edusp), na qual o autor analisa a história e o papel da ‘imprensa nanica’, ou ‘imprensa alternativa’, no Brasil nos anos 1970. Ver também o livro de Maria Paula Araújo, A utopia fragmentada (Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2001).] E, ao mesmo tempo, era também fruto de novas possibilidades que se abriam de rearticulação de setores oposicionistas após um período de intensa repressão.
O que caracterizava o conjunto das editoras de oposição era seu perfil e sua linha editorial claramente oposicionista, sem que isso implicasse que estas empresas tivessem necessariamente vinculações políticas explícitas. O fundamental é que elas representaram iniciativas de oposição. No entanto, muitas dessas editoras, mas não a sua totalidade, mantinham vínculos estreitos com organizações políticas. E, em certos casos, algumas editoras de oposição surgidas nos anos 1970 e 1980 foram até criadas por partidos ou grupos políticos, vários deles na clandestinidade ou na semi-clandestinidade. Dessa forma, as empresas que tinham vinculações com organizações políticas se caracterizavam como editoras de oposição engajadas, formando um subgrupo dentro do conjunto mais amplo das editoras de oposição.
Recuperação da memória
Ao mesmo tempo, esse movimento editorial de caráter político também mostra que crescia o mercado para o produto produzido por essas editoras: os livros de oposição. Assim, ‘as preocupações com o [aspecto] empresarial, com a profissionalização e com a veiculação de conteúdos políticos vão estar um tanto imbricadas nesses anos 70’, e o mercado editorial vê ‘a oportunidade de abrir campo para as ‘obras de esquerda’’, percebendo que a ‘literatura ‘política’ passa a ser um excelente negócio no raiar da ‘abertura’’ [HOLANDA, H. B e GONÇALVES, M. A., Política e literatura: a ficção da realidade brasileira. In: FREITAS FILHO, A. Anos 70. Literatura. Rio de Janeiro, Editora Europa, 1980, p. 39 e 53].
Em síntese, verifica-se que ‘florescia um mercado de oposição à ditadura nas classes médias, que a indústria cultural soube aproveitar a partir do fim dos anos 70, com a abertura do regime civil-militar’ [RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: Artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, Record, 2000, p. 350].
Um dos momentos em que podemos constatar a importância que tiveram as editoras e os livros de oposição foi durante a campanha da anistia. Obras como Tortura: a história da repressão política no Brasil (de Antonio Carlos Fon, Global), Memórias do exílio, (organizada por Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos, Editorial Livramento), Liberdade para os brasileiros: anistia ontem e hoje (de Roberto Ribeiro Martins, Civilização Brasileira), Memórias das mulheres do exílio (coordenada por Albertina Costa, Paz e Terra), O que é isso, companheiro? (de Fernando Gabeira, Codecri), Os carbonários: memórias da guerrilha perdida (de Alfredo Sirkis, Global), além de muitos outros, foram muito importantes na denúncia da ditadura e na recuperação da memória sobre a repressão.
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Mestre em história pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), coordenador editorial da Editora Fundação Perseu Abramo