A cidade de Paraty (RJ) se orgulha não da cachaça que produzia para os menos afortunados, mas da pinga, produto de primeira, feito com o uso da tangerina, de cor azulada e exportada para o mundo. O público consumidor é exigente, daí a distinção entre uma e outra bebida, porém, ambas capazes de mexer com a cabeça. O escritor maranhense Aluísio Azevedo, crítico impiedoso da sociedade brasileira, revelou que um dos seus personagens, quando necessário, ‘tomava dois dedos da parati para cortar a friagem’. Outro orgulho da cidade, que se anuncia como fabricante da pinga e não da ‘outra’, é sediar, anualmente, a Festa de Literatura Internacional de Paraty – Flip, agora na 5ª edição, realizada de 5 a 8 do corrente mês. Pinga e literatura, mistura exótica e proveitosa, para ninguém botar defeito.
Quanto àquele festival, uma coisa é certa e sem distinção… ‘A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, portanto, unicamente vivida, é a literatura’, isto no dizer de Marcel Proust, enquanto Vargas Llosa, um apaixonado pelos livros, tem esta idéia a respeito: ‘O vínculo fraterno que a literatura estabelece entre os seres humanos obriga-os a dialogar e, fazendo-os conscientes de uma matéria comum, de fazer parte de uma mesma linhagem espiritual, transcende as barreiras do tempo. A literatura nos retroage ao passado e nos irmana.’
Naquela oportunidade nada foi tão comentado e discutido – naturalmente, depois das letras – quanto o consumo da pinga. O foco se voltou à história, antropologia, sociologia e filosofia daquela bebida. Depois da terceira dose, todos são iguais perante o tribunal da cultura. Um fato obteve unanimidade: a homenagem prestada a Nelson Rodrigues (1912-1980), nascido em Recife (PE), a quem o Brasil muito deve no campo da dramaturgia, do conto, cinema, folhetim, romance, da crônica escrachada e mordaz, capaz de desmoralizar e constranger amigos e inimigos. Ele também tinha opinião quanto ao valor da literatura: ‘O texto literário continuará existindo daqui a 1.200 anos. Ele não morre, porque se ele morrer o mundo começará a morrer.’ Nelson é olhado mais pelo lado irônico dos comentários ligeiros, pela coluna que celebrizou com o título de ‘A vida como ela é…’
‘Um tarado ilustre’
Conhecê-lo melhor na Flip, na presença de intelectuais do Brasil e do mundo, inclusive de dois representantes do Prêmio Nobel, pelo lado sério, ou seja, pela dramaturgia que produziu, sendo o mais fértil e competente nesse universo entre nós, é uma iniciativa que merece elogios. É difícil esquecer as suas obras. Umas mereceram aplausos, enquanto outras receberam a censura do governo, vaias dos expectadores e críticas terríveis dos jornais e da igreja. Nessa relação citam-se algumas: A mulher sem pecado, Vestido de noiva, Álbum de família, Anjo negro, Perdoa-me por me traíres, Dorotéia, Viúva, porém honesta, Boca de Ouro, Otto Lara Rezende ou Bonitinha, mas ordinária, Toda nudez será castigada e tantas outras.
A cada apresentação ou lançamento de tais obras, lá vinha uma saraivada de críticos com palavras ásperas, às vezes insultuosas. Ele não se rendia. Dava respostas fulminantes, que desmoralizavam, principalmente, os medíocres. O jornalista Henrique Oscar, do Diário de Notícias (Rio), não gostou da peça Perdoa-me por me traíres e comentou o trabalho. Resposta que recebeu: ‘Leonardo da Vinci está morto, mas Henrique Oscar viverá para sempre porque a burrice é eterna.’ A peça levada à cena foi vaiada e esse episódio não o abalou, declarando: ‘A verdadeira apoteose é a vaia.’ Oswald de Andrade, da Semana de Arte Moderna de 22, desancou a obra de Nelson Rodrigues no Correio da Manhã, dizendo cobras e lagartos com o título ‘O analfabeto coroado de louros’, e acusou-o de ‘usar ferraduras mentais’, ‘zurrar insânias’, e de ser ‘um tarado ilustre, mas de poucas letras’.
Orgulho da pinga
Sentindo-se ofendido, mas sem perder a verve, devolveu os insultos na Última Hora: ‘Não passa de uma vaca premiada, de argola no focinho.’ E ainda prometeu ir a São Paulo para lhe dar tapas ‘nas ancas’. O ateu convertido ao cristianismo Gustavão Corção, a quem Nelson admirava por escrever bem, da Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda, outro desafeto, acusou-o de ‘disseminar a devassidão’, ‘querer acabar com os valores morais da família’ etc. O troco veio com o título de ‘Sórdido’: ‘Eu, quando leio o Corção, tenho vontade de fazer bacanais horrendos, bacanais de Cecil B. De Mille! (…) A Minha sordidez fede menos do que a virtude do Corção. Por causa do Corção, já desisti da vida eterna. Quando penso na virtude do Corção, eu prefiro – sob a minha palavra de honra – ser um canalha abjeto.’ Pessoas respeitáveis e algumas pertencentes ao seu círculo de amizades não escapavam das brincadeiras, gozações que às vezes terminavam em incidentes desagradáveis. Ele criou problemas com dom Helder Câmara, Alceu Amoroso Lima, Otto Lara Rezende, Otto Maria Carpeaux, Roberto Campos, Álvaro Lins, Hélio Pellegrino e outros. Todos o compreendiam.
Esse é o Nelson que conhecemos. O Nelson frasista incomparável, ator, trágico, culto, reacionário, às vezes desbocado e cínico, mas tolerantemente, de uma sinceridade sem rodeios. E quem desejar ir a Paraty por ocasião da próxima Flip, que imite os versos de Assis Valente, na voz de Carmem Miranda: ‘Vestiu uma camisa listrada / e saiu por aí. / Em vez de tomar chá com torrada/ Ele bebeu Paraty’. Sem preconceito. Eu já provei da azulzinha, sob o luar de agosto, num Festival da Pinga, e não balancei o corpo, caminhando sobre as ruas históricas calçadas com pedras pontudas de ‘cabeças de moleque’. Paraty tem orgulho da sua pinga. É produto exportação e faz parte da economia da cidade. Por que contrariá-la?
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Jornalista