Divulgação científica de má qualidade é fonte de muitos efeitos negativos num país como o Brasil, onde educação científica é disponível para poucos. Popularizar desinformação provoca uma assimetria cada vez maior entre cientistas e o público leigo, o que pode ter conseqüências extremamente prejudiciais quando a pesquisa científica é crucial em assuntos de interesse público.
Em matéria de desinformação científica, a Superinteressante vem executando o serviço com maestria há anos, como qualquer leitor minimamente engajado em divulgação científica compromissada, como a edição brasileira da Scientific American, é capaz de acusar. Na edição de junho da Super, a bola da vez foi Darwin e a teoria da evolução e todos os fatos parecem apontar que a revista está muito mais interessada em causar polêmica do que em educar o público leigo.
Detratores do conhecimento científico se fartam em divulgação científica de má qualidade. Aproveitam-se de caricaturas e informações falsas apresentadas, assumem que representam o conhecimento científico vigente e utilizam isso em prol de sua agenda.
Foi precisamente essa a manobra realizada pelo criacionista brasileiro Michelson Borges no artigo ‘Revista mata a razão e a paciência’, publicado neste Observatório da Imprensa no dia 19 de junho. O jornalista, ao invés de aproveitar a oportunidade para realizar críticas construtivas da péssima matéria de capa da Superinteressante do último mês, agarrou-se à oportunidade de difundir argumentos pseudocientíficos da inócua retórica criacionista.
Afirmação enganosa
O abuso está presente de cara no primeiro parágrafo do referido artigo. Michelson alega que a teoria da evolução darwiniana está ‘longe de ser unanimidade entre os cientistas’, citando para embasar sua colocação o eminente e falecido biólogo evolutivo John Maynard Smith a respeito dos posicionamentos do famoso paleontólogo, também falecido, Stephen Jay Gould. A citação é originária de uma resenha de John Maynard Smith do livro A perigosa idéia de Darwin, do filósofo Daniel Dennett. Nesse livro, Dennett dedica várias páginas para analisar as propostas de Gould aos fundamentos teóricos da evolução biológica.
Dentro da produção intelectual de Gould, sua contribuição mais não-ortodoxa foi a hipótese de que mecanismos não-darwinianos de auto-organização do genoma estariam presentes nas transições macroevolucionárias de várias linhagens de seres vivos. Existem outros biólogos teóricos com propostas similares – com o intuito de complementar o neodarwinismo –, como Stuart Kauffman e James Shapiro. Essas idéias controversas até o momento são consensualmente consideradas como desnecessárias pela comunidade acadêmica, mas nova evidência empírica pode acabar incorporando-as a uma futura síntese nas ciências biológicas. A discordância de Gould e esses outros cientistas com alguns aspectos do neodarwinismo, entretanto, não implica de forma alguma que a comunidade científica julga que as proposições centrais do mesmo estão em crise, como Michelson procurou induzir o leitor a acreditar. Nenhum desses cientistas duvida que todas as formas de vida terrestres estão unidas numa grande rede de parentesco e que a seleção natural produz adaptações, duas proposições centrais do darwinismo. Inúmeros outros detalhes da teoria da evolução continuam sendo muito debatidos, como, por exemplo, o peso que a seleção natural possui em relação a outros mecanismos evolutivos (como a deriva genética) durante a especiação. Mas a afirmação de que a teoria da evolução ‘segue longe de ser unanimidade entre os cientistas’ é profundamente enganosa.
Loterias de aminoácidos
Michelson invoca a opinião de dois astrofísicos do CNPq a respeito da complexidade de sistemas biológicos. Exemplo clássico de apelo a autoridades inadequadas. Afinal, costumamos consultar pesquisadores de ciências biológicas quando precisamos de pareceres representativos em mecânica celeste?
O artigo inicia uma série de ataques a uma visão naturalística da origem da vida, empregando no ato várias falácias criacionistas tradicionais. Primeiramente, para tentar persuadir o leigo a julgar a origem naturalística da vida como um evento praticamente impossível, Michelson cita o zoólogo britânico Richard Dawkins a respeito da quantidade de informação genética presente em uma ‘simples ameba’. O leitor pode encontrar-se desavisado do fato de que amebas são protozoários, organismos eucariontes, extremamente mais sofisticados que as primeiras formas de vida. Eucariontes surgiram no planeta há cerca de 2 bilhões de anos.
O jornalista prossegue aplicando o estrategema criacionista de ‘chutar o tamanho do protobionte’ (como são chamados os sistemas que antecederam os primeiros organismos). Michelson alega que a chance de um polímero de 100 aminoácidos se formar espontaneamente é equivalente a ‘um homem de olhos vendados encontrar um grão de areia específico no deserto do Saara por três vezes consecutivas’ (não indicando a menor referência de como e onde chegou a esse valor) e que a vida exige no mínimo 200 destas moléculas. A verdade, entretanto, é que pesquisadores no campo interdisciplinar da origem da vida não sabem exatamente quão complexos foram esses sistemas biológicos pioneiros que se formaram espontaneamente. Há propostas, com amparo experimental, de que o mesmo pode ter sido tão pequeno quanto uma cadeia de 6 monômeros.
Na literatura criacionista podem ser encontrados os mais diversos números astronômicos com o objetivo de mostrar a impossibilidade efetiva de uma origem natural para a vida. Em todas essas estimativas, os cálculos probabilísticos partem de premissas falsas e freqüentemente são obtidos através da matemática errada. Síntese de polímeros não ocorre por puro acaso, como em uma loteria: compostos químicos formam-se obedecendo a leis que regem as interações intermoleculares e são conhidos vários exemplos de sistemas dissipativos especiais, nos quais a organização emerge espontaneamente.
Ad hocs sobrenaturais
Mesmo que a menor protocélula exija centenas de proteínas, nenhum pesquisador alega que seu maquinário surgiu acidentalmente de uma só vez, e sim, que o mesmo evoluiu de precursores (a abordagem mais famosa, nesse sentido, são os hiperciclos auto-catalíticos de moléculas de RNA do biofísíco alemão Manfred Eigen). O espantalho criacionista de que cientistas acreditam que os primeiros organismos unicelulares foram produto de colisões fortuitas de moléculas orgânicas não poderia estar mais longe da verdade.
Não sabemos quantos dos compostos auto-catalíticos possíveis são interessantes no contexto dos precursores de sistemas biológicos (vários dos cálculos criacionistas presumem que esse valor é 1). O que não é funcional para um ser vivo hoje, pode ter sido bom o suficiente para um protobionte pioneiro. E também não conhecemos, dada a extensão e idade do universo, quantas rodadas para a geração de protobiontes estavam disponíveis. Nossa ignorância desses dados não permite que criacionistas tirem conclusões probabilísticas precipitadas sobre a implausibilidade de uma origem natural para a vida porque, no mínimo, uma boa estimativa de todos esses fatores é indispensável antes de se tentar realizar um cálculo como esse. Geociências, bioquímica experimental e astrofísica nos cedem com regularidade mais evidência empírica para guiar nossos programas de pesquisa em origem da vida, mas ainda há muito que simplesmente não sabemos.
Ainda um dos grandes problema em aberto das biociências, a origem da vida emprega pesquisadores e ferramentas de várias áreas, da física à ciência da complexidade. Criacionistas, entretanto, não parecem ter o menor interesse em avançar nosso conhecimento científico nessa questão, não possuindo qualquer programa de pesquisa produtivo sobre o assunto e preferindo preencher as lacunas de nosso conhecimento com ad hocs sobrenaturais. Para uma apuração mais técnica das críticas mencionadas aqui, sugiro os leitores consultarem o artigo ‘The argument from biogenesis: Probabilities against a natural origin of life’, de Richard Carrier, publicado no periódico Biology and Philosophy.
Versatilidade e lacunas
A simples idéia de combinar variação aleatória e seleção-não aleatória que compõe o darwinismo permitiu aplicações que transcendem o reino das ciências biológicas.
Onde estão os limites dessa influência darwiniana? O jornalista Michelson Borges parece inconformado com a sentença da Superinteressante, onde é alegado que ‘a teoria de Darwin pode ter desvendado o segredo dos buracos negros’. De fato, essa é mais uma instância do sensacionalismo com falta de rigor da Super e que pode ter confundido seus leitores. Qual a relação entre darwinismo, buracos negros e a origem do universo? O físico norte-americano Lee Smolin aplicou o algoritmo darwiniano à cosmologia. Calculou que um fato notável para o nosso universo é que as constantes físicas do mesmo são perfeitamente dispostas para se formar um gerador ótimo de buracos negros; praticamente toda a massa de nosso universo seria inevitavelmente condensada para a formação buracos negros num futuro distante. O que explica essa configuração tão notável? A hipótese de Smolin é de que universos novos se desdobram do interior de buracos negros, carregando consigo uma configuração parecida das constantes físicas dos universos originais, mas sutilmente diferentes. As linhagens de universos que persistem são aquelas cujas constantes físicas permitem o aparecimento de mais buracos negros. Algumas linhagens de universos acabariam sendo extintas se não conseguissem ocasionar pelo menos um buraco negro. Existe um paralelo darwiniano no modelo cosmológico de Smolin, mas em muitos aspectos cruciais não há analogia com evolução biológica.
Fósseis da Fauna de Ediacara
Criacionistas possuem uma apreciação quase fetichista pelas lacunas de nosso conhecimento e tomam as mesmas como fragilidade incurável, ao invés de possibilidade totipotente. O artigo de Michelson Borges possui vários exemplos disso. ‘No dia que alguém me explicar a origem do sexo da maneira darwiniana, eu tiro o chapéu’, diz ele. A origem da reprodução sexuada do ponto de vista da visão gene-cêntrica da evolução é ainda um problema em aberto. Várias teorias intrigantes, e contendo amparo empírico, foram propostas – há, por exemplo, a hipótese da ‘Rainha Vermelha’, onde o sexo é uma adaptação para resistir aos efeitos de parasitas. A criação de maior variabilidade genética em uma prole em potencial pode também ter sido vantajosa, permitindo que cada organismo de uma mesma geração aproveitasse um nicho ecológico sutilmente diferente, o que não ocorreria se todos fossem clones. Cito também a hipótese que argumenta que o sexo é vantajoso por permitir que invenções estruturais originais em organismos surjam mais rapidamente. Todas essas formulações (existem outras) possuem dificuldades empíricas e ainda devem permear a pesquisa de biólogos teóricos durante um bom tempo até que uma explicação consensual seja estabelecida. Por enquanto, não temos uma resposta definitiva. Entretanto, duvido que a literatura dessa área satisfaça alguém que não aceita sequer alguns dos fatos mais básicos e evidentes das ciências biológicas.
Michelson também alega que inexistem ramas ancestrais dos multicelulares e que os mesmos surgiram abruptamente na ‘explosão Cambriana’, mas isso é simplesmente falso; possuímos fósseis de metazoários da Fauna de Ediacara até 60 milhões de anos mais antigos que o citado evento – e desses organismos existem exemplos que já apresentam simetria bilateral e semelhança morfológica com certos filos de animais, como os moluscos.
Genes egoístas e animais altruístas
Um dos conceitos mais usados popularmente por detratores da biologia evolutiva em suas exposições ao público leigo é o significado das idéias apresentadas no livro de divulgação científica O gene egoísta, de Richard Dawkins, publicado em 1976. Não estou certo se muitos deles chegaram a avançar a leitura do livro além do título na capa.
Os ‘genes egoístas’ são egoístas em um sentido metafórico; o mentalismo que Dawkins utilizou para descrever genes como ‘egoístas’ deve-se ao fato de que podemos compreender a funcionalidade dos mesmos assumindo que possuem interesses de se perpetuar pelo mundo. Organismos inteiros são ‘máquinas de sobrevivência’ construídas pelos genes para maximizar a replicação de seus alelos em detrimento de outras variedades competidoras. Como conseqüência de sua estrutura física e dos suportes bioquímicos auxiliares, genes fazem cópias de si mesmos. Michelson Borges alega não compreender a lógica dos replicadores, mas trata-se simplesmente da descrição de como esses sistemas funcionam. Da mesma forma como sais necessariamente se cristalizam, quando satisfeitas condições físico-químicas especiais, o mesmo é verdadeiro para replicadores biológicos.
Mais de 30 anos após sua publicação, esse famoso binômio de Dawkins é severamente mal compreendido. Em grande parte, o livro se dispõe a defender a tese central do revolucionário livro Adaptation and Natural Selection, do biólogo George C. Williams, publicado em 1966. Na época de sua publicação, existia um grande debate entre biólogos evolutivos a respeito de qual seria o ‘alvo’ prioritário da seleção natural. Muitos eram partidários da seleção de grupo – a perspectiva em que a seleção natural atuava sobre características que eram favoráveis a comunidades inteiras de seres vivos ‘pelo bem da espécie’. George C. Williams elaborou o caso de que alvo primário da seleção natural é o gene e seus argumentos foram convincentes para o mainstream científico.
Seres vivos simbiontes
A visão gene-cêntrica da evolução biológica revelou ser um programa de pesquisa extremamente efetivo, permitindo a compreensão de vários fenômenos que anteriormente justificavam a apreciação de vários teóricos para hipóteses de seleção de grupo. Um dos mais fascinantes era a existência da cooperação entre várias espécies de seres vivos, como as colônias eussociais de formigas e a caça sincronizada de matilhas de lobos. Como a evolução poderia ter moldado esses comportamentos, se a mesma não age ‘pelo bem da espécie’? Parece contra-intuitivo, mas existem explicações plenamente satisfatórias.
O neodarwinismo, depois da ‘revolução de Williams’, prevê dois contextos muito importantes que permitem o florescimento de comportamentos altruístas. Um é a seleção por parentesco, quando seres vivos investem mais recursos individuais para ajudar seus parentes porque são aqueles com quem compartilham mais genes. Esse princípio nos ajuda a explicar tanto os fundamentos de nossas relações afetivas dentro de nossas famílias, quanto a origem mais básica dos conflito de interesses que existem nas mesmas. A organização de insetos eussociais, como formigas e abelhas, exemplifica sociedades que evoluíram com uma presença muito forte da seleção por parentesco.
A outra expressão mais famosa de cooperação é o altruísmo recíproco, que pode ser enunciado pela sentença ‘eu o ajudo se você me ajudar também’. Psicólogos evolutivos julgam que essa é a base de relações sociais inter-familiares, como nossas amizades. A mesma pode ser estendida para contextos inter-específicos também, co-evoluindo em espécies de seres vivos simbiontes.
Prescrição e descrição
Robert Trivers, John Maynard Smith e outros pesquisadores analisaram de forma muita bem sucedida essas instâncias de cooperação entre seres vivos e de que forma as mesmas maximizariam a propagação de genes à luz da teoria dos jogos, desenvolvendo ‘estratégias evolucionárias estáveis’. Às vezes, a coisa mais ‘egoísta’ que genes podem fazer é desencadear comportamentos profundamente não-egoístas.
Recomendo aos interessados em uma discussão abrangente das origens biológicas do altruísmo e teoria dos jogos evolucionária a leitura de As origens da virtude, de Matt Ridley.
Muitas pessoas julgam que uma base biológica para nossa moralidade possui conseqüências pessimistas e desastrosas. Duas dessas são frisadas no artigo de Borges. Seria verdade que, segundo o ponto de vista da tese do gene egoísta, bem no fundo nós somos, na verdade, mal-intencionados e não existe bondade genuína?
O psicólogo cognitivo Steven Pinker dedica parte de seu livro Tabula Rasa para conter esse grave mal-entendido a respeito da tese do ‘gene egoísta’ popularizada por Dawkins. A Superinteressante sugere que ‘o que o neodarwinismo diz é: você não ‘ama’ seus filhos e irmãos. São seus genes que vêem neles maneiras de se perpetuar’. Mas esse raciocínio não poderia estar mais grosseiramente equivocado, envolvendo uma falácia de composição. Não devemos confundir os motivos metafóricos dos genes com os motivos reais de seres humanos. Citando Pinker, ‘O amor aos nossos filhos, ao nível de análise psicológica onde estudamos o nosso comportamento, é obviamente puro e sincero. É somente em um nível deferente de análise – o nível evolucionário, quando visamos explicar o porquê de termos essa emoção pura – que o ‘egoísmo’ entra na jogada. O egoísmo em um nível não contradiz o altruísmo em outro’.
O imperativo biológico
Outra implicação negativa que muitas pessoas enxergam na idéia do gene egoísta diz respeito à responsabilidade moral e meta-ética. Indivíduos realmente podem ser culpados de seus atos se genes influenciam no nosso comportamento? Vale tudo para passar seus genes adiante?
Entre os genes e as faculdades de nossos cérebros existem muitos níveis de organização. Dos nossos 25 mil genes, algo na casa dos milhares é responsável para dar início à construção das redes neurais especializadas de nosso cérebro, comportando 100 bilhões de neurônios e entre 10 a 100 trilhões de conexões sinápticas. Os nossos processos de tomada de decisão ocorrem em um nível muito alto dessa arquitetura, na qual existe competição entre módulos especialistas do cérebro que muitas vezes estão ‘defendendo’ formas de atuação diametralmente opostas. Estamos então diante de mais um erro categórico: isentar a responsabilidade do indivíduo como um todo, por conta de influências dos genes bem abaixo da hierarquia, não faz o menor sentido. Ainda mais quando as intenções metafóricas de diferentes equipes de genes podem ser mutuamente conflitantes. Comentarei mais sobre a falácia do determinismo genético na próxima seção.
Um exemplo quintessencial da diferença entre nossos propósitos pessoais e os de nosso genes é nossa capacidade de controlar o próprio imperativo biológico. Os nossos desejos pessoais de manter relações sexuais com nossos parceiros podem sobrepor os desejos metafóricos dos genes de se espalharem adiante porque temos a escolha de utilizar métodos contraceptivos, realizando assim o planejamento familiar.
Subsistência e aprendizado
A sugestão de Michelson de que, segundo o neodarwinismo, criminosos como Fernandinho Beira-Mar e o ‘Maníaco do Parque’ e maridos infiéis estariam isentos de culpa porque alegadamente comportamentos violentos e promíscuos permitiriam uma maior proliferação de seus genes, é um exemplo de falácia naturalista descarada. Não se segue que aquilo que se manifesta naturalmente é correto ou desejável, em termos morais. Exemplificando, segundo a teoria da gravitação universal, o fato do campo gravitacional terrestre atrair asteróides não significa que é moralmente correto que asteróides se choquem com o nosso planeta. Teorias científicas são descritivas e não prescritivas, promovem explicações para os fatos do mundo, não o que devemos fazer com esses fatos.
Independentemente disso, também não está claro de que forma um excesso de violência e a promiscuidade seriam o caminho ótimo para se proliferar genes ao máximo. O psicólogo evolutivo Geoffrey Miller especula, em seu livro A mente seletiva, que mulheres podem ter evoluído um detector natural de ‘mau caratismo’, otimizando a busca de parceiros mais confiáveis para se engajarem em relacionamentos de longo prazo. Estando essa hipótese correta ou não, nossa experiência do dia-a-dia sugere que pessoas excepcionalmente agressivas cultivam um clima social desagradável e possuem dificuldades de se relacionar com o próximo.
E quanto à infidelidade? Em comparação com nossos outros primos símios, como gorilas e chimpanzés, somos os primatas menos promíscuos. O somos por uma contingência histórica evolucionária; nossos filhotes nascem muito indefesos e desenvolvem seus grandes cérebros durante muitos anos até adquirir independência. Essa longa infância, que precisa ser preenchida com muito conhecimento sobre o mundo, só seria possível se a norma durante a maior parte da pré-história da humanidade fosse um núcleo familiar estável, com pais, mães e outros familiares para promover a subsistência e o aprendizado necessários.
Bonecos de palha
Apesar dessa propensão natural à formação de fortes laços entre casais para criação de seus filhos, pesquisadores como Robin Baker sugerem que ainda carregamos por inércia alguma tendência à infidelidade de nossos ancestrais mais promíscuos. Se, de fato, conservamos essa sutil infidelidade (como defendido pelo livro A guerra do esperma), daí também não se segue que podemos legitimamente trair nossos parceiros ‘de vez em quando’. Isso seria outro exemplo da falácia naturalista. As conseqüências psicológicas da infidelidade não consentida podem ser tão devastadoras e gerar tanto sofrimento que as prescrições de nossa filosofia moral existem para conter esses excessos.
Ao refutar a desinformação que a Superinteressante realizou a respeito de genes egoístas e psicologia evolutiva, assim como os bonecos de palha que o jornalista criacionista gerou por cima dessas afirmações, espero ter deixado claro que, longe de abalar nossa moralidade e valores, o neodarwinismo, ao nos ajudar a compreender melhor a origem e persistência dos aspectos negativos da psicologia humana, só tem a contribuir para a ética.
Darwinismo e nazismo
Em 1990, o advogado norte-americano Mike Godwin cunhou um termo especial para descrever uma estratégia que via sendo utilizada descaradamente em grupos de discussão da Usenet, dos quais participava. Segundo sua ‘Lei de Godwin’, ‘à medida que uma discussão na internet se prolonga, a chance de aparecerem comparações envolvendo Hitler ou nazistas se aproxima de 100%’.
Poucos símbolos evocam no imaginário popular mais repulsa e desaprovação moral do que o Terceiro Reich alemão sob o comando do ditador Adolf Hitler. Por conta dessa carga emocional, a comparação com nazistas tornou-se um recurso retórico muito eficiente na tentativa de se desqualificar oponentes em debates, não interessando o valor real de seus argumentos. Uma pequena amostragem da literatura criacionista evidencia o quanto os opositores do neodarwinismo consumiram recursos aplicando a ‘Lei de Godwin’.
O artigo de Michelson Borges não é uma exceção. Borges cita um fragmento que afirma ter sido extraído de Mein Kampf, de autoria de Adolf Hitler. Pesquisei em duas traduções em português do livro disponibilizadas online e não encontrei o referido trecho; suspeito que as traduções consultadas sejam diferentes. De acordo com Borges, a tese do ‘gene egoísta’ justifica a política social violenta e denegrinte do nazismo, uma vez que Hitler estava meramente obedecendo aos seus genes.
Entretanto, Michelson se utiliza de um entendimento incorreto divulgado pela Superinteressante acerca do conceito do ‘gene egoísta’ e da natureza humana. Além da falácia de associação contida nesta aplicação de ‘Lei de Godwin’, Borges comete a falácia naturalista. Mesmo que a premissa de que humanos biologicamente fossem assassinos inescrupulosos estivesse correta – e não está, como indiquei na discussão anterior sobre as bases biológicas do altruísmo e compaixão –, isso não tornaria comportamentos violentos certos.
A visão do mundo de Hitler
A visão de mundo de Adolf Hitler é, em muitos aspectos, profundamente anti-darwiniana. O führer alemão explicita em vários de seus escritos que considerava grupos étnicos humanos como ‘essências’ da natureza que deveriam ser preservadas. Miscigenação racial significava um verdadeiro atentado à lei natural, produzindo indivíduos com caráter deteriorado. Ora, isso contradiz tudo o que conhecemos da história evolucionária da humanidade, da origem dos grupos étnicos e das conseqüências do fluxo de genes entre populações.
Extraio abaixo alguns trechos de Mein Kampf, o livro que alegadamente, segundo Borges, teve seu racismo baseado na teoria da evolução. Leia e responda: o racismo nas passagens a seguir faz mais sentido em uma perspectiva darwiniana ou criacionista?
‘Com essa missão, o Estado, pela primeira vez, assume a sua verdadeira finalidade. Em vez do palavreado irrisório sobre a segurança da paz e da ordem, por meios pacíficos, a missão da conservação e do progresso de uma raça superior escolhida por Deus é que deve ser vista como a mais elevada.’
‘Por isso, acredito agora que ajo de acordo com as prescrições do Criador Onipotente. Lutando contra o judaísmo, estou realizando a obra de Deus.’
‘A destruição da existência da cultura humana pelo aniquilamento de seus detentores é, porém, aos olhos de uma concepção racista do mundo, o mais abominável dos crimes. Quem ousa pôr as mãos sobre a mais elevada semelhança de Deus ofende a essa maravilha do Criador e coopera para a sua expulsão do paraíso.’
‘Não será possível essa renúncia, se, em lugar do voto religioso, se colocar a advertência de que se deve pôr um paradeiro ao envenenamento da raça e dar ao mundo apenas criaturas verdadeiras feitas à imagem do Criador?’
‘(…) É uma criminosa idiotice adestrar, durante muito tempo, um meio macaco, até que se acredite que ele se fez advogado, enquanto milhões de indivíduos, pertencentes às mais elevadas raças, devem permanecer em uma posição inteiramente digna, se tem em vista a sua capacidade. É um atentado contra o próprio Criador deixar-se perecerem, no atual pântano proletário, centenas de milhares das criaturas mais bem dotadas para adestrar hotentotes e cafres.’
Regras, não determinismo
É evidente que isso não prova que o criacionismo causou o Holocausto. Apenas dei-me ao trabalho de mostrar que Mein Kampf é dotado de combustível suficiente para aplicações inversas da ‘Lei de Godwin’ exposta por Michelson Borges. A visão de mundo de Adolf Hitler interpretava história, religião e ciência de uma forma muito particular e freqüentemente distorcida. A conjuntura histórica que levou à ascensão do Terceiro Reich e seus programas de genocídio sistemático institucionalizado é muito mais complexa, delicada e multifatorial do que os usuários da ‘Lei de Godwin’ gostariam que você acreditasse. Para não negligenciar a história, precisamos ter cuidado reforçado quando Hitler e o nazismo entram em um debate.
O outro trecho da matéria da Super citado por Michelson Borges apresenta mais afirmações falsas. A sentença ‘do ponto de vista da psicologia evolucionista, não faz sentido dizer que a cultura molda o nosso comportamento’ não é defendida por qualquer psicológo evolutivo. Steven Pinker, em Como a mente funciona, destaca como o Efeito Baldwin foi importante na evolução da inteligência humana – a grande capacidade de nosso cérebro se auto-organizar dinamicamente com mais informação coletada do ambiente, incluindo de forma muito significativa a adquirida via aprendizado com outros humanos. É correto que genes podem influenciar, em diferentes graus, diversas facetas de nosso comportamento, mas a expressão definitiva de uma característica depende da interação com o ambiente. Regras genéricas, não determinismo genético.
Conclusão
Todos aqueles que desejam ver o Brasil como um expoente internacional em ciência e tecnologia cada vez mais relevante deveriam se prontificar, na medida do possível, a conter os abusos ao conhecimento científico que infestam nossa mídia. Isso exige jornalismo e divulgação científica mais bem preparados e motivados. Então, deixo aqui um apelo aos futuros profissionais interessados em a participar dessas áreas: que cumpram a função pública fundamental de aproximar o cientista do público leigo. Criacionismo nunca foi ciência e é papel da mídia informar o público a respeito disso, mesmo que seja necessário utilizar a ‘linguagem de guerra’ que, para Michelson, possui ares de perseguição ideológica.
Nenhum paradigma científico foi mais odiado na história da humanidade do que o iniciado por Charles Darwin após a publicação de As origens das espécies, em 1859. Detratores do darwinismo são muitas vezes motivados pela idéia de que uma visão darwiniana da vida corrompe nossos valores mais preciosos e possui o poder de destruir a sociedade moderna. As cabeças mais importantes da última manifestação do movimento anti-evolucionista – o ‘Design Inteligente’ – possuem opiniões sinceras de que a teoria da evolução é a fundação de muito do mal que permeia o mundo contemporâneo.
Com a agenda de visar a renovar a cultura contemporânea, partidários do ‘Design Inteligente’ e do ‘Criacionismo Científico’ financiam tentativas de infiltrar sua pseudociência no ensino público norte-americano mesmo quando as mesmas não possuem a menor credibilidade na comunidade acadêmica e seu ensino foi declarado inconstitucional por violar a separação entre Igreja e Estado. Realmente, mudar o currículo de escolas primárias é uma forma muito pitoresca de combater o mainstream científico. Encarar esse assunto com mais seriedade é indispensável para evitarmos que as mesmas confusões judiciais aconteçam no Brasil.
Michelson parece satisfeito com a idéia de que a matéria de capa da Super deixaria em definitivo que o darwinismo é sinônimo de ‘ateísmo e materialismo puro’. Qual a razão de tamanho entusiasmo? Ao qualificar a teoria da evolução como fundamentalmente filosófica, ocorre uma tentativa de nivelar a mesma com o ‘criacionismo científico’, tentando reforçar a impressão de que o neodarwinismo não é cientificamente tão rigoroso e isento de contaminação ideológica quanto outros campos do conhecimento. Inclusive, uma das maiores manobras de propaganda do ‘Design Inteligente’ foi tentar convencer o público e financiadores potenciais de que o ‘materialismo científico’ ou ‘naturalismo filosófico’, corrompeu a elite acadêmica norte-americana e forçou cientistas a tomarem aprioristicamente conclusões incorretas sobre nossas origens biológicas. Essa paranóia, entretanto, não possui o menor fundamento porque inúmeros cientistasou naturalistas que não são ateus, não só analisaram a evidência empírica e chegaram às mesmas conclusões que o mainstream científico, como muitos deles foram peças indispensáveis nas sínteses evolucionárias das ciências biológicas. Como exemplo, sir Ronald Fischer, pai da estatística moderna e um dos idealizadores da matemática de genética de populações e outros fundamentos teóricos do neodarwinismo, era cristão anglicano. Kenneth Miller, um dos maiores antagonistas do movimento ‘Design Inteligente’, que testemunhou como especialista no julgamento de Dover que condenou o ensino do ‘Design Inteligente’ nas escolas públicas norte-americanas como inconstitucional, é um biólogo celular e católico romano praticante.
Pessoas que crêem literalmente que nosso planeta possui apenas alguns milhares de anos, que humanos coexistiram com dinossauros e que o mal e sofrimento do mundo remontam a um incidente envolvendo uma árvore mágica e uma serpente falante, não parecem possuir o menor comprometimento em querer avançar de forma saudável o horizonte para a pesquisa científica no Brasil. O avanço das igrejas neopentecostais, que incute a cada vez mais jovens uma visão distorcida e mitológica da história natural do planeta, é um fato extremamente preocupante. Observo nisso a triste realidade de formarmos cada vez menos cientistas talentosos e cada vez mais profissionais que não estão interessados em contribuir com linhas de pesquisa importantes em virtude de divergências puramente religiosas.
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Estudante de engenharia, Petrópolis, RJ