Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dia em que os piratas ganharam prêmio de cidadania

Santa Luz, distante 260 quilômetros de Salvador, na Bahia, não existe. Como não existe aquela população que acha que existe por lá – cerca de 34 mil habitantes. A não-existência de Santa Luz foi determinada pela mídia ao estabelecer para o Brasil que o Brasil se resume a Rio, São Paulo e Brasília. É uma mídia preconceituosa e narcisista: ela expurga o que não é espelho, seu espelho. Por isso, Santa Luz e mais outros 5.600 municípios brasileiros não existem.

Mas é de lá, de Santa Luz, região sisaleira baiana, que vem o recado. O representante de uma rádio comunitária, junto com outros nobres jornalistas deste país, recebeu nesta quinta-feira, dia 13 de julho, o prêmio ‘Amigo da Infância’, promovido pela Agência Nacional de Direitos da Infância (ANDI), com o patrocínio da Petrobrás e apoio da Unicef.

Seu nome é Edisvânio Nascimento, mas o tratam, como se viu, como inexistente, irreal, ou, como pirata, bandido, marginal. Isto porque Edisvânio atua numa rádio comunitária não autorizada naquele município. Atua, não; atuava. Porque, como se trata de uma rádio ‘pirata’, o Estado brasileiro achou por bem que ela não deveria estar no ar. E a rádio comunitária de Santa Luz, premiada pela ANDI pelo trabalho em defesa da infância, foi fechada.

Comunicação popular

Azar de Santa Luz porque a rádio mesmo reconhecida pela comunidade, pelos que querem um país mais justo, pela ANDI, pelos defensores da democratização da comunicação, pela maioria do povo brasileiro, não é reconhecida pelo governo. Este governo, que se viciou no jogo político para se manter no poder visando à eternidade, tem aqui mais uma prova (existem milhares) de que rádio comunitária sem a concessão oficial é muitas vezes comunitária.

O prêmio da ANDI é uma lição para o governo de que precisa mudar urgentemente a sua política de comunicação. Ou melhor, criar uma política de comunicação para o povo brasileiro. Hoje, o governo apenas obedece à linha política estabelecida pelos empresários do setor. Quando o governo Lula vai entender que só vai mudar alguma coisa neste país quando deixar de fazer política para se manter no poder? Quando irá reconhecer um direito fundamental do ser humano, o direito à comunicação?

Além de Edisvânio, um outro militante do movimento das rádios comunitárias foi agraciado com o prêmio da ANDI: Sérgio Gomes, fundador e diretor da Oboré, uma entidade aplicada em formular e implementar projetos na área da comunicação popular. Sérgio Gomes, ex-professor da ECA-USP, integra a Associação Mundial das Rádios Comunitárias e é um dos ícones do movimento.

Critérios de premiação

A premiação de Edisvânio e de Sérgio é mais uma prova (mais uma, Lula!) de que o atual processo de concessão de emissoras de rádio e TV no país não presta. É sintomático que a rádio comunitária Santa Luz – considerada pirata pelo Estado – pleiteia um canal há nove anos! Isto é, eis um pirata que há nove anos tenta deixar a legalidade. O Estado, que é tão competente e rápido para fiscalizar e reprimir as rádios não autorizadas, demora quase uma década ‘analisando um processo’. A rádio de Santa Luz foi fechada e o canal não saiu. Não saiu por quê? Ora, porque esta é uma boa comunitária e não tem político ou igrejas empurrando.

Não se trata aqui de um xingamento ao Ministério das Comunicações, mas de uma denúncia com provas. E a prova maior de que as autorizações de rádios comunitárias estão submetidas a interesses políticos e religiosos está no rigoroso estudo assinado pelo professor Venício Lima e pelo consultor legislativo Cristiano Lopes, veiculado neste Observatório. Nele se mostra como as autorizações até hoje concedidas às rádios comunitárias não obedecem à legislação, mas sim, a um coronelismo político e religioso que dá as ordens no MC, no governo, no Estado. O estudo foi apresentado há cerca de dois meses e até agora nada aconteceu. Se este governo fosse sério e tivesse o mínimo de compromisso com a legalidade e a nação, o ministro teria caído.

É importante registrar o que leva a ANDI a premiar os 20 jornalistas Amigos da Infância: a escolha dos jornalistas que o recebem não se baseia em uma reportagem ou conjunto de reportagens específico, mas na produção contínua de matérias que contribuem para a discussão de políticas públicas dirigidas à população infanto-juvenil. São reconhecidos tanto os repórteres quanto os editores e chefes de redação, que estimulam suas equipes e orientam a linha editorial de seus veículos para dar maior visibilidade aos temas da infância e adolescência. Da mesma forma, são valorizados profissionais que atuam em ONGs e no meio acadêmico e que por meio de seu trabalho contribuem com essa causa.

Ensinando cidadania

Outros critérios decisivos na escolha são:

– Ética no exercício da profissão.

– Atuação com grande responsabilidade social enquanto formador de opinião.

– Contribuição para a construção de novos valores, buscando uma mudança de comportamento em seus públicos-alvos no que diz respeito aos direitos infanto-juvenis.

– Estímulo ao protagonismo juvenil através de seu trabalho.

A lição da rádio comunitária de Santa Luz é dirigida ao governo, à Anatel, à Polícia Federal, ao Estado brasileiro – que aceita, e algumas vezes reproduz, a versão alucinada, criada por alguns setores anti-democráticos, de que rádio comunitária derruba avião. Quem conhece as rádios comunitárias do Brasil, no entanto, sabe que o caso de Santa Luz não é único. Há várias rádios comunitárias, em todo país, fazendo trabalho similar. A grande maioria, porém, é penalizada, satanizada, amaldiçoada, sob a acusação de não ter cumprido a burocracia. Centenas de militantes já foram indiciados pela PF/Anatel, presos e até punidos, por fazerem o que faz Edisvânio. Muitas vezes, paradoxalmente, a Justiça determina ao condenado que a punição seja efetuar serviços para a comunidade. Ora, é exatamente isto que elas – as boas rádios comunitárias – fazem.

O movimento das rádios comunitárias não defende rádios de empresários, políticos ou religiões. O que se defende é a boa rádio comunitária. E elas são muitas. Em todo o país. Algumas têm a autorização de funcionamento, outras não. Mas estão ensinando o que é cidadania e, principalmente, o que é um jornalismo voltado aos interesses do coletivo.

Vampiros modernistas

O lastimável é que o Estado brasileiro, como prova o estudo do professor Venício Lima, cometeu e está cometendo um tipo de erro que não tem solução à vista: outorga concessões contra a lei, ciente de que estas concessões não podem ser revisadas. A legislação brasileira foi arrumada de tal modo que praticamente impede a cassação da outorga concedida, mesmo quando se comprova que a emissora não está dentro da lei ou comete abusos na programação. Se uma emissora brasileira fizer como a RCTV da Venezuela, por exemplo, que conspirou e promoveu um golpe de Estado, o governo vai ter dificuldades em cassar sua concessão.

Por conta deste Estado dominado pelos políticos e religiões, as falsas rádios comunitárias brotam aos montes, por todo o Brasil. A lei 9.612/09 proíbe a outorga a igrejas, mas… No Distrito Federal foi dada autorização para a ‘rádio comunitária’ da Igreja Casa da Bênção, ligada a um deputado distrital, Júnior Brunelli; no Rio de Janeiro, a (rica) Igreja de Nossa Senhora de Copacabana recebeu do MC autorização para instalar uma ‘rádio comunitária’; em São Gonçalo (RJ) ocorre a mesma coisa. Como instituições religiosas, ferindo a lei, conseguiram autorização? Ao que parece, esta relação promíscua entre o Estado e as igrejas é caso para uma ação do Ministério Público. Poderia se pensar em CPI, mas qual deputado – de esquerda ou de direita – iria enfrentar a Igreja Católica e o seu poder? A nossa ousada esquerda não teria peito para isso. Hoje ela opta por considerar a Igreja uma aliada, mesmo sabendo que a Igreja está saqueando um espaço que pertence ao povo, tornando-se a maior latifundiária da comunicação no país.

Ao premiar Edisvânio e Sérgio Gomes, a ANDI revela este Brasil intencionalmente oculto pela mídia comercial brasileira. Revela o Brasil verdadeiro, de gente que luta contra o Estado, as grandes redes comerciais de comunicação, o governo Lula, a falta de recursos… Enfim, luta contra todos os inimigos da democracia. Quando um cabra como Edisvânio ganha um prêmio como este, ele está dizendo à história que não somente Santa Luz existe, como existe um Brasil vasto, real, belo e corajoso. Um Brasil que não se avista das janelas dos palácios de Brasília, onde as conversas mais inteligentes e profundas, apreciadas por condes e viscondes, discorrem sobre a eternidade humana, e de como continuar o jogo da política para que, quando vier o eterno, eles continuem ali, quais vampiros modernistas, nessa declamatória bizarra, bizantina, interrompida apenas pelo zumbido das milhares de moscas azuis, amarelas e cinzas que habitam com eles este palco de efemeridades.

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Jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas do DF, autor do livro A arte de pensar e fazer rádios comunitárias